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“Da realidade à ficção – da pobreza à expressão”
 
O texto a seguir foi originalmente escrito por Michel Khleifi e publicado em El Pais em fevereiro de 1997. Em 2006, ele foi publicado em inglês no livro Dreams of a Nation: On Palestinian Cinema – editado por Hamid Dabashi – e em francês na ocasião de uma retrospectiva dos filmes de Khleifi realizada na Bélgica em 2019, que também resultou na publicação de um livro bilingue (francês-inglês) sobre a obra do cineasta. Mais textos do livro podem ser encontrados através do página organizada pela revista online Sabzian. Após a publicação original do texto, Khleifi realizou mais dois filmes – Route 181: Fragments of a Journey in Palestine-Israel (2003, co-dirigido com Eyal Sivan) e Zindeeq (2009). Agradecemos à equipe do Courtisane Festival e ao Michel Khleifi pela permissão de traduzir o texto para português.
 
Em 1948, dois grandes eventos ocorreram no Oriente Médio: a criação do Estado de Israel e o início da tragédia palestina. Duas realidades diferentes evoluíram desde então: o Estado de Israel se fortaleceu como uma potência regional com um formidável arsenal militar, econômico e tecnológico, enquanto a causa palestina continuou a se marginalizar dentro do mundo árabe ­– ele próprio atormentado por guerras civis e regimes militares ou monárquicos que ainda negam aos seus povos direitos democráticos básicos. A intensidade das amargas lutas no Oriente Médio, no entanto, contribuiu para a mudança radical que lenta e gradualmente se consolidou após a Guerra de Outubro de 1973, primeiro com a visita do Presidente Anwar Al Sadat [de Egito] a Jerusalém em 1977 e depois, em meados da década de 1990, a assinatura de um tratado de paz entre alguns países árabes e o Estado de Israel. Este acontecimento foi considerado por alguns como uma capitulação e por outros como uma escolha estratégica que foi projetada para remediar e reestabilizar o Oriente Médio.
 
Após a Guerra do Golfo, em 1990, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e o Estado de Israel iniciaram negociações e tratados de reconhecimento mútuo. Por alguma força da história, essas duas entidades, antes inimigas, tornaram-se alter egos e agora são, talvez, parceiras, para o bem ou para o mal. Foi dentro de um contexto de raiva e revolta que comecei a minha carreira cinematográfica no início da década de 1980. Isso foi o resultado da minha experiência pessoal, política e cultural, que foi influenciada pela minha infância nas décadas de 1950 e 1960 em Nazaré – um lugar que, para mim, era um gueto no coração da Galileia sob o domínio israelense. Naquela época, estávamos isolados do mundo árabe, toda opinião progressista era suprimida pelo poder militar e nosso povo estava espalhado entre os países árabes. O currículo educacional foi revisado, remodelado e imposto a nós pelo novo Estado. Para nós, esta foi uma época de medo e isolamento – na verdade, de solidão.
 
Meu primeiro marco cultural foi quando descobri a poesia, o teatro e a literatura através de escritores notáveis como Pablo Neruda, Federico García Lorca, Nazim Hikmet, Paul Eluard, Vladimir Maiakovski, Emile Zola, Victor Hugo, O. Henry, Bertolt Brecht, August Strindberg, Henrik Ibsen, Anton Tchekhov e outros – sem mencionar poetas e escritores árabes cujas obras chegavam até nós de tempos em tempos. Todos esses escritores e poetas nos forneceram pequenas janelas para o mundo e a esperança de liberdade, que cada pessoa precisa para humanizar sua vida cotidiana e torná-la mais suportável. Naquela época, no único cinema de Nazaré, costumávamos compartilhar com os espectadores do resto do mundo o prazer de assistir a filmes hollywoodianos dos anos 1950 e 1960, antes do surgimento da televisão, que acabaria fechando essa maravilhosa janela dos sonhos. Na verdade, ainda hoje, quando vejo um filme daquele período, sinto-me criança novamente e percebo o impacto dessas produções sobre o que é feito hoje.
 
Dentro desse contexto, a Guerra Árabe-Israelense de 1967 teve consequências negativas para as sociedades árabes em geral e particularmente para a sociedade palestina, e, mais tarde, para a sociedade israelense também. É somente agora que nos conscientizamos das consequências negativas daquela guerra, que viu Israel derrotar todos os exércitos árabes e ocupar um enorme território, e assim, forçando-se a governar uma grande população civil. A guerra de 1967 reuniu o território palestino e abriu nossa sociedade para o mundo árabe após vinte anos de isolamento. A situação se tornou explosiva e revolucionária. A OLP se afirmou em um nível político, militar e ideológico, e consequentemente sua influência se tornou grande. Por meio da reunião da maioria dos intelectuais árabes e palestinos, uma cultura da OLP surgiu. Literatura, poesia, cinema e expressões populares faziam parte das atividades favorecidas pela OLP para renovar uma identidade árabe-palestina.
 
A guerra de 1967 viu o fim da inocência, enquanto o tempo de construção de fundações políticas e nacionais estava começando. Foi também um tempo revolucionário em todo o mundo: a Guerra do Vietnã, os movimentos em favor da democratização no Bloco Oriental, a maré de protestos nos EUA e o período pós-1968, que abriu caminho para uma verdadeira revolução cultural na Europa.
 
Após 1967, tomei consciência de que sem um verdadeiro movimento cultural, que defendesse uma mudança genuína em nosso pensamento e que reconhecesse o indivíduo como um cidadão com seus direitos salvaguardados dentro das estruturas dos estados árabes existentes e futuros (o estado palestino, por exemplo), a esperança de ter uma sociedade libertada permaneceria um sonho remoto. Também tomei consciência da necessidade de descolonizar a ação cultural da dominação do discurso político e ideológico. Como é que podemos criar uma cultura que pudesse reter em si sua própria originalidade e especificidade, ao mesmo tempo em que continuasse sendo universal? Como é que podemos criar um cinema que possa transmitir a experiência humana palestina, verticalmente (historicamente) e horizontalmente (com base na realidade diária das pessoas)? Existe realmente uma cultura dos pobres e, se sim, como protegê-la? Essas questões estavam em minha mente antes de eu partir para a Bélgica no início da década de 1970.
 
Durante a década de 1970, o cinema palestino existiu como a expressão política da OLP. Os filmes focavam diretamente nos eventos vivenciados pelas populações palestinas na Jordânia até 1970 e no Líbano depois disso. Perto do fim da Guerra Civil no Líbano, esse cinema morreu lentamente, sem nunca ter brilhado, porque seu papel foi assumido pelas câmeras de televisão, que correram para filmar o Oriente Médio. Ao meu ver, a causa palestina era justa, mas a maneira como estava sendo combatida estava errada. Tínhamos que fornecer ao mundo uma outra maneira de falar sobre nós. Na época, tínhamos a ideia simplista de que o mundo estava contra nós e que os sionistas estavam em todo lugar. Desde a infância, eu tinha um ponto de vista específico, e queria que ele estivesse no centro da minha expressão cinematográfica. A força de Israel vem da nossa fraqueza, e a nossa fraqueza não vem da força de Israel, mas sim das estruturas arcaicas da sociedade árabe: tribalismo, patriarcado, religião e vida comunitária, onde não há reconhecimento da pessoa como indivíduo, nem dos direitos dos homens, das crianças e, acima de tudo, das mulheres.
 
Esses eram os eixos em torno dos quais eu queria organizar meu trabalho. Ao proteger o indivíduo de vários regimes opressivos, o mundo árabe alcançará uma nova cultura. Ao nos movermos em direção a outros indivíduos, com todas as nossas contradições, mas sem medo, recuperaremos nossa fé no passado, no presente e no futuro do nosso destino comum. Quanto ao confronto com Israel, é em torno dos princípios dos direitos humanos que ele deve ser resolvido. Ninguém deve comprometer esses direitos legítimos ou o princípio da igualdade perante a lei. De agora em diante, nossa vida diária deve ser organizada em torno do direito civil e não em torno das leis de mitologias religiosas e arcaicas.
 
Então, como você pode ver, fazer um filme sobre ou para a Palestina não é uma tarefa fácil. Somos confrontados com muitos elementos internos e externos de nossas múltiplas histórias: uma história definida de forma diferente por diferentes pessoas – israelenses ou palestinos, judeus ou árabes, árabe-muçulmanos e judaico-cristãos ocidentais. Somos confrontados com máquinas de guerra comerciais, tecnológicas, ideológicas e históricas. Nós, cidadãos amaldiçoados deste mundo subdesenvolvido, este Terceiro Mundo de misérias, o que podemos fazer? Devemos continuar produzindo, criando e lutando pela vida. Devemos fazer parte de um dos movimentos intelectuais mais dinâmicos e progressistas, seja cultural, estético ou filosófico. Devemos nos apropriar do mundo, assumir o controle dele. O pensamento não reconhece fronteiras – é tão livre quanto o vento, pronto para abandonar qualquer idioma ou região se for derrotado pela repressão.
 
Meus filmes fazem parte de uma linha de pensamento que sempre tenta libertar as linguagens de seus sistemas dominantes, sejam ideológicos ou comerciais. Minhas raízes cinematográficas vêm da história do cinema direto, que se ancorou na realidade das pessoas. Como cineasta, eu queria alcançar uma linguagem cinematográfica universal. Um século após a invenção do cinema, devemos ir além das diferenças, tendências e escolas do fazer cinematográfico. Nós não podemos separar o documentário do filme de ficção. A pergunta que faço a mim mesmo é: Como posso fazer, com som e imagem, um filme que integre em uma só obra drama, teatro, ação e reportagem?
 
Não vamos esquecer que venho de uma origem de pobreza do Terceiro Mundo, então a cultura dos pobres sempre esteve no fundo da minha mente, me empurrando para encontrar soluções para ser criativo. Talvez o ponto de vista de alguém possa combinar tudo isso ao olhar como uma forma de pensar sobre o cinema como a escrita. A literatura pode combinar todas essas noções. Em um romance, uma descrição documental pode seguir uma cena fictícia e então uma evocação poética de um detalhe: luz, cor e movimento, sem criar um problema para o leitor. Acho que, no nosso caso, a única maneira de confrontar o poder do cinema comercial é usar uma câmera como você usaria uma caneta. Para desenvolver esse conceito, tive que fazer muitas perguntas:
 
I. O que é “cinema direto?” Os diretores Robert J. Flaherty, Dziga Viértov, Joris Ivens, Henri Storck, Alain Resnais, Chris Marker, Jean Rouch, Jean-Luc Godard estão todos ancorados na realidade?
 
II. A obsessão pela objetividade apresentada pelas reportagens televisivas realmente resiste ao escrutínio?
 
III. O que é a subjetividade, e como é que ela se manifesta? Ela está na visão coletiva de uma equipe de filmagem, de um ponto de vista filosófico, social, cultural? Está no aspeto técnico de um meio, no enquadramento, no estoque de película, na trilha sonora? Ou está com o jornalista ou o diretor que atua como o representante do espectador – é ele ou ela que compreende a linguagem do cinema?
 
IV. Quais são os limites e as potencialidades do cinema militante? E como jovens cineastas, sem condições financeiras, conseguem filmar a realidade como se fosse ficção ou a ficção como se fosse realidade, como no neorrealismo italiano, na Nouvelle Vague na França, no Cinema Novo brasileiro e no cinema independente norte-americano?
 
V. Como a poesia é usada por diferentes escolas cinematográficas? (Para os realistas italianos Roberto Rossellini, Vittorio de Sica e Cesare Zavattini, a poesia serve ao sujeito. Nos filmes de Pier Paolo Pasolini, o sujeito serve à poesia do diretor. Nos filmes de Andrei Tarkovski e dos irmãos Taviani, a poesia é como um sujeito servindo ao espectador. No cinema nascido do nouveau roman na França – Marguerite Duras, Alain Robbe-Grillet, Claude Simon, Alain Resnais – a poesia é perversão.)
 
Todas essas perguntas me levaram a uma conclusão: a expressão cinematográfica carrega em si uma lógica de narração. Ela deve narrar uma história, e toda história é o resultado de um discurso subjetivo, que vem de (um) indivíduo(s). Decidi como um indivíduo livre dedicar o meu trabalho a mostrar a experiência palestina de acordo com minha percepção do mundo, através do cinema. Essas perguntas me ensinaram a assistir um filme para assistir à realidade, a ouvir vozes e ressonâncias para poder ouvir os gritos e alegrias das pessoas. Ver e ouvir, como disse Godard.
 
Entre 1977 e 1980, me envolvi na direção de vários documentários na Palestina/Israel para a TV belga. Naquela época, os documentários que fazíamos eram essencialmente baseados na narração de um jornalista que leu um roteiro analisando o assunto e foram ilustrados com imagens. Essas sequências eram pontuadas com entrevistas políticas. Desde meu primeiro filme para TV, reduzi a narração — diminuí os discursos dos políticos e me concentrei em situações poderosas que expressavam a complexidade da realidade. Eu estava dando voz às pessoas que estavam vivenciando o evento. Depois do primeiro documentário, tive a sensação de que a lógica da televisão estava limitada aos eventos e era incapaz de se aprofundar no assunto para ver e ouvir as razões ocultas por trás deles. O assunto estava sempre sendo “coberto” em vez de ser revelado para mostrar as raízes dos eventos. Essa era (e é) a grande contradição dos filmes para TV.
 
Por outro lado, o indivíduo sempre foi mostrado como uma abstração: o palestino, o israelense, o exército, os fedayin (combatentes pela liberdade). Quem são eles? Como vivem, o que pensam, sonham, esperam ou se desesperam? De onde vêm e para onde estão indo? A ideia do meu primeiro filme, A memória fértil, deriva dessas questões. Pensei que se quisesse fazer um filme sobre minha sociedade, eu teria que levantar questões rígidas: Se os palestinos são vítimas dos israelenses, então quem são os israelenses? As vítimas da repressão desumana que se tornaram os algozes do povo palestino? Mas os palestinos – eles são apenas vítimas, ou também são vítimas e algozes? São algozes, mas em relação a mulheres e crianças...Tudo deve ser tomado em seu próprio nível, e o ato de apenas verificar o dano causado não mostrará quem é a vítima ou o algoz. Nós só podemos chegar à verdade denunciando a lógica e os sistemas que nos transformam em potenciais algozes e vítimas.
 
Foi assim que decidi fazer um filme para – e não sobre – as mulheres da Palestina, e através delas, um filme para a Palestina. Em A memória fértil, a Palestina – sua história, sua realidade, seu futuro e suas contradições – aparece através dos retratos de duas mulheres, que são quase marginais aos olhos da sociedade: uma viúva e uma trabalhadora. Elas se tornam os arquétipos das experiências de seu povo e evidenciam como uma sociedade subjugada oprime metade de sua população. A memória fértil foi, para mim, a visão do presente em direção ao passado para um futuro melhor. Tentei empurrar as cenas reais da vida cotidiana para a ficção ao investigar os mundos externo e interno das duas mulheres. Tive que suprimir os limites entre realidade e ficção, documento e narração. Não é o caso da Palestina ser a essência do país mítico, apesar de sua realidade?
 
A memória fértil virou o cinema militante da OLP de cabeça para baixo. Ele demonstrou que é mais importante mostrar o pensamento que leva ao slogan político do que a expressão desse slogan, que é o discurso político. Pela primeira vez, pudemos ver mulheres palestinas em seu ambiente privado, sozinhas. Sua memória estava se tornando sujeito, já que elas próprias eram os sujeitos do drama de seu povo. Assim, A memória fértil é impregnada com poesia palestina “do interior”, como vários comentaristas observaram – ou seja, da sociedade palestina dentro do Estado israelense.
 
Depois que terminei este filme em 1981, os eventos tomaram um curso dramático no Oriente Médio: uma guerra direta entre Israel e a OLP no sul do Líbano, o assassinato do presidente Sadat e guerras civis entre palestinos no Líbano na presença dos exércitos sírio e israelense no Sul, o que resultaria na ocupação de Beirute, o que por sua vez resultaria na saída da OLP do Líbano. Foi neste contexto de novas derrotas que comecei a escrever o roteiro do filme Casamento na Galilea.
 
Naquela época, os produtores de cinema queriam apenas cenários fortes escritos no modelo americano, com um final feliz. Eu estava procurando sem sucesso uma equipe de produção para trabalhar em um projeto chamado Uma temporada no exílio, que representaria uma continuidade estética e dramática de A memória fértil ao acompanhar uma jovem palestina que fugiu de sua aldeia para seguir seu amante para a Europa. Para Casamento na Galilea, a ideia veio a mim através da história de um médico charlatão que se deparou com um casal de recém-casados incapaz de fazer amor na noite de núpcias, criando uma tensão insuportável em uma aldeia. A partir dessa ideia, escrevi uma tragédia moderna na qual dois “deuses” se confrontam em representação de dois sistemas, militar e moderno: um do governador militar israelense e o outro da autoridade patriarcal e arcaica do mukhtar palestino, ou prefeito da aldeia. Enquanto cada um tenta puxar o destino para o seu lado, é o destino do povo da aldeia que está em jogo. A questão é: quem vencerá?
 
Neste filme, eu queria apagar as fronteiras entre ficção e realidade. Os personagens vieram da minha imaginação, mas foram interpretados por atores não profissionais que foram escolhidos por sua semelhança com os personagens do cenário. Eu estava interessado no tema da alegria e resiliência sob ocupação. Tentei multiplicar os pontos de vista do realismo ao formalismo e documentário teatral. A imanência avassaladora da sociedade palestina e a maneira como ela está ancorada na realidade vertical, na realidade histórica e cultural de sua terra – isso tinha que ser mostrado. Eu também tinha que me concentrar nos elementos visíveis do confronto (israelense/palestino, soldado/civil, poder/emoção, etc.) e outros elementos invisíveis (velho/jovem, homens/mulheres, sexualidade/tradição, símbolos/necessidades). Ao limitar o drama dentro de um único espaço e um curto período, eu queria abordar a rigidez maniqueísta do modo de pensar árabe e palestino, por um lado, e os israelenses e seus apoiadores, por outro. Serguei Eisenstein disse uma vez: “Você pode encontrar a complexidade do mundo em uma gota de orvalho”. Então como podemos descrever uma realidade tão formidável quanto a do Oriente Médio?
 
Este filme foi feito durante um período muito confuso, quando os protagonistas do drama não sabiam para onde estavam indo (entre 1983 e 1987): todos os caminhos estavam abertos. Houve uma espécie de silêncio antes da tempestade. O filme foi concluído e exibido em Cannes seis meses antes do início da Primeira Intifada, enquanto três anos depois, foi a vez da “Operação Tempestade no Deserto” tentar destruir o Oriente Médio.
 
Casamento na Galilea teve um impacto incrível. Além dos inúmeros prêmios internacionais que recebeu, o filme foi exibido em todo o mundo, gerando debates emocionantes e provocando espectadores. Alguns puderam perceber a possibilidade de uma coexistência no Oriente Médio, outros viram o filme como uma obra poética e humanista e outros ainda como uma denúncia do arcaísmo da sociedade árabe-palestina. Eu acho que, com este filme, segui o meu caminho: fazer filmes que levantam questões, em vez de filmes que dão respostas. Eu realmente acho que as perguntas geram vida e as respostas, morte. Sempre acredito em espectadores ativos e nunca em passivos. Todas as leituras estão certas, mas são sempre incompletas, como a própria vida.
 
Embora os poetas palestinos tenham me influenciado na criação de A memória fértil, li quase todos os contos e romances palestinos antes de escrever Casamento na Galilea. O filme se refere às obras de Emil Habibi acima de tudo, mas também de Mohammed Naffa e outros. Mas o poeta que mais me influenciou na escrita e na direção deste filme foi Yiannis Ritsos, o grande poeta grego que faleceu em 1990.
 
No final do filme, os aldeões palestinos vão às ruas e se rebelam contra a ocupação militar. Seis meses após a estreia mundial de Casamento na Galilea no Festival de Cannes (onde recebeu o Prêmio da Crítica Internacional), o povo palestino de Gaza, e mais tarde, da Cisjordânia, se rebelou e a Primeira Intifada (1987-94) incendiou o país inteiro. Acho que muitas pessoas viram no filme um vislumbre de esperança na realidade sombria e violenta dos primeiros anos da Intifada. Isso foi bom. Mas eu já estava sentindo a urgência de fazer algo que narrasse o sofrimento do povo da Intifada: famílias, mulheres, homens e, acima de tudo, crianças que estavam morrendo pelas balas do exército.
 
Em 1989, eu tinha acabado de concluir uma adaptação para o cinema do primeiro romance de um amigo belga, A ordem do dia (L’ordre du jour, de Jean-Luc Outers, publicado em 1987), que era sobre burocracia, individualismo e corrupção na Bélgica, com uma abordagem que você poderia chamar de kafkiana. Eu estava animado com a ideia de fazer um filme que daria uma reflexão ficcional e antropológica sobre a vida dessa classe burocrática, a maior classe nos países desenvolvidos de hoje. Pensei em filmar o exílio existencial do indivíduo europeu no final do século XX. No entanto, a urgência me fez deixar esse projeto de lado e ir para Jerusalém para fazer um novo filme chamado O cântico das pedras.
 
O projeto inicial era fazer uma investigação poética e impressionista com base nos retratos de algumas das crianças mortas pela repressão israelense. Novamente, tive que ir além das imagens reducionistas transmitidas pelas inúmeras reportagens televisivas internacionais, especialmente pela CNN. Os palestinos já tinham um discurso automático reservado para eles, uma espécie de linguagem “pronta para vestir!” para jornalistas. Inverti o problema e comecei a filmar o tema do sacrifício como sujeito da Intifada. Essa era uma abordagem universal, já que o sacrifício faz parte de toda a experiência humana. “Todo mundo está sempre sacrificando algo”, diz o protagonista masculino do filme, seja para quem for – família, entes queridos, filhos, trabalho – todos têm que sacrificar um pouco de sua dignidade e liberdade. Então, ao invés de falar dos mortos como mártires, uma ideia beirando o fascismo, eu queria enfatizar seu valor universal e entender sua morte como uma forma de sacrifício.
 
Eu primeiro escrevi um diálogo poético com duas vozes: Ela e Ele. Enquanto o escrevia, percebi que havia alguma semelhança com o roteiro de Hiroshima, meu amor (Hiroshima, mon amour, 1959), de Marguerite Duras, que serviu como a base do grande filme de Alain Resnais. Pensei nessa semelhança e percebi que o Oriente Médio e a Palestina, destruídos pela guerra, pareciam a Europa do pós-guerra no final dos anos 1940. Cidades e aldeias, terras, casas e, acima de tudo, almas foram danificadas. Cinquenta anos depois, parece mais ou menos o equivalente a várias explosões atômicas. Então, por que não ter as referências literárias e cinematográficas de Hiroshima, meu amor? Além disso, a invocação do filme era uma forma de chamar a atenção para o fato de que Marguerite Duras sempre manteve uma posição inflexível pró-Israel, mesmo durante a invasão do Líbano e a ocupação de Beirute em 1982. Falar de Hiroshima é também rejeitar todas as situações de violência e repressão no mundo. É defender todas as demandas por dignidade e liberdade, que surgem em todo o mundo, e ser solidário com essas demandas. Você não pode se manter seletivo quando se trata das implicações dessas questões. O cântico das pedras foi exibido em Cannes e, como esperado, provocou discussões e debates acalorados.
 
Depois da Guerra do Golfo, dirigi meu primeiro filme belga. O tema, a locação e os personagens vieram todos do romance do meu amigo Jean-Luc Outers. Como expliquei, era um olhar quase antropológico sobre os burocratas do fim deste século. Um crítico escreveu o seguinte: “O filme lança um olhar crítico e irônico sobre o nosso mundo ocidental em mudança... por meio de um estudo poético-lírico de nossas sociedades burocráticas onde o absurdo surrealista frequentemente se mistura com a realidade.” Não vou me deter naquele filme, que até hoje continua sendo uma lembrança dolorosa para mim: por meio da rejeição irracional dele na Europa, descobri que a sociedade europeia recusa, de forma intolerante, qualquer ponto de vista externo sobre sua própria realidade. Pareceu-me que a opinião predominante (“o que um cineasta árabe tem a ver com isso?”) era semelhante à recusa contundente, que também é uma forma de censura, da maioria dos regimes árabes dos meus filmes, e em relação a Casamento na Galilea particularmente. Os dois lados são semelhantes e desconcertantes em suas atitudes: “Esta imagem não se parece conosco!” Os árabes não reconhecem os problemas reais de uma mulher, (o problema de sua virgindade, por exemplo), ou os problemas reais de um homem em sua sexualidade. E os europeus não querem que seus sistemas burocráticos e estatais sejam inspecionados, os mesmos sistemas que fornecem trabalho a dezenas de milhões de homens e mulheres. Ambos os grupos estavam me acusando, cada um à sua maneira, de ser hostil a eles. Os árabes achavam que eu era muito ocidentalizado e os europeus achavam que eu, o "oriental", os estava filmando sem amor. Em outras palavras, o filme foi um golpe para mim. Foi difícil conviver com isso, especialmente quando havia tanto mal-entendido.
 
E então eu escrevi e dirigi O conto das três joias na Faixa de Gaza, pouco antes de Yasser Arafat entrar. Foi como pegar a estrada para a Palestina, mais uma vez explorando um novo aspeto da aventura humana do meu povo: o tema da capacidade de infância no ninho perdurar sob ocupação e violência. E a necessidade de reconstruir o mundo das crianças de Gaza e seu direito de sonhar e ser tão livre quanto qualquer outro cidadão do mundo que reivindica seu direito à vida. Uma sociedade não pode ser construída sem a criatividade de suas crianças. No Oriente Médio, é necessário fazer com que as crianças, incluindo as crianças israelenses, considerem a história de sua região com base em uma tradição inteira: em outras palavras, é necessário fazê-las entender que a história de sua região pertence a todas elas. Dessa forma, eu poderia construir o cenário a partir dos elementos das tradições culturais populares e religiosas da região: contos, livros sagrados, crenças populares, gênios, etc. O espaço histórico não pode ser dividido em partes comunitárias e confessionais – judaica, cristã, muçulmana, e eu acrescentaria o ateísmo também, pois acredito que todos têm o direito de herdar o legado cultural e histórico da região, incluindo o legado pré-monoteísta de ontem e o secularismo de hoje.
 
Eu sempre trabalhei com o problema da narração porque acho que a identidade precisa ser narrada. (Veja o papel do cinema norte-americano na construção da sua identidade nacional.) Antes de criar O conto das três joias, eu me desafiei a produzir um conto moderno usando a forma tradicional do conto oriental. O cinema mundial, e particularmente o cinema norte-americano, desde o início se baseou na narrativa bíblica (Velho Testamento) ou em As mil e uma noites. Portanto, nossa tarefa era cruzar os recursos do nosso imaginário, essa dimensão vertical da nossa cultura, com a realidade que vivemos hoje. O resultado foi uma história de amor, com uma dimensão fantástica, entre duas crianças de 12 anos, tendo como pano de fundo a realidade crua da maldita Faixa de Gaza.
 
Em conclusão, eu gostaria de definir a relação intrincada entre minha linguagem cinematográfica e a linguagem política predominante. A linguagem política predominante visa determinar uma harmonia de interesses concretos. É uma linguagem uniforme que enfatiza a diferença entre o que é semelhante e o que é diferente dentro de uma área geográfica e econômica muito precisa. Por outro lado, minha ação cultural, e não a linguagem cultural, visa liberar espaços onde todos podem se mover, redescobrir a natureza real das coisas, maravilhar-se com o mundo, pensar sobre ele e mergulhar no mundo da infância. Finalmente, a política exclui o imaginário, a menos que possa ser usado para fins ideológicos ou partidários. Mas o mundo dos meus filmes é composto de realidade e imaginação, ambas vitais para a criação dos meus filmes. É como a busca de uma criança por identidade: ele ou ela precisa desses dois níveis – realidade e sonho – para abordar a vida de uma forma equilibrada e não esquizofrênica.
 

 

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