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“Sangue nas mãos deles: Luis Ospina”
 
A entrevista a seguir com Luis Ospina foi conduzida pela crítica de cinema Ela Bittencourt na ocasião de uma retrospectiva dos filmes do cineasta no festival DocLisboa, em 2018. Ela foi originalmente publicada em inglês na edição de maio/junho de 2020 da revista Film Comment. Agradecimentos vão à Bittencourt, autora de diversos textos sobre Ospina, e aos editores da publicação pela permissão de postar a tradução da entrevista para português.
 
Ela Bittencourt: Quando foi que se apaixonou por filme noir?
 
Luis Ospina: Fiquei viciado nele quando era estudante na UCLA [Universidade de Califórnia em Los Angeles). O cinema noir virou meu gênero favorito porque é muito pessimista, e meu trabalho é muito pessimista. O filme noir foi praticamente inventado por Hollywood, mas pode ser traduzido para qualquer país. Você tem noir feito na França, México, Brasil, Argentina, mas na Colômbia naquela época, ninguém tinha feito um filme noir.
 
Há um prazer e uma imperfeição nos filmes B que são muito atraentes. Em Cali, estávamos muito interessados em filmes de arte, mas havia um outro lado em nós, o lado dos filmes B e C. Eu vi a versão original de Hammer Films de Drácula (Dracula, 1958) quando tinha 9 ou 10 anos, e depois todas as sequências. A noite dos mortos-vivos (Night of the Living Dead, 1968), que vi durante a Guerra do Vietnã, me ensinou que o gênero de terror poderia ser adaptado à situação social ou política do seu próprio país. E, claro, Drácula é uma metáfora de poder. Você tem o Conde que mora lá em cima no castelo e literalmente vive do sangue de suas vítimas. O poder de um corpo sobre o outro — isso é vampirismo. Você morde alguém e ele se torna parte de você.
 
No nosso grupo, o escritor Andrés Caicedo era um grande admirador da literatura gótica, terror, Lovecraft e, especialmente, filmes de vampiros. E quando eu morava em Los Angeles, eu dividia um apartamento com um amigo mexicano que tinha uma televisão. Os programas passavam tarde da noite, e nós nos concentrávamos nessa telinha. Eu vi coisas maravilhosas, como Sanha diabólica (Curse of the Undead, 1959). Foi o único faroeste de vampiros que eu vi. Eu gostava de filmes de faroeste quando criança.
 
EB: Você fez o primeiro filme de vampiro da Colômbia, Puro sangue.
 
LO: Sim. Eu me baseei em mitos urbanos e um pouco em Howard Hughes — um personagem que vive isolado, assiste filmes, tem cabelo longo e unhas compridas. O meu filme era um tipo diferente de filme de vampiro, pois, ao invés de presas, eles tinham agulhas hipodérmicas. Acho que eu já tinha visto Martin (1977), de George A. Romero, um filme de vampiro moderno com agulhas. Depois disso, os filmes de vampiros tiveram versões diferentes, como O vício (The Addiction, 1995), de Abel Ferrara, onde os vampiros são viciados e o sangue é como uma droga.
 
Quando eu era um menino, houve uma série de estupros e assassinatos de crianças em Cali. Cadáveres foram encontrados em terras áridas a dois quarteirões da minha casa. Foi o primeiro cadáver que eu vi. Às vezes, o corpo tinha um buraco no coração. As pessoas inventavam uma história de que um homem rico e famoso, dono de um cinema ou hotel, era o responsável por esses crimes. Ele morava em uma casa estranha e bebia sangue de meninos. No filme, eu fiz as vítimas brancas e masculinas — para combinar o mito do Drácula com um famoso crime de ódio homofóbico que aconteceu quando eu era adolescente. Eu fiz do Drácula um magnata da cana-de-açúcar, porque depois da revolução cubana as pessoas precisavam de açúcar, e Cali era um dos melhores lugares para encontrá-lo. Tornou-se a única safra que dava lucro. Além disso, é branco — o negócio da cocaína estava começando, então há o pó branco. Os trabalhadores eram, em sua maioria, negros, o que você vê quando eles estão cortando cana-de-açúcar.
 
EB: O homem louco no filme que é culpado pelos crimes também é negro. Você toca em todos os tabus – classismo, racismo, sexismo, homofobia.
 
LO: Outro filme que me fez pensar muito sobre gênero e forma foi Os olhos sem rosto (Les yeux sans visage, 1960), de Georges Franju. Eu realmente gosto desse filme – é um dos meus favoritos. Há elementos dele em Puro sangue, quando eles saem à noite e sequestram garotos. Há também aquela música maravilhosa do Billy Idol, “Eyes Without a Face”.
 
EB: Filmes de gênero de produção barata, como comédias de terror ou pornochanchadas, eram populares em alguns países latino-americanos na década de 1970. Houve um impulso similar de gênero de baixo custo na Colômbia?
 
LO: Não, porque não havia concorrência na Colômbia. Durante a década de 1950, quase nenhum filme foi feito. Os filmes vinham de Hollywood, ou de coproduções mexicanas, mas realmente não havia um movimento ou indústria cinematográfica. Também não havia financiamento ou subsídios para filmes, então foi por isso que criamos nosso grupo de Caliwood. Agora, críticos e historiadores chamam o que começamos de “gótico tropical”, que de fato é algo que os brasileiros estavam fazendo antes de nós. Havia todo um movimento.
 
Mayolo conheceu o escritor colombiano Álvaro Mutis, que morava no México há muitos anos e era um bom amigo de Luis Buñuel. Em uma conversa, Buñuel disse que era muito difícil fazer um filme gótico nos trópicos. Álvaro disse: “Vou escrever uma história para você que prova que é possível”. Então ele escreveu o roteiro de A mansão de Araucaima (La mansión de Arucaima, 1986). Buñuel leu e quis filmá-lo — ele até escalou o elenco, mas o filme nunca foi feito. Muitos anos depois, a indústria de cinema colombiana comprou os direitos da história e encomendou Mayolo, porque éramos os únicos interessados em fazer cinema de gênero. Acredito que foi daí que surgiu o termo. Agora as pessoas dizem que Puro sangue foi o primeiro filme de “gótico tropical”.
 
EB: Você filmou Agarrando pueblo (Os vampiros da miséria) com Carlos Mayolo e vocês coescreveram o “Manifesto da pornomiséria”, em 1978. Como surgiu essa colaboração?
 
LO: Conheci Mayolo quando eu tinha apenas 7 anos. A casa da minha família foi destruída por uma explosão famosa na década de 1950, durante a ditadura militar colombiana. Doze caminhões de pólvora estavam estacionados no distrito da luz vermelha de Cali. De repente, eles explodiram — ninguém sabe porquê — e isso matou muitas pessoas. Quinze ou 20 quarteirões tiveram que ser evacuados, incluindo o nosso. Então nos mudamos para a casa da minha avó. Conheci Mayolo no novo bairro e começamos a ir ao cinema juntos.
 
Mayolo começou a fazer curtas industriais e filmes de publicidade em meados dos anos 1960. Quando voltei para a Colômbia para férias, em 1971, decidimos fazer juntos o curto documentário Ouça veja, durante os Jogos Pan-Americanos em Cali. Também participávamos de um cineclube. Tínhamos uma câmera e um gravador de som. Foi assim que começamos a trabalhar. Eu era muito tímido e ele tinha uma personalidade muito explosiva, muito rápida, muito engraçada. Nós nos complementávamos bem e compartilhávamos o mesmo senso visual e senso de humor. Fizemos documentários e até um curta-metragem de ficção juntos. Então, em 1977, fizemos Agarrando pueblo. Naquela época, a maneira mais fácil de ganhar dinheiro era simplesmente sair para a rua e fazer filmes sobre a pobreza, com uma narração colada em cima das imagens. Muitos filmes miserabilistas estavam começando a ser feitos. Estávamos reagindo a isso, porque achávamos que a pobreza estava virando um tipo de mercadoria.
 
EB: Quando você estava morando em Los Angeles, você chegou a ver os pseudodocumentários norte-americanos, por exemplo, Symbiopsychotaxiplasm: Take One (1968), de William Greaves?
 
LO: Não. Me lembro de ter visto outros, mas depois. Naquela época, ninguém falava em fazer documentários. A única coisa parecida com o nosso filme na tradição de documentário latino-americano era Triste Trópico (1974), do brasileiro Arthur Omar. Decidimos fazer Agarrando pueblo como uma provocação. É por isso que, quando você começa a assistir o filme, não sabe do que se trata: “Devo rir? Devo ser contra?” Às vezes, você tem que usar as armas do inimigo para destruir o inimigo — como um antídoto na medicina. Você inocula para erradicar a doença. É um filme terapêutico nesse sentido. Ele gradualmente flui para a ficção, porque a parte do meio é toda roteirizada, mas no final, ele se torna novamente um documentário.
 
EB: No Doclisboa, você fez uma distinção entre fazer filmes políticos versus fazer filmes politicamente. O que você quis dizer com isso?
 
LO: Um dos nossos objetivos era fazer os diretores pensarem sobre ética antes de fazer um filme, porque há um vampirismo intrínseco no cinema. Você está pegando a imagem de alguém, e com essa imagem e som você pode fazer um filme ideológico que é de esquerda ou de direita ou o que for. Tudo depende de como você monta o resultado. O filme não é objetivo e o documentário não é completamente verdadeiro, especialmente quando é feito por cineastas de esquerda. Eu não acredito que você possa usar o cinema para mudar o mundo ou para apoiar uma ideologia.
 
EB: Houve apoio estatal na Colômbia para seus filmes?
 
LO: Sempre me considerei não convencional, underground. Fiz os filmes que queria fazer sem concessões, principalmente porque eu mesmo os produzi. Raramente recebi dinheiro do governo ou de outros países – apenas para Sopro de vida, da França. E meus filmes são de orçamento muito baixo. Mas decidi parar de fazer longas-metragens. Sopro de vida foi minha despedida dos filmes de ficção, e é o único filme que fiz em que não fui o roteirista original. O roteiro foi escrito pelo meu irmão, Sebastián Ospina. O governo parou de financiar a indústria cinematográfica por 10 anos. E então, 10 anos depois, eles tinham apenas um prêmio, de melhor roteiro. Meu irmão ganhou esse prêmio. Ele não queria dirigir o filme, então me convidou, e eu imediatamente disse “sim”, porque era um filme noir. Eu não fazia um longa-metragem de ficção há 18 anos. Eu estava morando em uma casa alugada em Cali. A maioria dos meus amigos tinha ido embora, e eu decidi ir para Bogotá e fazer esse filme.
 
Adaptei o roteiro e pesquisei muito sobre filme noir. Mostrei para minha equipe partes de Fuga do passado (Out of the Past, 1947), de Jacques Tourneur, que para mim é o melhor filme noir já feito. Havia uma cena de Força do mal (Force of Evil, 1948), de Abraham Polonsky. Alguns exemplos do cinema noir mexicano. Até coisas como Psicose (Psycho, 1960). O filme noir não era sobre o sonho americano, mas sobre o que tinha acontecido com esse sonho americano: a femme fatale, a paranoia, a corrupção, os lados muito escuros da alma humana. Depois da Segunda Guerra Mundial, a atitude social mudou. Esses foram os filmes mais políticos feitos em Hollywood. E o filme noir também era perfeito para a Colômbia, porque temos uma visão pessimista, corrupção política, um alto grau de impunidade e, claro, tráfico de drogas. Nos anos 1980, quando o filme se passa, os traficantes de drogas estavam se tornando uma força feroz e mortal. Meus filmes de ficção são sempre baseados na realidade.
 
EB: E após isso, você desistiu de fazer filmes de ficção.
 
LO: Nunca me senti confortável com a hierarquia de longas-metragens de ficção. Quando Sopro de vida foi concluído, os distribuidores não gostaram dele. Eles arquivaram o filme por cerca de um ano e então o lançaram da pior maneira possível. Foi um desastre financeiro. Perdi muito dinheiro. Meu irmão perdeu um apartamento. Prefiro fazer documentários. A tecnologia mudou naquela época: o vídeo se tornou uma alternativa em meados dos anos 80, e depois o digital. O filme de ficção é como uma operação militar, então nunca tentei fazer outro. Entre Puro sangue e Sopro de vida, escrevi um roteiro com meu amigo Sandro Romero, porque sempre quis fazer uma comédia bem sombria. Quase foi feito.
 
EB: Deve ser uma sensação agridoce para você ver Puro sangue e Sopro de vida terem uma segunda vida em festivais.
 
LO: Quando fiz Puro sangue, comecei a odiar o filme. Mas com o passar do tempo, percebi que ele tinha uma circulação underground em VHS, e meio que se tornou um filme cult. O mais perto que cheguei de fazer ficção depois disso foi com Um tigre de papel. Alguns dos meus projetos se tornam retratos de gerações, e eu quis fazer Um tigre de papel sobre a minha geração, da década de 1960, com utopia, ideias totalitárias e como tudo isso acabou mal. E, claro, era um pretexto para falar sobre a relação entre arte e política. O filme não poderia ter sido feito antes da queda do Muro de Berlim, porque muitos de seus participantes eram militantes com fortes inclinações esquerdistas e marxistas — membros do Partido Comunista. Depois da queda, eles estavam dispostos a mentir e a rir de suas próprias ideias.
 
Um tigre de papel está um pouco à frente de seu tempo, mais em sintonia com o que está acontecendo agora com a pós-verdade. Eu queria questionar os dispositivos narrativos que você usa para dizer a verdade e para contar uma mentira — eles são os mesmos. O personagem principal do filme, Pedro Manrique Figueroa, foi inventado pelo meu sobrinho em 1996. Quando ele estava na faculdade de arte, ele e seus amigos foram convidados a escrever sobre seu artista favorito, então eles inventaram um. Eu gostei muito da ideia de inventar um artista, então decidi fazer um mockumentary, com todas as características tradicionais de um documentário: material de arquivo, entrevistas, documentos históricos. Procurei pessoas que tivessem muita credibilidade com a cultura ucraniana: historiadores, cineastas, ex-militantes, artistas. Eu descreveria o personagem para eles e perguntaria: “Você conhece alguém assim?” Eles diriam: “Ah, sim, eu conheci alguém na década de 1960”. Todo mundo tinha uma anedota sobre alguém que conhecia. Então eu disse a eles para mudar os nomes e improvisar histórias, e eu inventaria um contexto no qual eles poderiam ter conhecido meu personagem. E daí, eu sempre tentava encontrar um conflito.
 
EB: Parece um pouco como um romance latino pós-moderno.
 
LO: 2666 (2004), de Roberto Bolaño. Na verdade, quando eu estava fazendo o filme, as pessoas sempre falavam comigo sobre esse livro. Eu o li depois. Eu também fiquei sabendo do escritor espanhol Max Aub, que emigrou para o México. Ele inventou um artista chamado Jusep Torres Campalans, dizendo que esse pintor era amigo de Picasso. Eu fiz muita pesquisa nos acervos de cinema colombianos. Um filme sobre um artista de colagem deve ser uma colagem em si. Para mim isso foi fácil, porque muitos dos meus filmes posteriores são colagens.
 
EB: Tudo começou pelo fim inclui vídeos da sua cama de hospital, antes e depois da sua cirurgia para tratar um câncer, além de alguns registros feitos com amigos, cozinhando e conversando em jantares.
 
LO: Eu sou o que você pode chamar de um acumulador. Durante toda a minha vida, especialmente desde que decidi ser cineasta, guardei tudo. Cartas, fotografias, souvenirs. Nós, acumuladores, guardamos coisas porque elas podem ser úteis – não sei para quê. Quando fiz o último filme, finalmente soube por que guardei toda essa merda. Revisei todos os meus arquivos e comecei a classificá-los. Não apenas em relação a mim mesmo, mas também em relação a meus amigos e a cidade. O material finalmente tinha um propósito.
 

 

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