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"Homem de mapas"

 
A entrevista a seguir com Jonathan Perel foi conduzida por Michael Pattison e originalmente publicada em inglês no site Reverse Shot em janeiro de 2016. O texto foi traduzido para português com o consentimento do autor. Outras duas entrevistas interessantes com Perel em espanhol sobre Toponímia podem ser encontradas no site Asaeca e no site Débordements .
 
Reverse Shot: Toponímia é um filme muito específico, no sentido geográfico. O quão a história da região é conhecida na Argentina?
 
Jonathan Perel: É praticamente desconhecida, mesmo nos círculos de investigação acadêmica. O estranho é que estas aldeias estão no meio da floresta, 20 ou 30 quilômetros da estrada principal, então é difícil até para as cidadezinhas ao redor conhecer estes lugares. Li sobre as aldeias em um texto acadêmico sobre pessoas que desapareceram em Tucumã. Foi apenas uma nota de rodapé sobre quatro aldeias com nomes militares. Pesquisei na Internet e não encontrei quase nenhuma imagem. Quando não há informações na Internet, é um bom tema para um filme.
 
É possível ver nas plantas baixas das aldeias como os militares impuseram uma espécie rigidez sobre este espaço preexistente. Com qual rapidez o seu filme chegou à uma estrutura similar?
 
Quando descobri que os planejamentos das aldeias eram iguais, ficou muito evidente para mim que eu devia filmar os mesmos planos em cada aldeia. Fiz um filme anterior chamado 17 monumentos sobre monumentos construídos nas entradas de ex-campos de concentração na Argentina. Nele, eu filmei cada monumento com exatamente a mesma lente e distância, e sempre na mesma hora do dia. Esta ideia de minimalismo e repetição ficou muito clara, então quando descobri as aldeias, fez todo sentido usar o mesmo sistema. Foi um processo lento e delicado filmar nelas, pois existem apenas 300 a 400 residentes em cada uma. Se as pessoas não vão com a sua cara no início, você tem que sair. Pode ser difícil em lugares pequenos. "O que esse cara está fazendo com uma câmera, filmando nossas casas?"
 
Então você aparece em cada aldeia com uma equipe de um homem só, um tripé e uma câmera?
 
É uma equipe de um homem só. Sem técnico de som, sem produtor. Chego em um carro alugado, que já é algo estranho, e falo com o delegado da população sobre o que estou fazendo. Sei como colocar a câmera em um tripé e falar com as pessoas, pois eventualmente elas gostam do que está filmando. Não é que elas não gostem. Mas foi um processo lento. Primeiro, tirando fotos, e depois filmando. Passei uma semana em cada aldeia. Eu ia um dia e voltava dois dias depois em horários diferentes. Sabia que as aldeias eram exatamente iguais - eu tinha as plantas e os mapas - mas eu não sabia o que filmar. Vamos dizer que eu vou para a primeira aldeia. Filmo a entrada, cada rua, cada casa. Mas depois disso eu encontro um estranho formato de guarda-chuva na praça, e não tenho certeza do que é. Talvez eu não o registre. Mas quando vou para a segunda aldeia, encontro o mesmo guarda-chuva estranho e digo, "OK, esta é uma repetição. Tenho que filmá-la. Tenho que voltar para a outra aldeia e filmar". Este processo continuou por um mês, encontrando novos lugares talvez na terceira aldeia. Ou ao contrário: encontrando coisas na primeira e na segunda, mas não na terceira. Um relógio de sol, por exemplo: "Onde está o relógio de sol?"
 
Parece um pouco caótico. Em algum momento você começou a idealizar o filme com mais precisão matemática?
 
Fiz algumas listas das coisas que descobri, uma planilha de Excel com colunas e cores, dizendo, "Preciso filmar isso, isso e isso". Talvez eu tenha visto algo, mas não filmei. Talvez eu tenha que voltar para refilmá-lo por conta da luz, ou seja lá o que for. Toda hora eu estava verificando o material que eu tinha filmado e fazendo anotações e voltando para os lugares. Isso é algo que eu tenho feito em todos meus filmes, lidar com ideias e coisas para filmar que possam ser filmadas por longos períodos - voltar e refilmar. Eu refilmo muito por não gostar da luz ou do enquadramento. Eu fiz um filme chamado Tabula rasa que mostrou a demolição de um prédio em um ex-campo de concentração, e foi muito difícil pra mim porque eu não podia voltar outro dia e filmar de novo. Prefiro coisas como Toponímia.
 
A estrutura do filme é muito instigante. Não há fade-outs ou superimposições, e as cenas correlativas são distintas umas das outras. Não é imediatamente óbvio o que tudo isso significa.
 
É algo que descobri logo no início do processo de montagem. A decisão óbvia seria mostrar a entrada da primeira aldeia e depois a entrada da segunda aldeia, para transmitir as semelhanças imediatamente. Mas eu achei injusto fazer isso com o espectador. Prefiro dar às pessoas uma oportunidade - vou te dar um capítulo, e quando o segundo capítulo começar, você vai fazer o seu trabalho e associar ao anterior. Talvez não seja fácil no segundo capítulo. O processo se torna mais fácil no terceiro e ainda mais fácil no quarto. No final, a estrutura fica muito evidente. Mas eu acho que o filme ficaria muito óbvio se os planos fossem sempre os mesmos, um após o outro.
 
E os planos sempre têm a mesma duração?
 
Sempre. Os planos nos meus filmes sempre têm as mesmas durações, mas elas diferem de um filme para outro. Neste, eu não quis que fossem longos. Eles têm por volta de 15 segundos. É o mínimo. Não consigo fazer este filme com planos com menos de 15 segundos. Uma decisão editorial difícil foi estabelecer a mesma duração para todos os capítulos, pois quando você já viu o primeiro capítulo não precisa da mesma duração no segundo. Talvez possa ser mais curto, e o terceiro mais curto ainda, pois você já conhece os enquadramentos. Mas isso também seria uma traição ao meu espectador. Talvez seja necessário mais tempo ainda, pois está comparando o plano atual aos planos anteriores. Talvez deveria ter sido mais longo.
 
É quase como se cada imagem te atraísse e justamente quando o significado dela começa registrar, cortamos para a imagem seguinte. É uma ruptura violenta, e grande parte disso, eu acho, tem a ver com o som. Você não usa transições. Os cortes são secos.
 
Não gosto destas manipulações. É como uma obra cartográfica, ou um filme-mapa. Não manipulo o som em si, mas manipulo os níveis dele. Às vezes escolhi os 15 segundos basicamente por conta do som.
 
Há uma discrepância entre o quão explicitamente diferentes as plantas são e o quão similares as aldeias são.
 
Quando você está no nível da rua é mais difícil ver que não são todas exatamente iguais. A única questão foi filmar ou não em cima da torre. É preciso de um plano aéreo para realmente enxergar as diferenças. Eu poderia acessar apenas uma torre, então, não fez sentido incluir um plano de lá. Tive muita sorte com os documentos. Eles estavam no escritório cartográfico da capital de Tucumã.
 
Vejo uma fascinação sua com cartografia e arquitetura. O que te atrai sobre mapas e plantas baixas?
 
Eu amo todo tipo de desenho ou dispositivo que seja possível usar para descrever a realidade de maneira abstrata, mas ao mesmo tempo, precisa. Quando eu gosto de um prédio, eu olho para as plantas para realmente entendê-lo.Posso entender um prédio melhor ao ver uma imagem em duas dimensões, ao invés de uma perspectiva. Eu gosto dessas formas objetivas de explicar a realidade.
 
Além dos quatro capítulos, Toponímia tem um epílogo filmado na floresta que é mostrado sem explicação.
 
Eu gosto de explicá-lo. No começo eu queria que o filme se passasse metade nas aldeias e metade na floresta. Muitas pessoas me falaram que o filme poderia terminar sem o epílogo. Para mim ele é muito importante. Volto para os resquícios das ruínas das antigas aldeias que foram destruídas para deslocar as pessoas para as aldeias atuais. O que encontrei talvez seja apenas uma pequena casa, ou algumas pedras no chão. Não dá para direcionar o olhar porque é uma floresta, ao invés do restante onde se está olhando para um monumento ou para objetos bem específicos no meio do quadro. Esta ideia de não saber para onde olhar dentro de uma imagem é muito importante em termos políticos. É o espaço da revolução, onde as guerrilhas escolheram se esconder dos militares para criar uma força armada e assumir o governo. Era um lugar de liberdade, então, eu precisava concluir o filme lá. Senão, seria um filme que os próprios militares poderiam ter feito para mostrar suas ações.
 

SINOPSES
 
Toponímia
Jonathan Perel
Argentina, 2015, 82 min, DCP

 
No início da ditadura militar argentina, quatro vilas idênticas foram construídas na área rural da província de Tucumã, com o intuito de agrupar a população local de camponeses e combater o movimento de guerrilha que crescia na região. Elas foram nomeadas em homenagem a militares que morreram na Operação Independência, a campanha de luta armada contra os insurgentes iniciada pelos militares antes da ditadura se estabelecer em 1976. As aldeias de Teniente Berdina, Capitán Cáceres, Sargento Moya e Soldado Maldonado ainda existem, com pequenas populações, e são os principais locais que o documentarista Jonathan Perel examina em seu terceiro e mais recente longa-metragem, Toponímia, cujo título designa o estudo de nomes de lugares.
 
O prólogo do filme apresenta documentos e imagens de arquivo que justificam a construção das vilas e descrevem suas estruturas gerais, organizadas em áreas verdes, praça, centro comercial, complexo desportivo e complexo industrial. A jornada seguinte, ordenada em quatro capítulos simétricos que percorrem cada vila, começa com a apresentação da planta baixa original, em que se lê uma breve descrição de tom explicitamente ideológico. As cenas atuais, registradas com câmera fixa e som ambiente, são de locais bucólicos, ocupados por crianças e adultos que caminham, jogam bola e andam de bicicleta por ruas largas e arborizadas. Ainda que visivelmente deteriorados, os espaços coletivos sobrevivem e carregam uma certa harmonia pacata. A lembrança militar persiste tímida em pequenos monumentos, que parecem ter sido descontextualizados pela passagem do tempo. Ainda que fruto de uma história opressiva, a realidade desses lugares subverte o contexto original de sua fundação.
 
5-T-2 Ushuaia
Jonathan Perel
Argentina, 2016, 4 min, DCP

 
O último filme de Perel foi produzido para a Bienal de la Imagen en Movimiento e terá sua estreia brasileira no IMS. 5-T-2 Ushuaia segue com o interesse do cineasta no legado da ditadura militar na sociedade argentina atual, ao observar as ruínas de aviões utilizados em assassinatos de prisioneiros políticos. Ele mostra que os chamados "voos da morte" - nos quais prisioneiros políticos eram arremessados vivos em alto-mar - se transformaram em provas no processo de investigação de crimes contra a humanidade.
 
5-T-2 Ushuaia passará no IMS junto com Toponímia. Perel está atualmente trabalhando em um novo longa-metragem, chamado Responsabilidad empresarial, sobre um relatório escrito pelo Ministério de Direitos Humanos da Argentina que detalha 25 casos de empresas privadas que reprimiram seus empregados durante a ditadura.
 
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