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País bárbaro
Pays barbare
Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi
França, 2013, 63 min., DCP

 
O último longa-metragem finalizado pelo casal italiano Gianikian e Ricci Lucchi começa com uma frase de Italo Calvino sobre a morte de Benito Mussolini em 1945: "Após estar na origem de tantos massacres sem imagem, suas últimas imagens são as de seu massacre." Vemos uma multidão aglomerada que parece assistir alegremente o fuzilamento do "Líder". A partir daí o filme faz uma regressão para o período da ocupação italiana na Etiópia, Eritreia e Líbia, entre as décadas de 1920 e 1940, através de imagens de arquivo que intercalam, trabalhadores e desfiles de carnaval na Itália, paradas militares pomposas e cenas cotidianas de povos africanos e de seu extermínio impetuoso. Acompanhando as imagens ouvimos as vozes dos cineastas e da cantora e compositora Giovanna Marini relatando as avassaladoras e silenciosas estratégias de guerra dos militares fascistas.
 
O material fílmico de País bárbaro (que estreou no Festival de Locarno em 2013) provém primeiramente do arquivo particular do colecionador Diego Leoni. Como em outras obras do casal, Gianikian e Ricci Lucchi re-fotografaram o material original em película e manipularam as novas cópias com tinturas e efeitos de velocidade que proporcionam características surpreendentemente humanas e atemporais. O filme ainda contém uma trilha sonora minimalista de Keith Ullrich que dá à obra uma atmosfera contemporânea, junto com o texto falado que também expressa a continuidade do fascismo nos dias de hoje.
 
IMS Rio de Janeiro 15/11 às 18h + debate
Reprise 25/11 às 18h.
 
IMS Paulista 29/11 às 20h30 + debate com Maria Luiza Tucci Carneiro
Reprise 02/12 às 18h.
 

 
"Elogio e Reflexões"
 
O material a seguir vem de duas fontes distintas. Primeiro: Trechos de uma entrevista com Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, conduzida por Sergio Toffetti e Daniela Giuffrida, que foi originalmente publicado em italiano em 1992 no livro Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi (org. Sergio Toffetti, Hopefulmonster, Museo Nazionale del Cinema, Cinemazero, Florença e Turim). A tradução para português foi feito por Marcelo Sacco para o catálogo da retrospectiva Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, realizado pela Cinemateca Portuguesa em 2001, e está postada aqui com a permissão da própria Cinemateca.
 
Depois da entrevista, vem reflexões sobre País bárbaro, escritos por Gianikian e Ricci Lucchi para o presskit do filme. Agradecemos a distribuidora Les Films d'Ici pela permissão de traduzir trechos deste material de inglês para português.

 
"Elogio da política - Conversa com Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi"
 
Sergio Toffetti: "Catálogo" é um dos eixos em torno de qual gira a vossa poética de autores. Começamos portanto por definir os elementos de um "catálogo" ideal das experiências pessoais que vos levaram a utilizar o cinema como meio de expressão.
 
Angela Ricci Lucchi: Começamos ambos como artistas visuais. Eu estudei com Kokoschka em Salzburgo e, em 1972, fiz uma exposição em Ferrara, apresentada por Renato Barilli. Já nessa altura estava muito interessada na utilização dos media e comecei uma espécie de "inquérito", mais tarde publicado pela editora Pari & Dispari, que consistia em colocar uma pergunta essencial a uma série de pessoas: o que é a rosa para si? E coloquei-a também a Yervant que eu acabava de conhecer. Ele já tinha realizado alguns filmes em 8 mm e exposições na galeria Cavallino de Veneza. Juntos realizámos um filme sobre os pilastrini, pequenos altares de Nossa Senhora espalhados pelos campos da Romagna. Tudo começou aí.
 
Yervant Gianikian: Eu fazia trabalhos com materiais reciclados, com objetos que tinham sempre a ver com a memória, normalmente eram brinquedos, fotografias; trabalhava a madeira e mais materiais pobres. Filmava os objetos e com eles fazia grandes catálogos, fazia umas "caixas" já estruturadas como "sequências" cinematográficas. Quando nos conhecemos, achávamos que já não nos interessava muito fazer trabalhos, esculturas ou quadros com os objetos, mas sim realizar filmes sobre objetos. Por outras palavras, considerávamos a câmera um meio para aprofundar a nossa pesquisa. De qualquer maneira, a ideia do "catálogo" estava muito ligada à arte conceptual, mas também às vanguardas do princípio do século, ao dadaísmo e ao surrealismo.
 
ST: Quais são os vossos pontos de referência no cinema?
 
YG: As vanguardas do princípio do século, a começar pelos surrealistas, Léger e, acima de tudo, Dalí e Buñuel. Além disso, passar aos fotogramas, ao material de arquivo, é algo bastante direto, pois o nosso trabalho teve sempre a ver com o encontrar coisas, o colecionismo, as suas manias terríveis, o desencadear de fortes energias psíquicas, porque quando encontras coisas ficas perturbado com isso. Só que, ao fim e ao cabo, já não nos interessava o objeto concreto, mas sim o fotograma como objeto que detém em si a memória. [O nosso filme] Karagöez(1981) permite-nos perceber que, para nós, eram mais importantes o documentário e o documento do que a ficção.
 
ST: Mas mais do que pelo seu valor de "documento", o fotograma parece interessar-vos como superfície a atravessar. Os materiais encontrados tornam-se "vossos" graças a um trabalho profundo dentro do fotograma, escolhendo coisas que às vezes escapam à exibição normal, aquilo que está em pano de fundo, os pormenores que ao primeiro autor não pareciam os mais importantes.
 
YG: O fotograma é entendido como o objeto a partir do qual começa todo o trabalho de montagem. Basicamente, trata-se de voltar a fotografar a imagem. É como olhar demoradamente uma fotografia, imobilizá-la o tempo necessário, isolar alguns pormenores no interior, aproximar-se mais. Normalmente nunca filmamos o fotograma inteiro, ficamos lá dentro, mais próximos. Em Essence d'absinthe (1981), por exemplo, estávamos muito interessados nos riscos da película, na grelha de arranhões; era como se tivessem visto o filme milhares de vezes, como se houvesse um véu, com a imagem a aparecer por trás. Conforme o filme, o grande trabalho é o de juntá-lo. Karagöezé um filme quase montado na câmara, há poucos cortes e poucas colagens; andávamos muito presos com os significados da imagem, e as temáticas eram imensas. Pelo contrário, com Dal polo all'equatore (1986) procurámos fazer uma montagem por blocos, temáticas, grupos de significados.
 
ARL: A montagem é o momento de maior sofrimento, até porque é um momento de confronto direto entre mim e Yervant, que é quem filma as imagens. Antes disso, também há trabalho em comum, naturalmente, na fase de planeamento e pesquisa. Depois, enquanto ele filma, eu leio... Voltamos a encontrar-nos para a montagem, tal como no momento em que se decide sobre os cortes, a coloração etc... Não temos ideias muito diferentes, mas de qualquer maneira, cada um tem o seu ponto de vista.
 
YG: Eu costumo andar muito às voltas enquanto Angela vai logo direto ao assunto. Mas o problema é que os caminhos na película são infinitos, especialmente quando se começa a descer em profundidade para dentro do fotograma. É um trabalho muito demorado, não pode montar mais de dois ou três minutos por dia.
 
ARL: Eu tenho mais coragem quando se trata de cortar, enquanto para Yervant cortar é algo muito doloroso, era capaz de continuar até ao infinito. Há, porém, todo um trabalho anterior: escolhe-se a maior parte das cenas com antecedência. Podemos decidir não pôr determinadas coisas, porque não podemos fazer filmes de quatro horas, mas muita coisa fica montada já no papel.
 
ST: Uma parte do vosso trabalho, a redescoberta dos arquivos, entrelaça-se com essa "nova filologia" cinematográfica que levou, nos últimos anos, à descoberta e ao restaurou de obras do cinema mudo que se pensava tivessem desaparecido para sempre.
 
ARL: Nós utilizamos os arquivos para criar filmes completamente novos, diferentes do significado original, tornamo-los filmes nossos. Entramos no mundo da filologia pura apresentando os nossos filmes no Festival de Pordenone, na presença dos arquivistas das cinematecas da FIAF. Houve algum burburinho, mas depois perceberam.
 
YG: O período mais difícil foi o princípio da década de 80, porque as pessoas não percebiam como é que num filme pudessem caber muitos filmes; o único jogo que os espectadores faziam era o de reconhecer as citações, e isto parecia-nos muito restritivo. Todavia, de um certo ponto de vista, por trás dos nossos filmes está também um cuidadoso trabalho filológico. Nós analisamos em pormenor e catalogamos todos os filmes que nos interessam, contando até os fotogramas que compõem uma sequência. Fazemos descrições quase completas, sabemos exatamente como começam e como acabam todas as sequências. De qualquer maneira, a pesquisa filológica não passa de uma base para o trabalho.
 
ST: O último elemento do catálogo, por enquanto, é a vossa pesquisa sobre os "Arquivos italianos".
 
YG: Ainda queremos trabalhar sobre o fascismo. Queremos continuar para depois acabar. Gostaríamos de preencher estes anos italianos que vão da primeira guerra mundial ao pós-guerra e depois mudar. E fechar também a experiência de trabalhar com os arquivos. O facto é que precisa também de filmar imagens suas.
 
*
 
"Reflexões" (sobre País bárbaro), de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi
 
Um filme vital para nós neste momento, sobre fascismo e colonialismo italiano na África.
 
O nosso trabalho é uma luta contra a violência e a guerra. Às vezes nos perguntamos porque continuamos a lutar. A Itália moderna está passando por coisas que nos deixam estarrecidos. A Europa cometeu suicídio com duas guerras mundiais e ditaduras aterrorizantes.
 
Com nossa "câmera analítica", voltamos a pesquisar em acervos de cinema filmagens da Etiópia-Abissínia durante o período do colonialismo italiano. Encontramos vários filmes amadores feitos por um médico.
 
Erotismo colonial. Os corpos nus das mulheres e o "corpo" do filme. Planos aéreos da terra. Os aviões bombardeiros estão carregados com gás mostarda, cujo uso foi sempre negado. Filmagens inéditas dos acervos militares mostram os homens e as armas da violenta expedição italiana para conquistar a Etiópia (1935-1936). "Nessa terra primitiva e bárbara, chega agora a era da civilização."
A história da imagem de Mussolini na África. Comunicação em massa através das características físicas de sua personalidade. A imposição da ideia de que um chefe de Estado tem que se apresentar como um ícone forte e incomparável.
 
Cenas do cadáver de Mussolini na Piazzale Loreto em 1945, após a Libertação. Enfrentamos o último e dramático capítulo do Fascismo. O ator principal é a multidão compacta que surge, pula, atropela, grita, levanta os braços para atrair atenção, como se estivesse libertando-se do medo da guerra, do medo de uma ditadura...Antes, não era a mesma multidão que...? Agora, alguns punhados levantados. A câmera não registra os atos obscenos, vergonhosos ou vulgares que dizem que ocorreram no dia. O país inteiro está lá. Imagens do negativo original do filme que foram gravadas em estoque 16 mm no dia 29 de Abril de 1945 e que não foram apreendidas pelos Aliados. Existem 80 metros de imagens filmadas ao longo do dia. Não há adições, apenas os cortes da película editada em uma máquina. O rolo ficou imaculado e foi encontrado em uma embalagem de lenço de papel amarelado.
 
Após estas imagens perturbadoras da Piazzale Loreto, voltamos para os dias iniciais da conquista imperial em uma atmosfera ensolarada. Muito tempo atrás, em 1926, na Líbia. O ano napoleônico do Duce. Celebrações enormes e custosas como propaganda. Fascismo é racismo: civilização contra uma "raça bárbara" (antes de tratar do colonialismo italiano na África oriental).
 
A Etiópia é uma terra cristã com um imperador, Haile Selassie, que tem que ser removido por qualquer meio possível, inclusive decapitação. O país tem que ser "civilizado". Estradas são construídas para o exército conquistador. Os etíopes são esmagados, assassinados, torturados, estuprados, se tornam "pequenos rostos negros", presas fáceis para os soldados, simplesmente devido à fome.
 
Embora alguns na Itália foram forçados a ir para a guerra, haviam outros - futuristas, os ousados, os "camisas negras", voluntários guiados por chefes vulgares e violentos - que queriam mostrar a sua violência beligerante. Eles lutam contra pessoas armadas com arco e flecha, lanças e alguns rifles antigos reciclados do Oeste (armas "modernas"). Tanques, metralhadoras e artilharia são as armas do grande exército de "libertação". Todos os nativos são rebeldes. A arma inovadora, por seu poder e velocidade, é o avião.
 
Nós temos um álbum encadernado em pele de píton que contém as fotos de um trabalhador qualificado, com um Caproni, a empresa que construía aviões. Nossos olhos descobrem o mundo de um trabalhador que pega a oportunidade econômica, a promoção social e aceita viajar para África oriental, seguindo a conquista colonial italiana para ajudar com o trabalho a ser feito. Ele é onívoro, fotografa tudo, nada escapa dele: ele também quer tomar possessão da África, adicionando uma dose de exibicionismo camaleônico. Ele captura o mundo natural, as paisagens, as árvores enormes e estranhamente formadas, os desfiladeiros, os desertos e os amplos rios. Como alvos esperando para serem atingidos, ele registra os prédios raros e as habitações da população nativa. Ele documenta topograficamente a terra que parece ter sido "lavrada", após os bombardeios.
 
Como uma metáfora para o instrumento-arma típico de seu trabalho, ele imortaliza pássaros com grandes asas, já mortos. Depois da flora e da fauna, seu olho captura os nativos. Homens, mulheres, crianças. Um jornalista inglês relata que "Os italianos gostam de ser fotografados com crianças". Sua "esposa-mãe" dá à luz uma criança a cada uma de suas viagens para terra natal. Ele a registra como noiva, de bicicleta, em uma paisagem de planície, perto dos lagos do norte da Itália. O plano final é dela em frente ao mar, sozinha, com três filhos. Apesar da pobreza que reina na Itália, ele pode mandar sua família de férias. Ele intercala sua vida na África com outras mulheres etíopes e brancas que seguem o exército. Este homem pertence a uma outra "unidade do exército", aquela dos trabalhadores. O que o levou a participar? Primeiramente e acima de tudo, a ausência de preocupações, o aspeto financeiro, a camaradagem, o erotismo exótico, a necessidade de não pensar. Nós refletimos: O sucesso do Fascismo reside aqui? Uma outra pergunta surge enquanto examinamos o rosto deste exibicionista incansável: Ele sabia do significado total da guerra e de seus horrores, dos crimes e crueldades em que participou? E do preço pago por outros seres humanos? Ele aparece nas fotos em vários disfarces: trabalhador, caminhoneiro, caçador, aviador, metralhador, amante latino, pai amoroso, com mudanças de uniforme, como em um caleidoscópio carnavalesco. Em uma foto, ele olha de um avião com uma arma pequena e atira nos nativos trabalhando nos campos. Aparentemente, este era um dos esportes mais emocionantes. Uma dose de racismo saudável. Ele é o novo homem que todo ditador gostaria de moldar. Forjado pelo Fascismo. Ele imita seus líderes, que são seus emblemas, seus modelos. O álbum conclui com as fotos dos líderes na África oriental, que não escapam de sua lente insaciável. Na imagem final: Ciano faz a saudação fascista.
 
Os Ascari merecem seu próprio capítulo. Eles integram as tropas coloniais que seguem o exército italiano. Nesta guerra, os muçulmanos da Eritréia e da Líbia são usados contra os cristãos da Etiópia. Esta prática começa com uma guerra religiosa, ou melhor, religião usada como uma arma de guerra.
 
Estas palavras também se aplicam ao presente.
 

 
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