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“Pere Portabella comenta Vampir-Cuadecuc”
Os comentários de Pere Portabella a seguir foram registrados em julho de 2017 para o lançamento em DVD do filme Vampir-Cuadecuc pelo selo inglês Second Run DVD , que cedeu sua permissão para publicá-los aqui. Agradecimentos também vão para Adrián Onco, da produtora Films 59 , por ceder a transcrição das falas de Portabella em castelhano, que foram depois traduzidas para português. Minha entrada no cinema, para simplificar bastante, começou nos anos 60. As minhas participações nos festivais de Cannes e Veneza se deram com três filmes que, do ponto de vista da estrutura narrativa, são convencionais, aristotélicos, pois seguem a fórmula da abertura, desenvolvimento e encerramento que Aristóteles considera a ferramenta perfeita da história. Isso não me interessava nem um pouco, pois eu sou um autodidata. Nunca estive em nenhum centro ou lugar de educação cinematográfica. Tive formação na vanguarda artística – Stockhausen, Marcel Duchamp – e na Espanha, havia Picasso e Miró, para citar apenas alguns. E qual era a questão? Era a emergência da vanguarda que buscava a destruição ou desconstrução dos códigos convencionais (românticos, por assim dizer) do século XIX e irrompia com uma nova codificação com a seguinte intenção: devolver à arte o seu valor de uso. Isto significa que a arte é uma área onde podemos, através de metáforas e elegias, experimentar um tipo de linguagem que se conecta em sintonia com as nossas capacidades como pessoas e nos permite crescer e, ao mesmo tempo, ser melhores para os outros. Portanto, a ruptura da linguagem foi algo que consegui como produtor. Usei esses filmes para entrar no mundo das projeções. Primeiro porque foi durante a ditadura militar. Todos os filmes tiveram de passar pela censura, mas eu não respeitei isso, e quando fui aos festivais houve uma explosão monumental. O filme mais conhecido que produzi foi Viridiana, um sucesso estrondoso. Foi feito com a cumplicidade de Luis Buñuel, que é o único a quem pedi cumplicidade para o que realmente ia fazer. Não me interessava em nada a história galdosiana (realista), muito menos as tendências neorrealistas de Marco Ferreri (um diretor muito interessante na época) e menos ainda a Nouvelle Vague a que se referiam. Mas apesar do fato de eu não me interessar pelas estruturas linguísticas dos filmes da Nouvelle Vague ou do neorrealismo italiano, reconheço o talento dos realizadores que transitaram naquele território e que merecem todo meu respeito e admiração. Por exemplo, Pasolini ou Rossellini, para citar alguns. Há Dreyer, e depois Truffaut, Alain Resnais e eu poderia citar muitos outros, como os mais jovens Sokurov, Tarkovski e Angelopoulos. Esses são meus clássicos. O fato de me interessar por suas estruturas, que seguem um pouco as raízes clássicas, aristotélicas, é porque fazem um cinema admirável em termos de espaços e vazios aparentes. Existe um potencial poético extraordinário nos filmes deles. Naquele momento, porém, meu ponto de vista era o de que em novos tempos, com novas mudanças, são necessárias novas formas de contar histórias. E as novas formas passam por códigos, e os códigos correspondem à possibilidade de quem olha, vê, toca e faz, não para saber o que acontece com os atores, o bem e mal pelo que passam. Cabe ao espectador fazer o passeio, para que ele possa entrar na história, e para que ele mesmo faça o encerramento. E este era o tipo de filme que eu queria fazer. E daí surge o filme que vocês me pedem para comentar. É um filme que tem sido interpretado como muito inusitado e pensam que pode ter importância na história do cinema. Não quero me vangloriar disso, mas é um trabalho realmente excepcional. É Vampir-Cuadecuc. Vampir-Cuadecuc é um filme rodado em 1970. Eu já tinha dirigido dois filmes com meus novos códigos, e esse tinha interesse para mim. Primeiro, pelo acaso. Havia muito tempo que pensava em fazer uma crítica de um filme conhecido, clássico, de qualquer gênero, principalmente feito em Hollywood. Fazer uma revisão que seria uma desconstrução dos seus códigos, e, a partir daí, uma versão distante. Foi quando, por acaso, minha esposa Anne Settimó (uma roteirista que trabalhava muito naquela época) me informou que em Londres havia um diretor chamado Jesús Franco que era conhecido por fazer filmes de fantasia e de vampiro e que estava preparando uma adaptação original e literal de Drácula, de Bram Stoker, com um produtor inglês, para ser filmada em Barcelona. Foi aí que percebi que a proposta diante de mim era muito melhor do que eu pensava. Consistia na filmagem de um clássico, do gênero de terror (o mais popular), por um diretor especializado no assunto, ao qual tive acesso através da amizade da roteirista que havia feito vários filmes com ele. Foi simples. Chamei Jesús Franco por telefone e expliquei para ele qual era a minha ideia: “O que te peço é que, enquanto você estiver rodando o seu filme, ou seja, no espaço de filmagem com seus atores, sem que eu seja um intruso, e sem que falemos, eu possa filmar minha visão de Drácula com todas as suas contradições sobre sua mitologia, o belo, o sinistro, a morte, etc., que não me interessam em nada.” Tive a sorte dele ser uma pessoa inteligente, e disse que concordava. A única coisa que me pediu foi para falar com o produtor dele, que iria a Barcelona para procurar locações. Mas, para ele, não havia nenhum problema. O produtor chegou, e foi uma conversa cordial. A primeira coisa que ele me disse foi: “Vamos fazer duas produções de Drácula, e temos de sincronizá-las de tal forma que elas estejam de acordo, tanto financeiramente, como na forma em que são gerenciadas. Dois filmes, dois diretores – isso pode ser muito interessante.” E então contei a ele um pouco sobre como iria filmar. O filme dos ingleses tinha todas as armadilhas importantes em termos dos meios, os guindastes, os efeitos especiais, tudo que você podia ter. Eu disse: “Primeiro, vou filmar em 16 mm”. Com isso o produtor já ficou bastante chocado. Naquela época o formato 16 mm nem tinha entrada nos cinemas. E eu também disse que filmaria em preto e branco. Aí ele ficou...bom, um filme de vampiro sem sangue vermelho, bom...ele finalmente me disse: “Olha, faça o que quiser. Mas você tem que conversar com os atores, porque eles vão dar a voz e nesse sentido, claro, posso responder pelas outras coisas, mas…” E eu disse a ele: “Não, vou filmar tudo em silêncio. Não vou gravar nada. Vou adicionar o som mais tarde, com o filme editado e finalizado. E isso por um motivo – o espectador do filme Conde Drácula, com Christopher Lee, vai conhecer os diálogos de cor.” E então ele me disse: “Bem, então faça o que quiser”. E eu falei: “Preciso de uma carta com sua autorização para o que vou fazer”. E ele escreveu a carta para mim. Essa é a origem de Vampir-Cuadecuc. A força que o filme possui consiste em dois aspetos. Primeiro, foi proposta uma produção inusitada na época para um filme que pudesse ser de gênero e com orçamento convencional. Eu filmei com três pessoas. Segundo: Os materiais que usei. Eu trabalhei com negativo de som para a imagem, pois a película de som tem uma emulsão muito forte. Eu queria texturas fundamentais, e o contraste entre preto e branco tinha que ser como nos ideogramas chineses. Não poderia ser com sombras, ou seja, não poderia ser Rembrandt – tinha que ser ideogramas. Foi muito difícil atingir isso, até que um colaborador inteligente percebeu que o negativo sonoro (que também era muito barato) seria a solução. Para trabalhar as texturas com o preto e branco de sempre, eu sabia o que significava revelar, os tempos da emulsão, e já tinha a intenção de levar isso ao limite, quase estourando o material em muitos casos. O operador de câmera que trabalhou comigo, Manuel Esteban, conhecia um vendedor de negativos da Kodak. Fomos lá e eu disse claramente: “Preciso de tantos metros de som que vou usar para a imagem”. “Sem problema.” “E vou submeter o preto e branco a um tipo de revelação, e... por acaso, você não teria película fora da validade?” Então, de uma forma muito profissional, o vendedor da Kodak me disse: “Não posso fazer isso. Poderíamos enfrentar um processo muito sério e isso também seria uma transgressão ética”. Eu disse a ele que o compreendia muito bem, mas que, de qualquer forma, se houvesse oportunidade, tomaria outras providências. E ele foi muito gentil. Quando saímos de lá, ele tinha o pedido do negativo de som, mas não encomendou o negativo de imagem por questões éticas, com toda a razão da parte dele. E após 7 ou 8 dias Manuel Esteban me ligou e disse: “Tenho um pacote aqui para nós – é o preto e branco vencido”. Como o material estava vencido, não valia nada e então o vendedor doou, ao invés de vender. Este foi um gesto maravilhoso – ele foi liberado da sua responsabilidade. Então o filme foi rodado com película de imagem vencida e com negativo sonoro. Disse que fizemos o filme com uma equipe de três pessoas. O processo foi livre de qualquer tipo de produção com outra produtora, ou de ajuda institucional, de solicitação de subsídios e de qualquer tipo de gratificação. Nada. Nem levar em conta os sindicatos. Éramos três, ponto final, mais dois eletricistas que vieram nos acompanhar. Este filme, se tivesse sido orçado na época, seria um dos filmes mais baratos já feitos e exibidos nos cinemas. Nas salas de cinema de arte, digo, e não nas salas comerciais, às quais o acesso era impossível. Do ponto de vista da história, mergulhei nas possibilidades reais do território semântico do cinema, tal como, por exemplo, um pintor pode submeter-se a uma superfície plana para pintar o que quer que seja, neste caso, levando em consideração que quando não há nada atrás, há uma parede, por exemplo. Mergulhei no território semântico do cinema que é luz, espaço e movimento. Ou seja, o importante, neste caso, é que aconteça o que for, o dominante deve ser a escrita, e os espaços são ocupados pelo que se move à frente, pelo que entra na luz, etc. Nesse sentido, elimina-se da história a possibilidade de enredo, ou de interesse psicológico, e cria-se uma situação onde os personagens, aqueles que ocupam esses espaços, são, ao mesmo tempo, integrados ao cenário e aos lugares. Os espaços e os movimentos de câmera são o que compõem o ambiente. Devo acrescentar que, na hora de filmar, Jesús Franco foi uma pessoa esplêndida com quem eu nunca tive problemas. Éramos uma dupla que nunca se falou ou se desentendeu durante toda a filmagem. Então eu rodava e ele sempre esperava nos posicionarmos para não ficar com a nossa câmera dentro da imagem dele. Meu filme se trata de uma espécie de desconstrução do personagem ou da mitologia do vampiro. A história é contada, como em todos os meus filmes, de tal forma que o espectador deixa de ser espectador e passa a ser usuário. Não estamos falando disso como algo de uns 20 anos atrás, não. Hoje 80% dos espectadores são usuários, porque eles são usuários todos os dias e também fazem imagens, e podem fazer uma imagem de uns 3, 4, 5 segundos que pode ser vista por um milhão de pessoas. Portanto, esse tipo de cinema que faço agora é mais fácil para o usuário, para quem assiste. Para isso é preciso deixar abertas as janelas por onde eles entram, fazer a sua viagem, sem ter consciência das minhas intenções, mas é a sua própria experiência que faz a viagem. E nesta jornada a história vai até o fim. Os meus filmes não têm fim, porque não fecham, continuam a ser um processo. Em Vampir-Cuadecuc, eu levo essa experiência ao limite, e o final do filme é exemplar nesse sentido. Teve um crítico que falou uma coisa muito boa, que no final do filme o próprio Drácula, junto a Portabella, faz uma desconstrução e uma revisão do seu personagem para devolver a arte ao personagem. O filme, ao longo de todo o seu percurso, teve uma boa aceitação, e acho que isso se deve ao fato de que, em sua raiz, ele é uma espécie de exemplo onde a produção, os códigos, ou seja, a linguagem, o projeto de produção, não trilha nenhum território que possa se tornar algo do mercado. Está absolutamente fora dele, sendo o mercado entendido como o controle e regulação de cânones para qualquer produto. Deste ponto de vista, é um filme que já não é underground, pois mais ou menos os undergrounds tinham investimentos sem fins lucrativos e não reembolsáveis de alguma fundação, etc. Aqui, não tinha nada. Quero dizer, limpo neste caso. Um crítico conhecido internacionalmente e cujo critério é referência – Jonathan Rosenbaum – declarou que Vampir-Caudecuc se tratava de um filme que entrou para a história do cinema. E de lá o filme foi rapidamente para o MoMA, em Nova York. O comentário deste guru do cinema americano surgiu após a exibição pública do filme no Festival de Cannes no mesmo ano em que o terminei, e fui automaticamente convidado para fazer uma exibição especial em Nova York. Você me pergunta o que tudo isso significa para mim. Significa um momento específico de um processo no qual estou imerso desde o início. Nesta aventura encontro-me num ciclo em que um filme depende de outros. Os filmes não são importantes em sua materialidade, o que importa é o processo, é a força que te impulsiona a fazer outros filmes. É uma espécie de corrente sem fim. Eu acho que este momento para mim foi uma espécie de orgia, calma, descontraída, e o resultado é que, quando me convidaram para ir a Cannes, eu não pude ir, porque ao mesmo tempo sempre vinculei a política à arte. E naturalmente eu já estava sem passaporte e com alguns processos abertos. Não pude ir a Cannes, mas mandei uma mensagem que foi lida lá. E aí começa a história que não parou mais – de lugar em lugar foi sendo exibido um filme que significava muito para mim. Mas sobretudo por muitas razões, às quais o nível de produção não é alheio. A produção é exemplar. Com recursos muito escassos, permitiu-me, fora do controle de qualquer instituição ou agência, executar uma ideia com requinte, intenção e sensibilidade, e não fazer um projeto com uma certa violência por falta de meios. Além de não se notar a falta de recursos – os elementos mínimos que tive foram excelentes para fazer este filme e não uma superprodução. Não vou trocá-lo por nada. Minha opinião é que este é o território do cinema. Mas não só cinema, também literatura, pintura, música... Isto é introduzido no espaço de uso para que nós e outros cresçamos no sentido de ter uma experiência muito mais global e aberta. Uma série de aspetos se cruzam e geram uma dinâmica em que a capacidade de enriquecer o pensamento está ligada à capacidade criativa-expansiva. As consequências de usar o negativo do som para filmar as imagens foram grandes. Obviamente o gesto atraiu muita atenção e fez muito sucesso já em Cannes e em todos os lugares que passou. Teve um impacto muito forte porque era incomum, não havia outros negativos que pudessem ter uma qualidade tão limpa como essa. De tal forma que, após dois ou três anos, a Kodak colocou a palavra “Kodak-Kodak-Kodak” a cada X fotogramas do negativo de som para que não fosse possível usar, pois estava virando moda. Quando eu estava com o filme montado, eu liguei para Carles Santos, que era um dos músicos mais interessantes do movimento vanguardista da época (como Stockhausen, ou muitos outros nos Estados Unidos). Pegamos o filme e fomos para o estúdio de mixagem. Com os objetos que ali estavam e algum material de arquivo que eles possuíam, assistimos ao filme com calma, colocando a música como uma história musical em cima da história, com absoluta independência. Não fizemos por partes para ver o que era melhor fazer, não. Começamos a projetá-lo e avançamos com calma. Para mim o filme é tudo, e um ruído é o mesmo que uma nota de Bach: som. Fizemos uma fita. À medida que avançava, colocamos os sons. Sons, por exemplo, de batidas em uma porta, o som de um piano de cauda que estava no estúdio de gravação para gravar músicas para outros filmes, Santos batendo embaixo da tampa... É preciso admitir que o engenheiro ficou perplexo porque foi a primeira vez que isso aconteceu, que isso foi sendo gravado e que se colocava sobre o filme os elementos que nos interessavam à medida que avançávamos. E, depois de ver o processo, ele ficou maravilhado. Foi assim que o som foi criado. No meu trabalho sempre colaboraram comigo pessoas que têm uma prática artística ou literária, ou que poderiam ser filósofos ou músicos. O papel do músico era o da pessoa ideal, alguém com uma sensibilidade, um instrumento que não domino e uma partitura que não sei ler, mas com a qual me entendo. Fizemos nosso trabalho em um dia e meio ou dois, e foi muito bom. E por falar nisso, ultimamente andam querendo fazer um vinil da trilha sonora do filme. A única coisa que peço é que eles me enviem porque quero muito ouvir. |
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