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"Entrevistas com Márta Mészáros"
O texto a seguir é uma seleção de trechos de entrevistas realizadas com Márta Mészáros pela pesquisadora e professora universitária norte-americana Catherine Portuges, em Budapeste, entre 1988 e 1992. As entrevistas foram publicadas em 1993, no livro de Portuges Screen Memories: The Hungarian Cinema of Márta Mészáros - até hoje, a maior referência para estudos da cineasta na língua inglesa. O material foi traduzido de inglês para português com o consentimento de Catherine Portuges. Catherine Portuges: O que é importante para você como cineasta? Márta Mészáros: Você precisa entender que amo muito minha profissão - fazer cinema é minha vida. Mas é extremamente difícil para mim avaliar a qualidade e profundidade dos meus próprios filmes. Percebo que atenção está sendo dada aos meus filmes em todo o mundo. Foi assim que entendi que devo continuar na minha profissão, na minha vocação. Em tudo que faço, busco o máximo de honestidade e veracidade. Todas as minhas energias estão direcionadas para evitar mentiras. Vejamos o exemplo do cinema norte-americano: uma indústria profissional de contação de histórias. Em contraste, a nossa indústria da Europa do Leste pode ser chamada de "uma indústria cinematográfica pessoal". É importante ser capaz de falar honestamente sobre a época em que se viveu, e se você conseguir fazer isso de uma forma que atraia o grande público, então você é um sucesso. Quando você escreve o seu livro sobre mim, seria particularmente urgente que salientasse que, na Europa do Leste, os filmes não deveriam ser feitos apenas por realizadores homens. Não quero fazer discursos sobre a emancipação das mulheres, porque não faço parte desse movimento, mas filmes feitos por mulheres apresentam um tipo diferente de sensibilidade. Se interpretar os meus filmes como sendo estritamente políticos, verá que abordo as relações de poder de forma diferente da retratada pelos homens. Não porque os meus filmes sejam necessariamente melhores e os deles piores, mas são simplesmente diferentes. É preciso estar ciente disso. Portuges: Como é que você descreveria esta diferença? Mészáros: Tudo se resume às diferenças entre uma mulher e um homem. Acho que a mulher tem uma visão de mundo diferente, uma sensibilidade e uma relação especial com as pessoas, com os objetos, com o poder, com as crianças… Biologicamente e neurologicamente, uma mulher tem uma constituição diferente. E, se ela conseguir retrabalhar essa diferença de forma verdadeira e artística, e transmiti-la ao público, então o processo em si será extremamente emocionante. Eu acredito nisso. Portuges: Essa sensibilidade diferente resulta em um filme com aparência diferente? Mészáros: Sim. Tem uma forma diferente. Vamos pegar um exemplo literário e comparar Marcel Proust com Virginia Woolf. Eles podem trabalhar na mesma arte, mas quando você os lê, fica ciente das disparidades entre os trabalhos. O mesmo se aplica à arte cinematográfica. Se você quer ser um verdadeiro artista - um "autor" - então deve ser capaz de confrontar a realidade desta sensibilidade feminina. Portuges: O que é esta sensibilidade feminina? Mészáros: Pensamos o mundo de outra forma, até um certo ponto. Biologicamente, nós fomos feitas para perpetuar a raça humana e não para seguir carreiras. Devemos dar à luz e ter filhos. Você também pode comparar a criatividade masculina ao parto. Quando uma mulher dá à luz, também é um ato criativo. Artistas muitas vezes equalizaram as duas coisas: escrever um poema ou fazer uma escultura são comparáveis ao parto. Portuges: Uma das coisas que tem sido ditas na última década sobre as mulheres diretoras é que a temporalidade parece ser expressa de forma diferente. Isso é verdade para você? Mészáros: Sim. Sentimos o tempo de maneira diferente. Há um problema, contudo, em falar sobre a ligação entre as mulheres e o cinema. O cinema está relacionado com dinheiro e propaganda, e dinheiro é poder. É por isso que as mulheres recebem tão pouco dinheiro para fazer filmes. Se você escrever um poema ou um romance, ele será publicado ou não - isso não envolve grandes quantias. Mas no nosso século as mulheres alcançaram grandes ganhos, e posso dizer que, durante a minha vida, eu já vi imensas mudanças. O que anteriormente demorava séculos para ser conquistado, no nosso século demora apenas décadas - o nosso século é acelerado. Processos semelhantes ocorreram na Hungria na relação entre as mulheres e as artes. Mulheres de certos estratos intelectuais conseguiram alcançar uma base econômica sólida que agora lhes permite o luxo de serem artistas e também mães, ao passo que, anteriormente, isso não era possível. Mulheres pobres confinadas a papéis reprodutivos às vezes, secretamente, produziam diários ou versos, ou, se elas conseguiam maridos ricos, atendiam às necessidades deles. Tudo isso está agora passando por mudanças. Pode ser interpretado como um fenômeno mundial, mas a situação húngara é um pouco mais complicada do que no Ocidente, porque aqui a pobreza ainda é galopante e os nossos valores morais estão atrasados, ainda enraizados na tradição. Português: As relações entre homens e mulheres estão mudando na Hungria? Mészáros: De uma certa forma, sim, mas ainda existem muitos obstáculos. Por exemplo, as condições materiais e financeiras são tão difíceis que oitenta a noventa por cento das mulheres na Hungria são forçadas a ingressar no mercado de trabalho. Caso contrário, a família não poderá sobreviver. Isso reestrutura o tecido da vida familiar e, ao mesmo tempo, agrava a exploração das mulheres. É uma questão muito complexa. Portuges: E no nível mais íntimo e pessoal, existem diferenças significativas nas relações entre homens e mulheres na Europa do Leste - e na Hungria em particular - em comparação com o Ocidente? Mészáros: Aqui as coisas são consideravelmente piores do que no Ocidente, porque tivemos muitas camadas de mentiras empilhadas sobre nós. A promessa original do socialismo era que seríamos todos iguais, e eles tentaram fingir, de forma simplista, uma igualdade que não funcionou. O mesmo aconteceria com a "questão da mulher": homens e mulheres deveriam ser iguais, mas nunca foi assim. As mulheres foram escravizadas para servir ao mesmo tempo a fábrica e a família. Até mesmo no nosso governo, você pode ver esse desequilíbrio, pois em algumas partes da Europa, observa-se uma participação muito maior das mulheres na política do que aqui. Na Hungria, a situação só agora está começando a mudar, mas ela progride muito lentamente. O slogan do partido era: "O que as mulheres querem? Já lhes disponibilizamos o fórum oficial - o Conselho Nacional da Mulher". Mas o CNM era uma organização que só existia no papel, sem valor para o Partido Comunista Húngaro, e as mulheres que trabalhavam nela nada mais faziam do que repetir slogans oficiais, sem prestar atenção aos verdadeiros problemas das mulheres húngaras: trabalho, família, escola, crianças. Os sindicatos húngaros têm a mesma relação com o poder que o Conselho tem. Obviamente devemos lutar para mudar tudo isso. Portuges: Seus filmes são frequentemente elogiados por retratarem personagens femininas que são duronas, fortes, comuns - mulheres "reais" que se recusam a aceitar mentiras. O que significa essa persistente demanda pela verdade em suas narrativas? Mészáros: Sempre me interessei por personalidades honestas e verdadeiras - o operário que trabalha oito horas diariamente, o artista e a mãe que cria três filhos. Nos homens, procuro indivíduos que possuam pontos de vista e visão de mundo próprios e firmes, que possam expressar paixão e angústia. Como diretora, estou especialmente interessada em mulheres com essas mesmas características. O que quero fazer no meu trabalho é ajudar as mulheres a tomarem consciência da sua existência, da essência da sua feminilidade. É isso que tento expressar nos meus filmes - a necessidade de torná-las conscientes da sua própria personalidade feminina. Portuges: Como o fato de ter sido casada com o cineasta Miklós Jancsó entre 1960 e 1973 afetou seu trabalho como diretora? Mészáros: O Jancsó me tornou húngara. Ele me ensinou o que é este país. Sem ele, o meu regresso da Romenia à Hungria teria sido muito mais difícil. Tínhamos uma relação muito próxima: pensávamos nas mesmas coisas, trabalhávamos nas mesmas coisas, ajudávamos a manter intactas as almas um ao outro. Ficamos casados durante catorze anos, e a relação foi interrompida por ele - nos divorciamos. E lá estava eu com todas as crianças que ocupavam meu tempo, e eu tive que criá-las. Não foi fácil, mas se for preciso, você consegue. Depois veio Jan Nowicki, que conheci em 1975 durante as filmagens de Nove meses. Fui à Polônia e conversei com Andrzej Wajda, que me deu uma lista de atores - o primeiro nome na lista era o de Nowicki. Seguiram as filmagens e, a partir daí, a vida doméstica. Sem ele, eu nunca teria concluído os filmes de diário. Foi ele quem sempre me disse que não vale a pena fazer um filme "entre duas refeições", porque adoro cozinhar. Segundo ele, é preciso fazer um filme a partir de algo que está dentro de você. Portuges: Você pode falar um pouco sobre sua relação com as figuras paternas e maternas tal como são representadas em sua obra - em particular, a ligação da criança e da menina com essas figuras? Mészáros: No meu filme Diário para meus filhos (Napló gyermekeimnek, 1984), o pai ausente se manifesta através da mentira. Por ter sido executado injustamente, ele tinha de ser negado em todos os momentos. Este episódio não é um equivalente exato ou uma reconstrução do que aconteceu com meu próprio pai, mas tive de lidar com esse tipo de negação e com a caracterização dele, ao longo da minha juventude, como uma "pessoa má". Ele foi representado para mim como um "inimigo" (ellenség), embora eu nunca tenha estado realmente me convencido disso. Essa mentira original e a subsequente negação dele como inimigo estão por trás do complexo paterno nos meus filmes, e foi essa negação que determinou os aspetos emocionais e racionais da minha vida na sociedade húngara. Assim, para mim, a importância do pai teve precedência sobre a da mãe. Eu estava conectada à minha mãe por meio de laços sentimentais e emocionais. Mas a sua imagem nunca esteve ligada à política para mim. Na Europa do Leste, não se pode separar a política da vida - é impossível, especialmente se você for artista e cineasta. Hoje, na minha idade, depois de ter passado por tanta coisa na vida, sei que em cada relacionamento meu eu procurava um homem "masculino", um homem com um ponto de vista. Obviamente, isso também faz parte do complexo do meu pai. Sempre abominei o tipo de homem que era muito sentimental ou frágil. Ainda acredito que o pai/homem representa controvérsia, discussão, debate. Mesmo na minha vida privada, rejeito um companheiro com quem não posso discutir ou gritar, que não defende firmemente aquilo em que acredita. Alguém que é unidimensional não me interessa muito - gosto de uma postura firme, contrária, de uma opinião diferente. Com Jan Nowicki, tudo o que ele sabe, eu não sei, e é por isso que me sinto tão atraída por ele. Preciso de uma perspetiva diferente da minha, de um estímulo diferente, de uma visão argumentativa de um homem, de alguém que me lembre de quem imagino que meu pai tenha sido. Mesmo com meus filhos Nyika e Muki, eu os respeito quando eles projetam seu eu individual e discutem comigo. Preciso saber que eles podem defender a si mesmos e o seu ponto de vista, mesmo que este se oponha ao meu. Portuges: Foi notável ver quantos dos seus primeiros documentários são sobre artistas. Esses filmes parecem ter uma visão individual mais visível do que alguns de seus outros filmes iniciais. O fato de seu pai ser escultor contribuiu com seu interesse pelo assunto? Mészáros: Talvez inconscientemente. Naquela época minha família era muito pobre. Eu precisava de trabalho, meus filhos eram pequenos, Jancsó não trabalhava e para mim era absolutamente necessário - fiz muitos filmes educativos e de natureza, com material pedagógico e científico. Alguns dos documentários de arte desagradaram aos círculos oficiais porque foram feitos numa época que não reconhecia a arte de vanguarda, como o trabalho da escola Szentendre, que foi considerada muito controversa, e artistas como Jeno Barcsay, que não foram reconhecidos por suas obras.Fico surpresa ao olhar para trás agora e ver que as pessoas ficaram tão chateadas com filmes que hoje são considerados clássicos na Hungria.Os velhos dogmáticos do Partido Comunista favoreceram a escola realista que deu continuidade, em muitos aspetos, às orientações socialistas-realistas. Portuges: Gostaria de saber se você estava trabalhando em uma direção semelhante à de Agnès Varda, que também começou com curtos documentários e fez filmes sobre artistas. Mészáros: Não. Conheço a Agnès muito bem agora, mas o primeiro filme dela que vi foi Cléo das 5 às 7 (Cléo de 5 à 7, 1962). Mais tarde, em Paris, ela me mostrou seu trabalho. Ela era muito legal. Sempre houve uma espécie de tensão e competição entre nós, e quando ganhei o Urso de Ouro em Berlim por Adoção, ela veio até mim e disse brincando: "Eu te odeio porque fiz todo esse trabalho e nunca ganhei nada, e embora você mereça, estou com ciúmes!" Portuges: Vamos voltar para a questão da sua mãe. Mészáros: Na verdade, a minha mãe…Já que eu absolutamente não tinha família… Um aspeto interessante da minha formação é que os primeiros sentimentos de uma relação mãe-filha que desenvolvi foram com a irmã de Miklós Jancsó, que já não está viva. Ela era extremamente feminina e maternal comigo e, de alguma forma, representava o mundo da minha mãe - foi por isso que eu a amava tanto. Depois, senti o mesmo com a mãe de Jan Nowicki, que era uma mulher simples, realista - mas sábia - e, logo após o nosso primeiro encontro, ela se tornou minha mãe substituta. Cada vez mais, a questão volta à minha mente: como era realmente a minha mãe? O que deveria ser uma mãe? Este assunto está se tornando de grande interesse para mim. Se ainda tiver energia, eu gostaria de fazer um filme sobre isso. Portuges: Você parece sempre ter se interessado pelas gerações mais jovens, permitindo que os jovens a observassem trabalhando, ensinando, fazendo filmes sobre eles. Mészáros: Sim. Ainda mais do que do pessoal da minha própria geração, agora sinto que quero rodear-me de jovens - como Éva Pataki, com quem escrevi roteiros há vários anos, ou o meu filho, que é operador de câmera e um jovem dramaturgo cujo trabalho é muito interessante. Português: Como alguém com um espírito jovem, você é próxima de colegas da sua geração? Mészáros: Não sei, depende. Não gosto muito da forma como alguns dos meus colegas conduzem as suas vidas com tanta ênfase nas considerações financeiras. Isso me incomoda, e é triste, porque assim, não temos mais conversas reais. Tudo gira em torno de dinheiro agora, casas, carros, viagens. Tenho a sorte de nunca ter sido particularmente apaixonada por coisas materiais. Ah, eu gosto tanto quanto qualquer um de poder comprar coisas e viajar, mas virar uma capitalista, não. E essas coisas nunca foram muito importantes para Nowicki, nem para Jancsó. Nunca falamos sobre dinheiro na família - é uma mentalidade totalmente diferente. Aqui na Hungria, nos também temos pessoas obcecadas pelas coisas materiais e pessoas que têm um temperamento mais criativo. Português: As suas ideias sobre este assunto são compartilhadas pelos jovens cineastas, ou eles também são obcecados com dinheiro? Mészáros: É um momento filosófico muito complexo para nós todos, porque tudo mudou - a ideologia, a vida cotidiana, as perspetivas de vida - mas, ao mesmo tempo, psicologicamente, nada mudou, e muitos membros da velha guarda ainda estão no seu lugar. Não é uma questão simples. Para aqueles que deixaram a Hungria, é uma revolução completa: a sua psique e a sua vida física, toda a sua mentalidade é transformada. Precisamos encontrar um novo ideal, mas não creio que deva ser econômico. Seria uma pena se o Oriente enfrentasse os piores aspetos do Ocidente neste frágil período de transição, mas talvez as coisas melhorem novamente após este momento tão difícil. |
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