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"Um cinema de denúncia, um cinema de conhecimento:
Uma entrevista com Tewfik Saleh"

 
O texto que segue consiste de trechos de uma entrevista realizada com o cineasta Tewfik Saleh em 1976, quatro anos após o lançamento de Os enganados. A entrevista foi originalmente publicada em francês no livro La Palestine et le cinéma, editado por Guy Hennebelle e Khemaïs Khayati. Agradecimentos são devidos à Monique Martineau-Hennebelle, viúva de Guy Hennebelle, por autorizar a tradução do texto para o português, e a Gerard-Jan Claes por sua ajuda em facilitar a conversa. Uma tradução recente da entrevista para o inglês também pode ser encontrada no site Sabzian.
 

Guy Hennebelle e Khemaïs Khayati: Parece que Os enganados foi o primeiro longa-metragem egípcio a levar a sério a questão palestina. Como você explicaria o longo silêncio?
 
Tewfik Saleh: Podemos dizer que, durante algum tempo, a causa palestina foi considerada por muitos dos regimes árabes como uma espécie de cabideiro. Um cabideiro onde cada um poderia pendurar o que quisesse, dependendo de seus interesses. No cinema, foi usado para inventar filmes artificiais cheios de falsa bravura, heróis operísticos e aventuras emocionantes. Estou pensando em um filme como Kamal El-Shaikh [Terra de paz] 1957), por exemplo. A causa palestina também forneceu a base para melodramas melosos com mulheres separadas dos seus amantes pela guerra. Coisas assim. Alguns também fizeram pequenos filmes de propaganda, nos quais os palestinos eram representados por imagens de mulheres e crianças em tendas… Ninguém nunca propôs uma análise política séria da situação deles como vítimas de uma máquina imperialista. Em todos esses filmes podemos sentir a forte influência do cinema americano.
 
Hennebelle/Khayati: A causa palestina antes de 1967, pelo menos, inspirou a produção literária?
 
Saleh: Muito pouco. Algumas coisas foram escritas, mas nada que merecesse ser chamado de literário ou teatral. No entanto, os palestinos de Gaza escreveram alguns poemas que foram publicados no Egito, uma vez que o território estava anexado ao Egito na época.
 
Hennebelle/Khayati: Você acha que Ghassan Kanafani escreveu Homens ao sol em reação a esta situação?
 
Saleh: Foi seu primeiro romance. Antes disso, havia escrito contos, publicados em duas coletâneas, e uma peça de teatro. Homens ao sol foi inspirado em uma história real: a morte de quarenta palestinos dentro de um caminhão que os transportava para o Kuwait, para onde tentavam imigrar ilegalmente. Ele reduziu o número de personagens para três. Kanafani foi professor no Kuwait depois de ter trabalhado numa lavanderia na Síria, onde cursou o ensino médio. Como muitos outros, esteve envolvido com aqueles que mais tarde foram chamados de "nacionalistas sírios". Ele rapidamente conheceu o marxismo depois de escrever Homens ao sol. A viagem dele à China, em 1964 ou em 1965, foi um acontecimento importante em sua vida, talvez até um ponto de virada. Após a ressurreição da resistência palestina em 1965, ele se uniu a George Habash (que também era um "nacionalista sírio" na época) e tornou-se porta-voz da Frente Popular para a Libertação da Palestina. Ele escreveu e desenhou muito. Quando morreu, deixou três romances incompletos.
 
Hennebelle/Khayati: Por que você esperou até 1971 para filmar Os enganados?
 
Saleh: Eu tentei dirigir o filme em 1964, mas sem sucesso. Em 1968, ocorreu a chamada Batalha de Karameh, a primeira vez que as forças israelenses foram derrotadas pelos árabes. Na semana seguinte, quatro projetos de filmes sobre a causa palestina foram propostos à Fundação Egípcia de Cinema. Tentamos filmar o roteiro que eu tinha escrito quatro anos antes. Não pensei que fosse o melhor momento para adaptar o romance de Kanafani porque a situação que denunciava tinha evoluído consideravelmente - em particular, desde 1965 a resistência palestina voltou a ser uma realidade. Achei que era mais apropriado popularizar e apoiar os esforços dos palestinos, para mostrar como a resistência deles podia ser uma esperança para uma revolução armada no mundo árabe. Afinal, não foi no Cairo, em 1968, que fiz Os enganados, mas em Damasco, em 1971, graças à Organização Nacional de Cinema da Síria, dirigida por Hamid Merai. Foi apenas depois da famosa tragédia do Setembro Negro de 1970 em Amã que decidi levar o romance de Kanafani para o cinema. Reli-o numa noite e senti que, com algumas alterações, conseguiria dar-lhe um valioso significado contemporâneo.Tomei muitas liberdades. Estou convencido de que outros pensaram que iriam me impedir de uma forma ou de outra, mas a cadeia de acontecimentos me permitiu prosseguir com os meus planos.
 
Pensei que, apesar da reativação da resistência armada palestina, o tema do romance de Kanafani continuava valioso e relevante. O tema do filme, tal como o concebi, era a necessidade de elaborar uma estratégia justa para combater Israel e criar uma sociedade secular e democrática na Palestina. O título deixa claro. "Os enganados", como o filme mostra simbolicamente, são os palestinos que foram reduzidos a detritos, lixo abandonado no deserto, seja pela má política ou pela falta de uma política coerente.
 
Hennebelle/Khayati: Quais elementos do romance você deixou de fora na sua adaptação, ou pelo contrário, o que você acrescentou?
 
Saleh: Para dar um exemplo, acrescentei a dimensão da "traição de certos governos árabes" no que diz respeito à causa palestina. Isso não estava no romance. Em geral, penso que me mantive fiel ao espírito de Kanafani - simplesmente atualizei as suas palavras para dar conta da evolução da situação. O que tive que fazer foi apenas adicionar ou remover uma ou duas frases.
 
Hennebelle/Khayati: Mas a traição desses governos árabes não poderia ser percebida através dos personagens do romance?
 
Saleh: Não, eu acho que não.
 
Hennebelle/Khayati: Então o objetivo de Kanafani era essencialmente denunciar a condição desumana dos palestinos?
 
Saleh: Sim, mas havia uma certa nuance na maneira como ele colocou o dedo no problema nos três símbolos geniais que introduziu e que eu aprofundei. A mutilação sexual do motorista, por exemplo, existe no romance. Para mim, pareceu-me tão representativo da estratégia imperialista em relação ao povo palestino que lhe dei especial ênfase no filme. Não creio que Kanafani tivesse plena consciência do símbolo, pois caso contrário, ele o teria desenvolvido. De qualquer forma, é genial.
 
Hennebelle/Khayati: Existem três gerações de palestinos no romance?
 
Saleh: Sim. O velho Abu Quais pertence à geração que chamo de "cabras". Esta geração é contemporânea à perda da Palestina. Em seu flashback, há uma cena importante em que sua esposa lhe diz, referindo-se ao professor Selim: "Não gosto daquele homem, ele não conhece religião". Ao que ele responde: "Não é com a religião que libertaremos a Palestina, mas com armas". A segunda geração, de Asaad, é aquela que conheceu a Palestina na juventude. Eles amadureceram politicamente em outros lugares e lutaram na Transjordânia. E a terceira geração, de Marwan, não conhece a Palestina, mas também sofreu as consequências dramáticas da sua perda.
 
Hennebelle/Khayati: Você mencionou três símbolos. Quais são os outros dois?
 
Saleh: Há o símbolo do deserto: o símbolo, claro, do "deserto" através do qual o povo palestino tem viajado durante mais de um quarto de século. Há o símbolo da mulher cuja perna foi amputada e que nenhum homem quer, exceto em troca de dinheiro: outro símbolo do povo palestino, a quem todos viraram as costas há muito tempo, mas de quem continuam tomando proveito.
 
Hennebelle/Khayati: E a castração do motorista, o "líder" do grupo, não é politicamente ambíguo?
 
Saleh: Este motorista que conduz os três palestinos à ruína, fingindo levá-los ao Eldorado do Kuwait, representa, aos meus olhos tanto quanto aos de Kanafani, certos líderes da resistência palestina que, por um lado, careciam de estratégia, e, por outro, às vezes eram corruptos. Devemos notar que o motorista já foi corajoso - ele lutou contra os israelenses. Foi durante esse combate que ele se viu emasculado. Esse trauma o deixou desesperado, e a partir de então, ele não pensou em mais nada além do único prazer que lhe restava na vida - o dinheiro. Um jovem palestino me repreendeu educadamente, após a exibição de Os enganados em Damasco, pelo conteúdo político deste símbolo. O que eu queria denunciar era essencialmente a imprudência da Resistência, que durante muito tempo não teve estratégia e fez apenas o que era conveniente. Deixe-me esclarecer que, neste ponto, nada fiz senão reproduzir uma qualidade do romance de Kanafani, que foi ele próprio um líder palestino. Não estou em posição de dar lições de moral.
 
Hennebelle/Khayati: Os enganados abre com uma reflexão sobre as origens e o desenvolvimento do drama palestino. É só depois disso que a ficção começa.
 
Saleh: A abertura situa claramente as condições do drama que então se desenvolve em forma de fábula ou alegoria. Denuncio explicitamente o conluio dos sionistas e dos árabes reacionários. "À nossa frente estão os sionistas e atrás de nós há traidores", diz um fedayin. Depois mostro um retrato do Rei Hussein, da Jordânia. Não quis mostrar apenas Hussein porque ele não é o único traidor, mesmo sendo o mais franco e sanguinário. Existem muitos outros que são mais discretos. Através de um truque de montagem, deixei pairar sobre o filme uma ambiguidade quanto à responsabilidade de outros governantes da região, do passado e do presente, para me dar uma saída e evitar uma boa razão para censura .Denuncio também a conversa fiada dos governos árabes que durante muito tempo deixaram o povo palestino morrer lentamente, tal como, na trama, a conversa fiada dos agentes da patrulha da fronteira do Kuwait leva à asfixia dos três palestinos encurralados no tanque do caminhão.
 
Hennebelle/Khayati: Você faria o filme hoje?
 
Saleh: Se eu tivesse de fazer um filme que delineasse a questão palestina, não, este não seria o roteiro que escolheria. Mas se tivesse de fazer um filme que mostrasse as condições de vida de muitos palestinos, poderia voltar a esta história, mas com algumas modificações. Em geral, se eu tivesse de falar novamente da Palestina no cinema, seria com maior amargura…
 
Hennebelle/Khayati: Mas não são todos os seus filmes amargos, de alguma forma?
 
Saleh: Eu acho que sim. Mas quando falamos sobre as condições políticas que prevalecem no Oriente Médio, não creio que possamos ser outra coisa senão amargurados. Especialmente se você tentar encarar a realidade. Nesse sentido, tenho uma ideia para um filme que começaria com a abertura do Canal de Suez e terminaria com a sua reabertura algum tempo depois. No meio disso, eu cobriria toda a história egípcia. Se eu conseguir, será em forma de ficção, mas garanto que tudo será autêntico.
 
Hennebelle/Khayati: Assim como Os enganados é um filme de ficção que se baseia em uma realidade extremamente concreta, quase documental?
 
Saleh: Absolutamente. Do romance de Kanafani tirei o essencial, ou seja, três personagens, um caminhão-tanque e um motorista. Tomei emprestado da realidade todas as qualidades que caracterizam o documentário e apresentei-as à ficção para enfatizar o caráter profundo da situação. Não creio que alguém consiga encontrar uma única imagem em Os enganados que não fale com a realidade da situação política: às vezes é metafórica, às vezes é documental. Tudo no filme ajudaa expressar o "sonho" palestino.
 
Hennebelle/Khayati: Qual foi o impacto do filme nos países árabes?
 
Saleh: O filme não foi exibido no Egito. Os censores nunca disseram sim ou não, mas ficou claro que não o queriam. Foi exibido durante duas semanas na Síria, mas apenas em Damasco. No Iraque não foi permitido, mas de vez em quando passo minha cópia para os meus amigos. Foi exibido na Tunísia e na Argélia. Acho que foi em Aden que teve maior sucesso. Mesas redondas foram organizadas pela televisão.
 
Hennebelle/Khayati: Não há personagens positivos no seu filme, exceto o professor Selim, mas até ele morre no início…
 
Saleh: A memória dele, porém, assombra os protagonistas do filme, que o evocam diversas vezes. "Ah, se ao menos tivéssemos ouvido Selim", dizem.
 
Hennebelle/Khayati: Os enganados renova a questão do cinema revolucionário para um novo dia. Parece mais um filme alertando seu público do que o mobilizando para a ação. Qual a sua opinião sobre o assunto?
 
Saleh: É uma pergunta complexa. Em determinado momento da minha vida, acreditei que era necessário fazer um certo tipo de filme mobilizador, como Sira' Al-Abtal [A luta dos heróis] (1962), meu segundo longa-metragem. Aí pensei que era mais necessário fazer filmes como Al-moutamarridoune [Os rebeldes] (1968). Nestes dois filmes encontramos um herói que recusa a sua condição e que luta contra outros personagens para mudar a situação, o estado das coisas. A princípio pensei que os filmes mobilizadores tinham de ter uma solução relativamente precisa e incluir um certo número de discursos além de reviravoltas dramáticas e ação, mesmo que o estilo não deixasse de usar efeitos que hoje eu chamaria de melodramáticos. Acabei percebendo que os heróis desses filmes apresentavam qualidades que não reconhecemos na maioria das pessoas e que, como consequência, existe o risco de o público não conseguir se identificar com os personagens, que são perfeitos demais.
 
É por isso que hoje penso, mesmo que não seja a opinião de todos, que um filme como Os enganados é extremamente mobilizador. Em que condições podemos dizer que um filme é mobilizador? Quando inspira a derrubada de uma situação. Tradicionalmente, nos filmes revolucionários, são os personagens fortes que provocam a mudança. Não é assim, é claro, em Os enganados. O foco principal está nas pessoas mais fracas que parecem ter sido esmagadas pelo destino, mas são mostradas de tal forma que o público não pode deixar de aprender com esta representação e consequentemente tornar-se mais consciente dos problemas através dela. Em vez de dar exemplos de heróis positivos, prefiro explicar aos espectadores por que as pessoas comuns que estão na tela enfrentam essas dificuldades. Se quisermos mudar a situação, pode ser mais útil revelar as causas deste sofrimento do que priorizar pessoas extraordinárias. Meu método consiste em tentar tocar as pessoas, em tentar movê-las emocionalmente para fazê-las pensar. No geral, sinto que a minha geração foi alimentada com demasiadas palavras grandes para não ter cuidado com discursos excessivamente virtuosos - aqueles que, no passado, serviram para esconder a verdade na maioria das vezes. Fomos enganados com muita frequência. É importante dar às pessoas uma noção do quadro geral, do verdadeiro curso dos acontecimentos, para que possam agir com plena consciência da situação. Já vi palestinos chorarem em Damasco durante Os enganados, mas estou convencido de que eles sabem que o filme mostra a verdade.
 
Em vez de falar de um "filme mobilizador", prefiro falar de um filme revelador. Isso não quer dizer, porém, que eu defenda filmes abertos a qualquer interpretação. Não, absolutamente não. Nos meus filmes, e em Os enganados particularmente, há uma posição muito clara estabelecida em cada cena. Quando assisto novamente A luta dos heróis, fico com vergonha! Embora seja um filme em que trabalhei muito, que reescrevi três vezes, fiz algumas concessões comerciais para ter certeza de que chegaria a um público grande e analfabeto, e coloquei ênfase nos diálogos porque pensei que as pessoas nem sempre entenderiam a imagem por si só, pois estavam acostumados a ouvir Nasser durante três horas. Hoje, acho que não é mais necessário fazer concessões quando se quer fazer um filme mobilizador. Já em Os rebeldes, tentei dar ao filme valor artístico e político. Não me oponho a algum romantismo, mas apenas enquanto for um romantismo saudável que dê esperança para o futuro. Há filmes que mobilizam porque são estimulantes, e há outros que mobilizam porque convidam à reflexão. Os enganados pertence ao segundo grupo.
 

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