<<
"Atrações e repulsas: As memórias de uma estudante universitária"
 
O que segue são trechos de uma conversa realizada em 2002 entre Judit Elek e Zsolt Kézdi-Kovács - seu marido na época, que ela conheceu na faculdade - para o documentário de Kézdi-Kovács Aquele dia foi nosso (Az a nap, a miénk, 2002), sobre o início da Revolução Húngara no dia 23 de outubro de 1956 e suas consequências. A conversa originalmente foi publicada em húngaro na revista Élet és Irodalom ("Vida e literatura"), em dezembro de 2006, e depois publicada em inglês em 2023 no livro Judit Elek - The Lady from Budapest (organizado por Barbara Wurm, Gyöngyi Fazekas e Olaf Möller), na ocasião de uma retrospectiva dos filmes de Elek no Festival Internacional de Cinema de Roterdã. Agradecimentos vão a Anne Wabeke (diretora de comunicações do festival) e especialmente a Judit Elek pela sua permissão para traduzir o material para português.
 

Judit Elek: Eu estava extremamente feliz em setembro de 1956, desde o início da faculdade, pois minha vida tinha sido bastante complicada antes disso. Eu tinha acabado de me casar naquele verão, extremamente jovem, concluindo o ensino médio. E engravidei imediatamente. Fiz um aborto. Então cheguei na faculdade bem abalada. Mas, logo depois, fiquei muito calma e feliz por finalmente estar onde eu queria estar. E eu poderia estudar o que quisesse. E as pessoas ao meu redor estavam motivadas pela mesma coisa e queriam fazer a mesma coisa. E isso foi bom. Então foi bom estar lá. A única coisa que eu sabia era que queria ser diretora de cinema. Eu não estava interessada em mais nada além de finalmente descobrir o que era aquilo.
 
Zsolt Kézdi-Kovács: E como começou o dia 23 de outubro para você?
 
Elek: Foi muito estranho. Na verdade, isso se aplica à maneira como vivi o dia 23 de outubro em sua totalidade. Como os meninos tinham algum tipo de aula militar ou algo assim pela manhã, eu não podia ir para a faculdade. Então fiquei em casa e limpei o apartamento. Estávamos hospedados na casa da irmã do meu marido na Rua Madách, aquela avenida inacabada que começa na Praça Madách. E eu mal podia esperar para chegar à faculdade. Almocei - porque não costumava comer na cantina - mas fui mesmo assim à cantina porque queria muito estar lá com os outros. Então, saí mais cedo.
 
Encontrei um caos total na cantina e todos já tinham ido embora. Então fui para o prédio da faculdade, mas naquele dia eu me atrasei para tudo. Porque mais uma vez todos já tinham saído de lá também. Então, a essa altura as ruas estavam cheias de gente. E novamente tive de perguntar para que lado elas haviam ido, para onde estavam indo. E tentei acompanhar a turma e acompanhar os outros. E então eu estava constantemente andando entre estranhos, eventualmente chegando em Buda, até a Praça Bem.
 
Estive cercada por muitas e muitas pessoas durante todo o caminho. E você deve saber que me sinto muito mal no meio de multidões - estava com medo e odiava aquilo. E...fico invisível. Porque sou pequenininha, e por mais que eu tentasse espiar por cima da multidão, não conseguia ver ninguém que conhecesse, não conseguia encontrar ninguém. Não importa o quanto eu tentasse passar pela multidão, eu ficava cada vez mais perdida. E depois de um certo ponto era impossível continuar avançando, a multidão era tão densa que era simplesmente necessário parar.
 
Eu estava parada no meio da multidão, me sentindo ansiosa porque havia muitas pessoas ao meu redor novamente. E então algo aconteceu muito longe. Mas só recebi fragmentos de informações sobre o quê. As pessoas estavam ao lado da estátua de Bem e conversavam sobre alguma coisa, mas eu não ouvia o que falavam. E...dava para sentir que algo estava acontecendo. Mas o que exatamente, eu não sabia.
 
Eu não sei quando alcancei a procissão, porque atravessei pela Ponte das Correntes. Tenho certeza de que estava na Praça Petofi. Fazia parte de todo o sentimento de estar perdida. Não creio que tenha parado na Praça Petofi, devo ter chegado lá depois da declaração, mas como tudo, cheguei tarde demais, a procissão já tinha partido. Então continuei andando e sentia que tudo estava acontecendo em outro lugar.
 
Então eu estava constantemente tentando alcançar os outros, inclusive você, na verdade. E eu queria ter alguém para conversar, alguém que finalmente me contasse o que realmente estava acontecendo. Mas na Praça Bem eu já sentia que não havia esperança de encontrar alguém. E eu estava começando a me sentir muito mal no meio da multidão. Então consegui sair, enquanto todos os outros ainda estavam lá. E tentei voltar para casa de alguma forma. Finalmente consegui voltar para Peste pela ponte Margaret.Demorou tanto porque o trânsito parou, os bondes pararam e os carros também - não que fossem tantos - e as pessoas iam e vinham, e eu ainda não sabia o que tinha acontecido.
 
E já era noite quando finalmente voltei para a Praça Madách, então já estava escuro. E tive a experiência bastante estranha e surpreendente de ver um tanque estacionado na esquina daquela pequena rua atrás da Praça Deák Ferenc. Percebi que a bandeira do tanque estava cortada, tinha um buraco nela. Havia muitas pessoas ao redor do tanque. E finalmente consegui chegar perto o suficiente daquele soldado que estava ali, e havia também um civil ao lado dele no tanque, e eles disseram que tiros estavam sendo disparados contra o prédio da Rádio Húngara. E o tanque estava tentando chegar ao prédio para ajudar de alguma forma, eles queriam atirar também, mas ele ficou preso, e a frente do tanque estava apontando na direção errada, e não dava para virar ali. As esteiras do tanque gritavam enquanto ele tentava manobrar.
 
E é muito interessante porque,em 1956, a guerra ainda era muito recente. Tudo o que eu havia passado na guerra era muito recente. E mais tarde, naquela noite, tudo voltou com muito mais clareza, como o próprio gueto, onde fui trancafiada quando criança, junto com meus pais. Tudo começou na sinagoga - o portão do gueto ficava na esquina da Rua Dohány, que fica do outro lado da Praça Madách. Então estava muito perto da localização do tanque. E...então isso significava que a oportunidade de eu finalmente estudar em paz e sem ser perturbada se foi, porque mais uma vez este foi o começo de algo terrível. E então, para onde eu deveria ir ou o que deveria fazer? Ou, em outras palavras, o que realmente estava acontecendo, e o que iria acontecer comigo?
 
E foi então que me lembrei de que o cineasta Imre Gyöngyössy morava bem perto dali, a apenas duas portas de onde ficava o portão do gueto, na rua Wesselényi. E "Ruci", de alguma forma, assumiu um papel quase paternal entre nós desde o primeiro momento, especialmente para mim e Pista (István) Szabó. Éramos tão bebês, mal haviamos saído do ensino médio.
 
Eu percebi que essa pessoa, que afinal já esteve na prisão, e bem, sendo o que ele era, eu deveria ir até sua casa, talvez lá eu pudesse finalmente conversar com alguém e descobrir o que estava acontecendo, mas ainda mais importante, o que estava por vir. E então eu fui até a casa deles. Ele morava em um pequeno apartamento de dois cômodos na rua Wesselényi, com o cunhado, com quem havia sido preso, e com a irmã mais nova. Era o apartamento deles. Eles eram adultos.
 
Ambos os quartos estavam lotados de gente, e de repente me dei conta: essas pessoas aqui estavam entusiasmadas, e o que quer que estivesse acontecendo as deixou felizes. Disseram que era uma revolução… Mas eu não compreendia completamente o que era isto, o que realmente significava ter uma revolução. Porque, se havia uma revolução,era contra o quê?
 
Mas, para compreender esta parte, é preciso saber que meu pai era comunista desde a adolescência, depois da República dos Conselhos [que liderou Hungria brevemente em 1919], desde a infância. Ele passou seu aniversário de 16 anos na prisão. Depois disso, ele viveu exilado em Paris, e depois voltou para a Hungria. Ele fundou o antecessor do Partido Socialista Húngaro dos Trabalhadores, o Partido Vági, ao lado de István Vági. Este foi o ambiente no qual eu cresci, inclusive com a expulsão do meu pai do partido em 1949. A sua vida foi poupada graças ao tratamento de choque elétrico dado pelo pai de Miklós Szinetár, porque o meu pai foi encontrado inconsciente no hospital quando a polícia secreta veio buscá-lo para jogá-lo na prisão. Erno Szinetár era um neurologista, um antigo simpatizante do comunismo, que trabalhou como médico sênior no Hospital János em 1949 - meu pai e ele se conheciam antes da guerra. Ele poderia não estar vivo em 1956 se tivesse sido pego como exilado francês. Mas...foi assim que ele escapou. Depois disso, trabalhou como operário não qualificado, e depois, como torneiro.Vivemos os anos 50 em total miséria...mas ele não tinha dúvidas de que isso era algum tipo de erro.
 
Então esse comunismo não era o comunismo que ele havia vivenciado. Esse comunismo seria algo bom - se algum dia existir. E comecei a pensar muito sobre isso antes da faculdade, quando tinha 18 anos. Comecei a ler todo o tipo de coisa. Principalmente filosofia, Hegel, Marx, Lenin. Eu queria saber o que era o marxismo e tudo mais, do que realmente se tratava, além das três frases que estão nos panfletos. E eu percebi que o que realmente era não era o que pensávamos que deveria ser.
 
Mas levando isto em consideração, fazer uma revolução não era nada óbvio para mim - tive que realmente pensar sobre isso. A revolução então foi contra meu pai? Contra ele, que tinha acabado de ser reabilitado em setembro daquele ano e aceito de volta no partido - em setembro, acho que foi dia 26, então nem um mês antes - e eles haviam pedido desculpas, "foi erro nosso".
 
E os outros ao meu redor começaram a planejar o dia seguinte, para que os presos políticos fossem libertados. Esses detidos eram seus amigos, pessoas com quem havia passado algum tempo na prisão em vários locais. Eles estavam conversando sobre como deveria ser organizado o seu alojamento, porque alguns tinham famílias esperando por eles, mas outros não. E eles estavam discutindo ações específicas, coisas que tinham de ser feitas e organizadas no dia seguinte. Era como se fosse um pequeno centro operacional da revolução.
 
Mas como eu não entendia completamente o que estava acontecendo, não recebi as tarefas específicas que estavam claras para eles, o que precisava ser feito no dia seguinte, que os alunos tinham de se reunir na faculdade… e a assembleia de ex-prisioneiros políticos tinha de ser arranjada. E então seria melhor organizar isso também na faculdade. E também discutiram ir às prisões de várias outras cidades para abrir as celas. Tudo isso era inconcebível para mim. Eu sabia que Ruci e seu cunhado estiveram na prisão, e era óbvio que tinham sido libertados porque eram inocentes, tal como era óbvio que o meu pai havia sido reabilitado. Mas de alguma forma, só descobri ali o que outras pessoas, muitas pessoas que estavam ou também estiveram na prisão, multidões na verdade - porque senti que se tratava de muitas pessoas - foi a primeira vez que realmente me ocorreu que as prisões haviam se aberto e os inocentes haviam saído. Então fui para casa depois pensando que nos encontraríamos em um determinado horário na faculdade. O que era novamente um raio de esperança, de que eu tinha um lugar no mundo diferente do apartamento em que morava, no qual eu era uma completa estranha. A pessoa com quem fui casada também era um completo estranho para mim.
 
Mas para entender esta parte, você precisa saber como me tornei aluna do curso de direção de cinema da Academia de Teatro e Cinema.
 
Eu só tinha certeza de uma coisa quando tinha 18 anos: queria ser diretora de cinema. Já tinha visto todos os filmes, alguns até dez vezes. Eu pesava 42 quilos porque gastava todo o dinheiro do almoço em idas ao cinema. Queria ser diretora de cinema, mas não contei isso aos meus pais, pois eles teriam me matado. Naquela época, o curso de direção havia acabado de ser retomado, após ter passado anos suspenso. Então o número de candidatos era cem vezes maior, e ser diretora era algo inédito. Mas consegui e entrei. Quando confessei tudo em casa, minha mãe começou a chorar e meu pai se recusou a falar comigo. Eles pensavam que se tornar um artista era uma devassidão, uma fossa moral. Ameacei me mudar - mas para onde eu teria me mudado? E como eu teria ganhado a vida? E então um homem me convidou para dançar no baile de formatura, e dentro de um mês, me pediu em casamento. Prometi que me casaria com ele se pudesse frequentar a faculdade. Ele disse que eu poderia. Então foi assim que aconteceu.
 
A propósito, meu marido era filho de um escritor comunista húngaro que foi executado em Moscou, e estávamos hospedados temporariamente no apartamento de sua irmã mais velha, que havia sido enviada para Moscou com o marido dela. Então voltei para casa, para o apartamento de um estranho, vindo da casa de Ruci Gyöngyössy, e lá encontrei um homem que, aliás, cresceu em um orfanato russo depois que seu pai foi executado, e sua mãe também, eu acho. Ele não entendia nada porque foi criado em um orfanato soviético, estudou arquitetura em Moscou e nem falava húngaro muito bem. Estava com medo.
 
Ele tentou ligar para sua irmã em Moscou, mas não foi possível encontrá-los. Conversei com meus pais e, claro, meu pai disse a mesma coisa que meu marido, que isso era uma contra-revolução e que tínhamos de proteger o socialismo e a democracia, e as pessoas que inundavam as ruas eram ralé. Então eles estavam dizendo ou sentindo exatamente o oposto de onde eu havia acabado de voltar. E permanecemos nesta incerteza peculiar sobre o que estava acontecendo. Eles, à sua maneira. E eu, do meu jeito completamente diferente.
 
O fluxo dos acontecimentos que começou com a assembleia estudantil no dia seguinte mudou tudo. Fazia apenas um mês que estávamos na faculdade, então mal conhecíamos as pessoas ao nosso redor. E, sobretudo, não sabíamos nada sobre os horríveis conflitos e tensões que explodiram nesta assembleia, onde obviamente a diretora Zsuzsa Simon foi substituida e Márton Keleti demitido do cargo de chefe do departamento e não sei quem mais. E eles elegeram o conselho estudantil da faculdade. Você podia sentir como tudo seria diferente. E a escala das queixas, o nível de angústia e o que eu não conseguia sentir exatamente na época: o fato de que dez de nós temos sido aceitos na faculdade naquele verão foi em si uma revolução.
 
E que revolução foi essa! Gyöngyössy - que tinha acabado de ser libertado da prisão - entrou e Pali Gábor, que havia se formado na pequena aldeia de Pannonhalma. O novo mundo realmente começou conosco e com a nossa presença lá. Não tínhamos protetor, nossos pais não eram secretários de partido nem nada. Haviamos acabado de sair das ruas e queríamos fazer filmes. E esse talento ou o que quer que fosse que irradiava de nós era a única coisa que importava.
 
Porém, mais uma vez, fui uma observadora externa dos acontecimentos da assembleia estudantil. Porque as mágoas, a raiva de que os outros falavam, o que vinha à tona, até então não tinha nos afetado diretamente... pois estávamos prestes a iniciar os estudos. E principalmente eu estava preocupada, pensando que, se a situação estava tão complicada naquele momento, como as coisas iriam voltar ao normal? Quando é que iriamos estudar? Porque o mundo inteiro ao nosso redor não parecia um lugar onde fosse possível aprender algo.
 
E foi então que aconteceu a fuzilamento em frente ao Parlamento. Naquele dia fui para a casa dos meus pais - eles moravam na Rua Falk Miksa, número 7, que fica na esquina da Praça Kossuth e do Parlamento. E eu saí para a multidão. Eu estava sozinha novamente. E meu pai me disse para não sair porque era perigoso lá fora. Mas eu disse que iria sair de qualquer maneira porque estava curiosa para saber o que estava acontecendo. Minha mãe também queria me prender, lembro que houve uma briga no corredor.
 
Quando cheguei à praça, estava tão cheia de gente que só consegui alcançar a estátua de Kossuth. Eu havia chegado há alguns minutos quando os primeiros tiros foram disparados. E foi aí que mudei de lado, para estar com a revolução quando eles disparassem contra a multidão. Quando abriram fogo contra nós, atiraram em mim, em uma pessoa que estava ali parada, desarmada. Em alguém que nunca teve a menor ideia de que algo iria acontecer além de mais discursos. Que várias pessoas estariam dizendo por que a situação atual simplesmente não era boa, ou por que o que estava por vir seria bom, ou quem sabe. E de repente eles abriram fogo.
 
Eu sei que não estava nem um pouco assustada... E isso foi muito importante, porque isso também importou mais tarde em 1956, o fato de eu não estar fugindo. Eu sabia que não conseguiria ajudar ninguém porque não tinha quaisquer habilidades úteis. E todos que podiam ajudar ou tinham algum tipo de conhecimento médico já estavam empreitados. Mas… eu sei que voltei para minha família - ou melhor, para meu pai - tão emocionada que acabei contando a ele, que eles haviam feito algo terrível. E que eu não queria que ele tivesse nada a ver com isso, que eu também era contra o que eles fizeram e tudo o que estava acontecendo. Ele então disse que, bem, o socialismo tinha de ser protegido, tinha de ser protegido a todo o custo. E eu disse que ninguém tinha o direito de atirar em alguém só porque tinha uma opinião diferente. Simplesmente não pode ser que alguém que não deu a vida a alguém tenha o direito de tirá-la só porque pensa diferente. Não é possível! Não poderia ser!
 
E... começamos uma gritaria muito estranha e histérica, porque eu também estava gritando. Obviamente, toda a tensão acumulada pelo que aconteceu na praça simplesmente saiu de mim. E ele também estava gritando, porque disse que queriam vir morar conosco, porque eu via que eles estavam em perigo aqui, principalmente agora, e com certeza alguém iria arrombar a porta deles. Que a vida dele estava em perigo onde ele estava. E gritei que as vidas dos outros estavam em perigo, a minha vida estava e não a deles, aqui neste apartamento. E minha mãe estava chorando, porque ela não aguentava nos ver gritando um com o outro de lados opostos. E então eu fugi, deixando-os lá.
 
Eles não me perdoaram por muito tempo por basicamente abandonar minha família, e por não pedir que viessem comigo, dizer que os protegeria e os acolheria, e não sei exatamente o quê. Eu simplesmente os deixei lá. E fui para minha casa… ou para a casa do Ruci Gyöngyössy. Não sei exatamente.
 
Porque a partir da noite do dia 23, passei praticamente todas as noites na casa do Ruci. Aquele apartamento e aquele ambiente começaram lentamente a se parecer mais com um lar. Mas tudo isto era um paradoxo bastante estranho, porque aquele edifício era um edifício de gueto. E o que aconteceu nas ruas foi obviamente uma guerra, especialmente depois do fuzilamento em frente ao Parlamento. E eu sentia constantemente o cheiro de cal naquele prédio. O mesmo cheiro da cal que há 11 anos, quando eu estava trancada no gueto, eles costumavam usar para encharcar os cadáveres. E toda a Rua Wesselényi tinha um cheiro específico que lembrava a guerra ou os meses passados no gueto. E, mesmo assim, me sentia mais em casa lá do que na Praça Madách com um estranho, num apartamento estranho, onde afinal os meus pais haviam acabado de chegar. Eles simplesmente fizeram as malas, foram embora, tocaram a campainha e declararam que ficariam conosco por alguns dias, pois não queriam ir para o porão na Rua Falk Miksa porque meu pai teria sido massacrado lá.
 
Isto ocorreu depois do cerco à sede do partido na Praça Köztársaság. Levantei minhas mãos e disse tudo bem. E a única coisa a mais que eu disse foi que o apartamento em que estávamos hospedados não era meu, então eu nem sabia quanto tempo ficaria lá. Mais ainda porque meu marido havia conseguido falar com sua irmã, ou eles enviaram uma mensagem avisando que voltariam para casa porque tudo estava desabando em Moscou também. E para que ela também tivesse de voltar para casa com o marido, o que aconteceu não muito tempo depois.
 
Mas não chegamos a esse ponto ainda. Eu ainda estava sentindo que todos ao meu redor, todos da minha turma, estavam praticamente participando da revolução, andavam em vans e tinham todo o tipo de tarefas.
 
Depois da experiência em frente do Parlamento, a segunda experiência fundamental que tive foi a de perceber que estive de alguma forma envolvida em tudo isto, mas não de forma ativa. Tal como num posto de observação, observando os acontecimentos para perceber o que se passava. Mas nem um pouco como uma estranha, já que, ao contrário do meu pai, era flagrantemente óbvio que eu não estava do mesmo lado que ele, provavelmente mais do outro lado, mas seria bom saber exatamente o que estava acontecendo do outro lado, pois era bastante caótico.
 
Não acho justo dizer que fui passiva… porque as coisas que estavam acontecendo comigo eram fatídicas, apesar de eu ser quase inativa. Ainda assim, eu estava observando e absorvendo tudo de uma forma fantasticamente aprimorada. E eu estava analisando o que concordava e o que discordava. E onde estavam os limites da minha postura e o que eu estava pensando sobre tudo aquilo... E eu acho que isso se tornou um comportamento que define minha vida.
 

                                
    Apoio
MUTUAL FILMS