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"Todo mundo entende o espaço de forma diferente"

 
A entrevista a seguir com Heinz Emigholz foi conduzida por Christoph Terhechte na Akademie der Künste, em Berlim, logo após a estréia de Streetscapes [Dialogue] e mais três filmes de Emigholz no Festival de Berlim em 2017. A tradução para o português e a publicação tem o consentimento do Arsenal - Institutfürfilmundvideokunste.V.. A versão original da entrevista pode ser encontrada no site do Arsenal-Berlin. Mais informações sobre o cinema de Emigholz podem ser lidas em alemão e em inglês no site do artista, pym.de.
 
Terhechte: No filme Streetscapes [Dialogue], você encena uma conversa com o analista Zohar Rubinstein diante de prédios de Eladio Dieste e outros, com o ator americano John Erdman no papel do cineasta e o diretor argentino Jonathan Perel no papel do analista. A conversa foi pensada desde o início como material para algum tipo de roteiro?
 
Emigholz: Não. Isso surgiu apenas ao longo dos cinco dias de conversa, o que é algo inusitado sobre o filme: é durante a própria conversa que o diretor concebe a ideia de fazer o filme que estamos assistindo. É neste momento que uma inversão temporal acontece. O filme mostra um processo que é de fato impossível mostrar. Quando começamos, perguntei para Zohar se eu podia gravar nossa conversa, pois eu estava preocupado com a possibilidade de esquecer algo. Isso obviamente vai contra o padrão da prática psicanalítica. Mas como ficou evidente que não íamos fazer um tipo de psicanálise clássica, mas mais uma intervenção ou "maratona" (como ele a chamou), não houve nenhum problema.
 
A conversa entre vocês dois também se desenvolve em torno de bloqueios criativos e a força que é necessária para terminar um trabalho. O que motivou você a fazer quatro filmes ao mesmo tempo?
 
Na verdade, os quatro filmes foram feitos ao longo de três anos. Filmei 2+2=22 [The Alphabet] em outubro de 2013, mas não sabia o que fazer com o filme, então deixei na gaveta. A conversa com Zohar me deu a solução de como os filmes poderiam ser conectados. O diálogo com o psicanalista é obviamente a chave para os outros filmes. Mantive apenas as partes que tinham a ver com cinema. Comecei com 260 páginas e terminei com 60. A estrutura básica é uma análise de como fazer um filme que acaba se tornando um novo filme. Meus filmes sobre arquitetura são frequentemente criticados por não incluírem textos, por mostrar espaços sem dar explicações. Isso é o que acontece agora no terceiro filme do quarteto. Em Streetscapes [Dialogue], o cineasta fala sobre o que faz sentido para ele quando está filmando. Assim, os quatro filmes se explicam uns aos outros.
 
Você uniu seus filmes sobre arquitetura com o nome de Fotografia e além. Por que fotografia e não cinematografia?
 
Eu faço os enquadramentos e enquanto estou preparando a imagem, Till Beckmann cuida dos aspetos técnicos para o resultado da imagem ser perfeito. Eu vejo o enquadramento como um ato fotográfico: definindo o quadro com plena consciência do que se vai filmar ou já se filmou. É uma decisão cinematográfica, mas ao mesmo tempo, eu acho que cada imagem individualmente deve ser composta de maneira tão concentrada que possa existir de forma autônoma, ao invés de simplesmente preencher um buraco ou se encaixar na montagem. É o mesmo esforço composicional que existe na fotografia. Mas o elemento do tempo também tem um papel. Duração e montagem são sempre uma intervenção sobre a construção do tempo, quase como na ficção cientifica.
 
Esta abordagem do enquadramento também se tornou uma espécie de marca registrada sua. A fotografia arquitetônica é tipicamente muito mais conservadora do que a sua maneira de entender espaços fotograficamente.
 
Isso surgiu, em parte, com meus longas-metragens de ficção. O prado das coisas (1988) e O bando sagrado (1991) já tinham grande foco em arquitetura, com a única diferença sendo que ainda tinham atores andando e falando. Mas eu queria evitar relações de figura e fundo, pois eu sentia que o então chamado fundo era tão importante quanto a figura. Quando eu me livrei dos atores, eu pude, claro, focar muito mais nos espaços. Todo espaço tem uma linguagem particular, e cada um tem uma percepção particular dela. Você se aproxima aos tais espaços, que também existem na trilha sonora, claro, e coloca o seu corpo dentro de cada um, por assim dizer. A fotografia surge a partir da minha reação ao lugar. Felizmente, eu não tenho o mesmo problema que a fotografia arquitetônica, em que tudo tem que ser encapsulado dentro de três imagens. Tenho sequências inteiras e então posso fazer remontagens de espaços muito complexos. Você pode chamar isso de uma marca registrada, mas tais filmes não existiam antes. O primeiro deles passou na mostra Forum [no Festival de Berlim] em 2001. Os filmei na década de 1990 e pensei que era uma ideia crucial, mas também simples, entrar em prédios e mostrar como os quartos se desdobram por dentro. Achava que já existiam milhares de filmes assim, mas não existiam. Não quero usar aquela expressão tola "proposta exclusiva de venda"(unique selling point), mas o que você chama de marca registrada simplesmente se desenvolveu a partir da lógica que eu aplico ao espaço. Todo mundo entende o espaço de forma diferente.
 
Se eu posso fazer uma relação entre você e o protagonista de Streetscapes [Dialogue], que claro, é um filme de ficção, então você se descreve como um nômade igualmente capaz de estar em Berlim ou em um quarto de hotel em Montevideo com o qual você não tem nenhuma conexão real. Mas a arquitetura pressupõe o verdadeiro oposto disso. Seja a arquitetura pública como a Akademie der Künste, onde estamos atualmente, ou a arquitetura residencial: os prédios são imutáveis, eles buscam criar um lar.
 
Às vezes eu fantasio sobre como seria morar na casa em que estou filmando. Às vezes é um pensamento horrível. A arquitetura assume tantas funções diferentes. A arquitetura kibutzim de Bickels, por exemplo: eu adoraria ter vivido em tal contexto. Mas este contexto mal existe atualmente, ou ainda não ressurgiu. O que acho interessante sobre as várias arquiteturas que tenho na minha cabeça atualmente é que posso reclinar e dizer dentro de mim: agora posso lembrar exatamente como foi a sensação de estar em um lugar ou outro. É como tirar férias dentro de sua própria mente - graças à estranha capacidade do cérebro de evocar espaços novamente. É uma sensação tranquilizadora. Mas estou interessado em uma grande variedade de construções, especialmente em relação ao cinema, e não numa casa de sonhos construída especificamente pra mim. E estou igualmente interessado em todos os vários aspectos relacionados com a construção: habitação social, habitação cultural, pontes, estruturas de engenharia. Me interesso por pontes, mas não gostaria de morar em baixo de uma.
 
Você às vezes sonha com arquitetura?
 
Sim, muito, e o meu próximo projeto trata justamente disso. Sobre a gramática dos sonhos, saltar para frente e para trás no tempo ou invertê-lo, a experiência de rupturas num sonho e a impossibilidade dele se repetir. E a arquitetura sempre tem um grande papel nos meus sonhos, assim como construções de uma natureza ameaçadora. Também tratei disso na conversa com Zohar Rubinstein.
 
Como você escolhe os arquitetos a quem dedica seus filmes? Me lembro de um encontro nosso em Buenos Aires, quando o festival BAFICI estava acontecendo em um antigo mercado central convertido cuja arquitetura concreta te fascinou.
 
Eu nunca tinha ouvido falar do arquiteto Viktor Sulčič. Após ver o prédio, fui para o arquivo da cidade pesquisar o que ele construiu em Buenos Aires. Depois visitei tudo. É assim que acontece. Não sigo nenhuma guia chamada "A arquitetura mais importante do mundo", ou algo assim. Adoro espaços complicados, e alguns arquitetos são capazes de construi-los, outros não. Eu não me interesso por artistas de fachada, mas por prédios que são construtivos. Antigamente eu tinha uma lista de favoritos, mas sempre surgiam novos nomes, como Bickels e Sulčič. Também consulto fotos, antes de fazer viagens de pesquisa, e frequentemente não reconheço os prédios nas fotos, pois eles são tão distorcidos por intervenções fotográficas como lentes grande-angulares, que me passam uma sensação de espaço completamente diferente quando estou no lugar. E isso é o meu tema: você tem que estar lá para poder reconhecer. Estou fazendo essas viagens faz décadas agora, são extremamente importantes pra mim. Você vai com uma equipe pequena, não há pressão e você tem tempo para se engajar de forma adequada. Foi um período maravilhoso para mim. Tinha tanto para descobrir. Estou de saco cheio do auto engrandecimento do cânone arquitetônico moderno, pois há tantas descobertas esperando para serem feitas. Há poucas pessoas engajadas no assunto.
 
Em seu filme Bickels [Socialism], você enfoca mais no uso dos lugares do que em seus outros filmes sobre arquitetura. Eu pude sentir a sua sensação de melancolia sobre algo sendo construído para uma função que não existe mais.
 
Eu descobri Bickels por acidente porque achei inacreditável a maneira em que a luz é projetada em seu museu em Ein Harod, e me lembraram que Renzo Piano adotou o mesmo esquema no museu que construiu em Houston, Texas. Bickels era um homem muito erudito, a biblioteca dele é parte do museu em Ein Harod. Mas o principal interesse dele era as necessidades particulares de kibutzim e prédios culturais. Ele também se interessava pela maneira como os prédios se relacionavam - praças públicas, os vários teatros e salas de cinema, que agora ficam vazios com a imposição da televisão. Isso me interessou mais e mais: Como se situa o momento de socialização dentro do kibutz? A cultura é extremamente importante no movimento de kibutz. Bickels mostrou uma criatividade considerável ao trabalhar continuamente em novas soluções que eventualmente foram aplicadas em algum kibutz. Também é interessante o fato dele ter trabalhado nisso com toda a comunidade. Não foi um arquiteto-celebridade que chegou e simplesmente construiu algo, e, sim, tudo foi discutido com muita precisão: O que precisamos? O que está em conta? O prédio deve ter quais dimensões? Qual é o status dele dentro de nossa comunidade? É uma forma utópica de construção. É o oposto da construção tradicional, na qual frequentemente um prédio é essencialmente uma escultura do arquiteto. Eu detesto quando o escultural se apresenta assim. É por isso que o quarteto carrega o nome de "Streetscapes", pois se trata de estar na rua e ver o que atrai o olhar. Nenhum prédio individual está isolado para ser apresentado como obra-prima.
 
O epílogo do quarto filme, Dieste [Uruguay], mostra as obras que este arquiteto uruguaio realizou na Espanha no final de sua vida. Elas parecem paródias de seus prédios no Uruguai.
 
São versões menores das igrejas que vimos no Uruguai, mas na Espanha elas não funcionam. Talvez são mais fotogênicas por serem menores e mais compactas, mas sempre ouvimos as pessoas na Espanha dizerem que são inúteis. São muito quentes no verão e muito frias no inverno, e a congregação reza no porão, pois em cima o clima é insuportável. Em seus últimos anos, ele simplesmente se repetiu estilisticamente. Mas quando se vê a Igreja de São Pedro em Durazno, na qual os hexágonos de tijolo se sobrepõem, e depois na Espanha com vidro reforçado - menor, mas também, mais pesada - se reconhece a história de um arquiteto que seguiu fielmente seu conceito formal, mesmo quando ele deixou de funcionar.
 

SINOPSE
 
Streetscapes [Dialogue]
Heinz Emigholz
Alenanha, 2017, 132 min, DCP

 
Streetscapes [Dialogue] é a terceira parte de um quarteto de filmes do diretor alemão Heinz Emigholz chamado Streetscapes, lançado no Festival de Berlim em 2017. A série abre com 2+2=22 [The Alphabet] que registra a gravação, na Geórgia, de um álbum da banda de música eletrônica alemã Kreidler, intercalando com cenas da cidade de Tbilisi, páginas dos diários ilustrados de Emigholz e reflexões filosóficas sobre urbanismo e arquitetura. Bickels [Socialism] (que conta com um prólogo filmado no centro cultural judaico Casa do Povo, em São Paulo) é um passeio por edifícios do arquiteto polonês Samuel Bickels, construídos em kibutzim israelenses entre 1948 e 1976. Dieste [Uruguay] observa silenciosamente os prédios do arquiteto uruguaio Eladio Dieste, seguindo a cronologia de suas construções no Uruguai e na Espanha. Streetscapes [Dialogue] encena uma conversa entre um cineasta e seu analista enquanto passeiam por construções de Dieste, Julio Vilamajó e Arno Brandlhuber.
 
O cineasta e o analista são interpretados respectivamente pelo ator americano John Erdman e pelo documentarista argentino Jonathan Perel. O diálogo se baseia em uma "maratona terapêutica" que o próprio Emigholz realizou com Zohar Rubinstein, um israelense especialista em tratamento de traumas e corroteirista do filme. A conversa começa com memórias da infância e da formação do cineasta, ambientadas em Bremen, Hamburgo e Nova York, e segue pelos diferentes rumos que seu trabalho tomou - do cinema estruturalista para o narrativo e o observacional, explorando consistentemente a arquitetura e o urbanismo. O filme coloca os dois personagens em conversação em diferentes paisagens, sem estabelecer uma relação direta com elas, criando um ambiente surrealista que culmina na idealização da própria obra cinematográfica da qual eles fazem parte. Streetscapes [Dialogue] terá sua estreia brasileira no IMS.
 
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