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"Uma entrevista com Amos Kenan"
 
O que seguem são trechos de uma entrevista com Amos Kenan, realizada por Lionel Rogosin e uma pequena equipe de filmagem em Nova York em 1990. O vídeo da conversa está incluído como um extra na edição em DVD de Diálogo árabe israelense que foi lançada pelo Milestone Films em 2023. Agradecimentos vão para Dennis Doros, da Milestone Films, por dar sua permissão para postar a tradução do material do inglês para o português. Trechos adicionais da conversa entre Rogosin e Kenan podem ser vistos no documentário Imagine Peace (2019), dirigido por Michael Rogosin, um dos dois filhos do cineasta e cofundador da iniciativa Rogosin Heritage.
 

Lionel Rogosin: Em termos de paz com os palestinos, o que você acha das garantias? Que tipo de garantias poderia haver, e você acha que são necessárias, devido ao medo de ambos os lados? Não por causa da necessidade intrínseca, mas para tranquilizar ambos os povos, e também os judeus do mundo.
 
Amos Kenan: Esta não é a questão que incomoda os governantes israelenses. Não querem garantias de paz com os palestinos porque não querem o Estado palestino. Eles pensam que a única garantia para a segurança israelense é incluir a Palestina em Israel, de uma forma ou de outra - seja como um território ocupado ou como uma chamada autonomia ou o que quer que seja, mas não como um Estado independente. Nenhum governo israelense até agora aceitou sequer a ideia de um Estado palestino. Portanto, os israelenses não estão preocupados com garantias. Eles têm certeza de que a melhor garantia é o próprio Israel. Sabemos - pessoas como eu, como você - que se negociarmos a paz com os palestinos através da criação de um Estado palestino, ambos os países necessitarão de garantias. Mas essas garantias já são garantidas por todas as potências do mundo, tanto quanto valem, e são acima de tudo garantidas por si mesmas. Porque a própria existência de um Estado palestino ao lado e não contra o Estado de Israel é uma garantia da segurança de ambos os estados e da paz.
 
Rogosin: O tratado de paz com Egito [em 1979] fez as coisas avançarem? Os israelenses chegaram mais próximos da paz como um resultado?
 
Kenan: Sim, o tratado fez as coisas avançarem, e também as interrompeu. Porque as pessoas em Israel podem pensar que a paz com o Egito é suficiente: "Eles conseguiram o que queriam, temos paz com um país árabe e podemos agora correr o risco de viver em conflito com os palestinos - a longo prazo, venceremos." Este é um pensamento de alguns israelenses, e temos de nos dar conta disso.
 
Rogosin: Vou passar para a próxima pergunta. É sobre a Intifada. [Nota do tradutor: A Primeira Intifada foi uma revolta da população civil palestina na Cisjordânia contra os militares israelenses que durou de 1987 a 1993.] Como você vê a necessidade da Intifada e quais são os aspetos positivos dela, se houver?
 
Kenan: Há um aspeto positivo da Intifada: É a primeira vez que os palestinos lutam pela sua liberdade e independência como uma nação inteira. E já é um Estado palestino em formação. E isto leva alguns israelenses a pensar... Veja quanto tempo demora para fazer o israelense pensar. Mas se você quiser uma comparação: quanto tempo levou para que os britânicos e os franceses entendessem que não tinham mais utilidade para as colônias? Que eles tinham de desmembrar seus impérios? Não existem mais impérios. Levou muito tempo.
 
Rogosin: Sim, levou muito tempo.
 
Kenan: Então temos um império israelense porque temos uma colônia. A Cisjordânia é a nossa colônia. Mas o contato entre os jovens soldados israelenses e as crianças árabes é realmente horrível, e é… Ele deixa marcas. Há uma taxa de suicídios no Exército israelense que está aumentando cada vez mais. Tornou-se um fenômeno e é preocupante. Os jovens soldados não suportam esta tensão de serem forçados a disparar contra crianças. Eles não podem fazer isso. Então alguns deles enlouquecem, alguns se suicidam, e alguns deles, quando terminam seu serviço no Exército, pegam as malas e vão embora.
 
É uma visão horrível ver a nós, os israelenses, que no passado desempenhamos o papel do pequeno Davi contra o gigante Golias, mudarmos de papéis. E agora são as pequenas crianças árabes que se tornaram o pequeno Davi atirando pedras ao grande Golias blindado, que somos nós. Acho que é uma imagem horrível ver como o papel histórico mudou e agora somos o monstro blindado Golias. E somos assim aos nossos próprios olhos, e não gostamos de ver o nosso rosto no espelho. E se você gosta - se você gosta deste rosto nosso - então você está com problemas, porque você não deveria gostar deste rosto. E você deveria nos ajudar a nos livrar dele.
 
Nós em Israel… Nós somos um povo arrogante. E mesmo quando somos amantes da paz e pertencemos a movimentos como o Paz Agora ou qualquer outro, ainda somos arrogantes. [N.t.: Paz Agora, ou Shalom Arshav, é uma ONG israelense comprometida com a criação pacífica de dois estados.] Achamos que queremos a paz mais do que qualquer outro grupo quer. Somos os melhores combatentes pela paz, assim como somos os melhores combatentes pela guerra. Nós somos os melhores, de qualquer forma.
 
E é muito comum em Israel dizer: "Sim, os seus amigos árabes, eles são OKs, os seus amigos palestinos, eles são OKs, mas mostrem-me quantos deles estão no Paz Agora dos árabes". E isso é arrogância, porque em Israel, não se paga com a vida quando se pertence a algo como o Paz Agora.Você pode ir, participar da manifestação e depois voltar para casa para ver sua esposa e sua família e assistir à TV e talvez se ver na TV na manifestação. Mas, quando um palestino faz isso, ele paga com a vida por desejar a paz com Israel. Foi o caso de Said Hammami, que era o embaixador da OLP em Londres, e que foi assassinado porque pregava a paz com Israel e sugeriu que o pessoal da OLP se reunisse com os israelenses.Alguns extremistas não gostaram e ele foi assassinado. Depois, o embaixador da OLP em Paris, que era um militante, mudou de opinião. Seu nome era Abdelaziz Hallak. Ele decidiu que a OLP deveria se reunir com os israelenses e também foi assassinado por isso. Depois veio o Dr. Issam Sartawi, que eu conhecia pessoalmente muito bem. Ele era um grande ser humano. Era um dos maiores especialistas em cirurgia cardíaca e líder de uma pequena facção da OLP. Ele abandonou a medicina para fazer parte da OLP. E então ele decidiu que o seu papel era trazer a paz com Israel, e ele também foi assassinado, e também se tornou vítima do desejo palestino de fazer a paz com Israel. Apenas 20 anos depois, ficou legitimado, e agora é a política oficial da OLP falar com os israelenses e tentar negociar com Israel uma solução de dois estados para dois povos.
 
Rogosin: Você pode me contar algo sobre sua participação no grupo Lehi, como isso começou, quando e do que se tratava?
 
Kenan: Sou escritor e jornalista. Como escritor e jornalista, odeio a ideia escrita na imprensa israelense de que "um soldado israelense foi assassinado por terroristas palestinos". Sendo eu próprio um suposto ex-terrorista, nós fomos acusados de matar soldados britânicos inocentes. Um soldado não é assassinado quando faz parte de uma força de ocupação - ele é morto. Apenas civis inocentes podem ser assassinados. E não compreendo a atitude israelense que diz que quando lutamos pela nossa liberdade, temos o direito de lutar contra os soldados britânicos, e quando os palestinos lutam pela sua liberdade, não têm o direito de atacar os soldados israelenses. Acho que eles têm o direito de fazer isso. E acho que quando fazem isso, não é um ato de assassinato.
 
Não vou contar a história seguinte para revelar minha biografia pessoal. Vou contar porque foi um marco no meu pensamento político. O Estado de Israel foi fundado sem fazer a paz com os palestinos, e isso foi errado desde o início. Eu vi isso desde o início, e alguns dos meus amigos de Lehi eram da mesma opinião. E o ex-líder político do Lehi, Sr. Nathan Yellin-Mor, também foi membro do primeiro Knesset de Israel. Quando ele mudou de ideia, vendo que faltava alguma coisa ali - faltava a parte palestina - ele foi expulso da vida pública e tratado como um traidor por seus ex-amigos. E, para mim, ele foi o maior pensador e político israelense. Ele não era um político, era um estadista. E lamento - ele já está morto - lamento que alguém como ele não tenha se tornado Primeiro-Ministro, mas sim alguém como Yitzhak Shamir, que não era um ideólogo. [NT: Yitzhak Shamir era o Primeiro-Ministro do Israel de 1983 a 1984 e de 1986 a 1992.] Shamir foi o carrasco da nossa organização. Digo "carrasco", mas poderia dizer "executivo" - é o mesmo para mim.
 
Rogosin: Você falou de participar de Lehi e de matar gente.
 
Kenan: Sim.
 
Rogosin: E agora, como você se sente sobre isso, quero dizer, ao invés de pensar sobre o assunto? O seu sentimento pessoal, e não a sua filosofia. Ou talvez sejam a mesma coisa.
 
Kenan: Os meus sentimentos pessoais eu geralmente guardo para mim mesmo. E minha filosofia é que, quando você precisa fazer isso, você precisa acreditar que está fazendo a coisa certa. Se você não acredita que está fazendo a coisa certa, é melhor não fazer. E se você acredita, mantenha sua crença e não a manche. Se você fizer isso, você o fará por uma causa. Você não faz por si mesmo. É isso.
 
Rogosin: Mas como o último recurso.
 
Kenan: O quê?
 
Rogosin: Como o último recurso. A violência como o último recurso.
 
Kenan: Como o último recurso. Quando as palavras não ajudam, as orações não ajudam, a negociação não ajuda, a súplica não ajuda, nada ajuda, então você tem que lutar. É o último recurso.
 
Rogosin: Como os palestinos estão fazendo agora.
 
Kenan: Estão fazendo isso agora porque é o último recurso.Tentaram conversar, tentaram explicar, tentaram mostrar a injustiça, o mal que lhes foi feito. Ninguém quis ouvir - nem mesmo os seus irmãos árabes.
 
Rogosin: Isso não é uma pergunta. Apenas conte um pouco do que você estava dizendo sobre o Holocausto.
 
Kenan: OK, vou começar do início. A criação do Estado de Israel foi feita pela ONU no ano de 1947, dois anos após a conclusão da Segunda Guerra Mundial. Dois anos após a derrota do regime nazista na Europa. Alguns anos depois do Holocausto. Havia cerca de 30 membros da ONU nesta altura, a maioria deles países cristãos e ocidentais. Havia também a União Soviética. Não havia representação do Terceiro Mundo. E porque a liderança dos palestinos durante a época britânica colaborou com Hitler e estava associada a Hitler… O Grande Mufti de Jerusalém esteve na famosa reunião de Wannsee onde a Solução Final do "problema judaico" foi decidida. [N.t.: Mohammad Amin al-Husayni, também conhecido como o "grande mufti", foi um líder palestino e árabe que se opôs à presença judia na Palestina e fugiu em 1941 do Oriente Médio para Europa, onde se envolveu nas atividades do Partido Nazista antes de voltar para sua região natal nos anos após a Segunda Guerra Mundial.] E houve uma divisão de voluntários palestinos e muçulmanos que serviram no exército alemão. E tudo isso causou a tragédia dos palestinos porque, na altura dos anos pós-guerra, o efeito do Holocausto e da matança de seis milhões de judeus era tão forte. Havia um complexo de culpa por parte do cristianismo que os judeus que sofreram tanto deveriam obter o seu Estado. Houve a decisão de uma partilha da Palestina, mas quando isso não aconteceu, ninguém derramou uma lágrima porque eles colaboraram com Hitler. É isso. Agora penso que está errado, e penso que este erro deve ser corrigido.
 
O Holocausto não deveria ser usado de forma alguma na política. O Holocausto foi uma tragédia. Esta tragédia é uma tragédia humana e humanitária. Pertence à humanidade e a cada ser humano porque é um crime humano contra a humanidade. É isso. Os israelenses não devem usar o Holocausto como um lembrete de culpa a ninguém, ou como um meio de chantagem política para dar a Israel mais apoio ou mais poder. Israel não precisa de apoio e não precisa de poder. Israel precisa de paz.
 
Algumas palavras para os meus irmãos judeus: Eu amo o seu amor por nós, mas não nos sufoquem com o seu amor. E talvez vocês nos sufoquem com seu amor porque se sentem culpados. Talvez vocês se sintam culpados porque não foram mortos na Europa durante o Holocausto, ou talvez se sintam culpados porque não vieram a Israel para compartilhar a nossa vida lá e permaneceram onde estão para viver a sua própria vida confortável. Não tenho nada contra sua vida confortável. Mas só porque vocês se sentem culpados, não precisam nos sufocar com amor. Dê-nos apenas o amor que precisamos, não o amor que vocês precisam nos dar. Porque essa é toda a diferença: o amor que vocês precisam nos dar não é nos amar. Não é amor. Porque nos faz perder o coração e a alma e nos torna perecíveis. E não queremos ser perecíveis. Queremos estar lá para sempre. E para permanecermos para sempre em Israel, precisamos que o seu amor seja razoável, livre de culpa, amor livre para um povo livre, e só podemos ser livres com a paz. Portanto, não nos façam perder a esperança na paz e não perturbem o processo de paz. Obrigado.
 

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