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"Avi e Ali vão de barco"
 
O texto seguinte foi originalmente escrito pelo jornalista francês Joachim Barbier e publicado na edição de julho/agosto de 2013 da revista So Film, na ocasião do lançamento na França de Uma vez entrei num jardim. O texto foi traduzido de francês para português por Giliane Ingratta Góes e com a permissão de Joachim Barbier.
 
Avi Mograbi pratica esportes. Três vezes por semana, ele nada na piscina Gordon, na praia de Tel Aviv. A água é salgada, retirada de um lençol freático, não ultrapassa os 18 graus. “Quando você mergulha, é como se tomasse Prozac”, ele diz. Mograbi tenta se curar há quase vinte anos. Desde seu segundo longa, um documentário no qual tentou compreender suas dúvidas e sua fragilidade de consciência diante de seu tema. Chama-se: Como aprendi a superar meu medo e amar Ariel Sharon. Ao decidir seguir o líder do Likud, Mograbi filmou a armadilha em que ele próprio caiu. No final, Sharon não era o monstro que esperava: as imagens mostravam-no comendo avidamente, adormecendo lamentavelmente nas reuniões políticas, tentando desajeitadamente extirpar sua barriga gorda de um carro. Em suma, vergonhosamente humano, mesmo aos olhos de um diretor judeu antissionista e ateu movido pelo desejo de expor o cinismo do seu adversário político. O filme descreve o desencontro entre a intenção e o resultado e termina com uma cena burlesca: Mograbi, que foi cobrir uma reunião política de Benjamin Netanyahu, acaba dançando de mãos dadas com ativistas do Likud diante de um grupo de rock judeu ortodoxo que canta louvores a “Bibi” em cima de uma melodia de Bob Marley. Hoje, Mograbi tem 56 anos e já não participa de manifestações contra a política de Israel relativa aos palestinos ou à sua relação com seus vizinhos árabes. “Meu joelho dói demais. Entre o sofrimento do meu corpo e os benefícios políticos que uma manifestação traz, o meu estado físico só piora. Como todo o Oriente Médio”, ele comenta no terraço de um café em Tel Aviv, a poucos metros da sua residência. Confrontado com a impossibilidade de ver judeus e palestinos viver juntos num Estado democrático, ele agora resiste como “um bom alemão” frente ao Holocausto: “Permaneço sentado quieto”.
 
O guia e o primo
 
Com seu último filme, Uma vez entrei num jardim, Mograbi não está, ao contrário do que diz, totalmente inerte. Ele continua tratando do seu tema, mesmo que tenha mudado de tática. Tal como acontece com os anteriores, existe a intenção do filme e o seu confronto com a realidade. Este começa em uma cozinha ou sala de estar. Diante da câmera: Ali Al-Azhari, seu professor de árabe, um palestino israelense, um companheiro de luta de longa data a quem Mograbi tenta explicar seu projeto, enfim a ideia de seu filme. Ali expressa suas dúvidas: Do que se trata, afinal? Avi e Ali num barco. Um israelense judeu e um israelense árabe que percorrem em direção ao passado a história das suas famílias até uma época em que esta região do mundo não estava dividida pela geopolítica. A família de Mograbi vivia em Beirute, hoje um estado inimigo. A família de Ali morava em Saffuriya, hoje uma colônia israelense. Tudo começa com um livro, ou melhor, um guia, o Dalil Jid’on (“Guia de Gideon”), publicado em 1938, uma espécie de lista telefónica sem números de telefone, que lista os habitantes (principalmente os comerciantes) desta grande área geográfica do período entre as duas grandes guerras. Endereços em Damasco, Tel Aviv, Beirute, Alexandria, nomes árabes, judeus, cristãos, o que quisermos, num Oriente Médio sem estados árabes ou judeus, uma entidade colonizada sob o estatuto de protetorado, inglês e francês. “Quando falei com Ali sobre o filme, eu disse a ele: 'O roteiro do nosso filme é este guia”, explica Mograbi. “É uma mina de ouro. Hoje, todo esse espaço está dividido por nacionalidades e religiões. A ideia do filme está aí, nas páginas do livro. Não está definida em termos de conceito ou teoria, mas em dados simples – uma lista de pessoas, os lugares onde moravam, suas atividades numa época em que, tendo como pagar, você podia viajar de uma cidade para outra.
 
Isso foi o que aconteceu com Marcel Mograbi, um primo de seu pai, cuja trajetória remete a essa liberdade perdida que constitui o tema do filme. Avi diz sobre Marcel: “Ele cresceu em Beirute e quando Israel foi criado em 1948, permaneceu no Líbano, já que não era obrigado a deixar o país, ao contrário do que dizem os judeus. Então Marcel, que talvez não entendesse a situação política, chegou a Tel Aviv e alistou-se no exército. Depois de alguns meses, infeliz, abandonou o exército e regressou a Beirute como se nada tivesse acontecido. Ele é detido por soldados libaneses na fronteira. Sua família paga às autoridades para que ele seja libertado. Ele volta, ele se casa. Ele regressou apenas em 1969, quando se tornou impossível para os judeus viverem em segurança no Líbano. Ele morreu aqui. Alguém que, no fim das contas, não aceitava as novas regras, aquelas ditadas pela geopolítica. Ele cresceu em um espaço e algumas pessoas decidiram transformar esse espaço. Era um espaço aberto. Havia muitos judeus que viviam em Tel Aviv, mas iam trabalhar em Beirute. Era como a Europa de hoje. Então, eu estava fascinado por essa pessoa que se opunha à realidade política. Alguém que se recusa a suportar, por ingenuidade ou ignorância, uma realidade que não escolheu. A minha ideia era tentar construir um filme a partir de momentos da vida do meu primo Marcel, mesmo que não seja um filme sobre a minha família.”
 
“Eu também, adoro Sharon”
 
Uma vez entrei num jardim é um road movie, no sentido literal do termo. Câmera fixada no painel, Avi ao volante, Ali no banco de passageiro. Uma tomada praticamente única que registra conversas entre os dois, sobretudo, sobre nada, sobre o assunto, fora do assunto, sobre a estrada chuvosa que os leva a Saffuriya, sobre a terra dos antepassados de Ali. “Eu sabia que ele era um ator frustrado, eu conhecia o personagem e sabia que o filme iria revelar isso”, diz Mograbi. “Porque ele conta um monte de histórias. Que começam sempre pelos mesmos dois assuntos: o trauma de ser refugiado no seu próprio país, e o mundo povoado de fantasmas em que vivem os árabes. O que também é muito judeu.”
 
Como sempre acontece com Mograbi, seu documentário não tem filtro. Asteroides aterrissam sem avisar diante da lente da câmera, como Yasmin, filha de Ali, de cerca de dez anos, que aparece no banco traseiro do carro como se tivessem ido buscá-la ao sair da escola no final de um dia de filmagem. “Ela entrou no filme de forma muito espontânea”, diz Mograbi. “Porque todos os meus filmes começam em algum lugar e terminam em outro. Quando você faz um documentário, você tem que aceitar que a realidade influencia como tal. Isso significa: aceitar ser surpreendido, ter sua própria opinião, não impor suas ideias à realidade mesmo que esteja impondo suas escolhas. Não pretendo que seja um reflexo da realidade, é um reflexo da minha maneira de mostrar a realidade. A questão central é a da integridade.”
 
Quando a montagem de Uma vez entrei num jardim foi finalizada, Mograbi mostrou o filme a Ali e sua filha. “Eu disse a Ali desde o início: ‘Você pode apertar o botão liga-desliga quando quiser.’ Principalmente porque ele não havia gostado nem um pouco do meu filme sobre Sharon. Ele não viu a ironia. Ele se perguntava como eu podia ter sacrificado meus ideais políticos ao fazer um filme sobre Sharon.”
 
Uma vez entrei num jardim não encontrou distribuição comercial em Israel. “Apenas aquele sobre Sharon foi transmitido pelo canal de televisão”, explica Mograbi. “Quando eu estava assinando o contrato, o técnico na minha frente disse: 'Eu também amo Sharon.’ Fiquei de boca fechada até o processo ser concluído.” Na falta de algo melhor, o último filme de Mograbi é apresentado nas cinematecas israelenses e nas exibições que consegue obter. “É claro que estou desapontado por não atingir um público mais amplo. Mas como sou uma pessoa geralmente decepcionada por natureza, acabei me acostumando. Ontem fui a Avatalion, uma aldeia na Galileia. Havia cerca de vinte pessoas. Achei que seria um pouco diferente com este filme, que está menos na oposição frontal, é mais leve. Mas bom, aparentemente seu tom não é suficiente para abordar questões assim constrangedoras e desestabilizadoras para a sociedade israelense como o retorno da igualdade em um país democrático.” Ele para, e depois continua: “Escute, eu já fiz o filme, se além disso eu tiver que explicar por que não funciona...É humilhante demais”.
 
O gueto e a punkette
 
Naquela noite, outra sessão do filme é organizada numa escola bilíngue – hebraico-árabe – em Jerusalém. “Deve ser interessante ver as reações”, ele almeja do volante de seu novo carro, com o qual está “muito contente”, ao deixar Tel Aviv. Quando a autoestrada que liga as duas principais cidades israelenses atravessa os territórios palestinos anexados, ele aponta para um antigo forte jordaniano transformado num museu do exército israelense. “Todos os dias, este governo inventa uma lei para tornar a vida impossível para todos os não judeus neste país. Estamos na África do Sul pré-Mandela. Neste momento, são os refugiados e emigrantes africanos. Li num jornal que eram um câncer na carne de Israel! E que iríamos tentar encontrar um outro país para deportá-los. Vamos permanecer judeus! Permaneçamos na posição de deportado e não na de deportador!
 
Alguns quilómetros adiante, enquanto as luzes anunciam a presença próxima de Jerusalém, Mograbi deixa escapar, ainda com a mesma ironia: “Aí estamos, saímos dos territórios anexados. É o fim de um doce sentimento de dominação.” A escola se chama Escola Bilíngue Hand in Hand Max Payne, uma escola moderna de 1.300 alunos localizada a umas centenas de metros do bairro árabe de Beit Safafa, separado do resto de Jerusalém pela Linha Verde de 1949. Na escola, cerca de trinta pais assistem ao filme projetado ao ar livre, no frescor noturno da capital religiosa de Israel. Pessoas à vontade, deitadas em tapetes e vestidas como ativistas alter-mundialistas. Aplausos quando os créditos finais do filme rolam. Avi Mograbi está lá para responder perguntas, entre elas a de Sournia, uma das únicas árabes na plateia. Ela acha que Yasmin “é israelense demais”. Mograbi: “Para mim, ela é o símbolo do que vocês estão tentando fazer aqui nesta escola: uma criança, pai palestino, mãe judia. Quando foi mostrada a ela a versão final do filme, ela protestou contra uma cena em que seu pai usa a palavra ‘gueto’. Ela a associava ao gueto de Varsóvia e considerou o termo ofensivo para os judeus. Tivemos que verificar juntos a definição para explicar a ela que não estava necessariamente ligada ao Holocausto.” Um pai tem uma dúvida: “Você está sendo cínico quando diz no filme que precisamos de conflito?” Mograbi: “Não sei, só sei que Ali é um refugiado no seu próprio país.
 
A conversa termina depois de uma hora, e Avi deixa Jerusalém, lugar onde esteve, em 1992 e durante dez dias, um dos assistentes de Claude Lelouch em A bela história (La belle histoire, 1992). Inclusive, o diretor francês havia filmado um plano-sequência de sete minutos nos corredores e no elevador do Hotel King David, um dos antigos palácios de Jerusalém. “Uma proeza técnica, ele a filmou sozinho, com a câmera na mão. Bom, o plano não foi conservado na edição”, explica, lembrando que, no set, a atriz Béatrice Dalle agiu como uma punkette: “Ela jogou pela janela todos os móveis do seu quarto”.
 
No dia seguinte, Avi encontra Ali na hora do almoço em um restaurante em Jafa, na beira da praia. Os judeus tomam banho, se bronzeiam ao sol, e os árabes estão deitados no gramado, entre a areia e o estacionamento, aquecendo a churrasqueira. Ali fala: “No começo fiquei muito desconfiado quando Avi me contou sobre seu filme. Se fosse um judeu francês, um judeu americano ou alguém sei lá de onde, teria sido diferente, mas ali eu não tinha certeza de nada."
 
Por fim, Ali validou o filme, assim como sua filha. Até recebeu crédito como coautor. Ele já quer fazer outro. “Avi, quando faremos um filme de novo?” Mograbi quer “não fazer mais filmes”. Ali: “Podemos fazer um filme que não fale sobre o conflito?” Mograbi: “Não quero fazer mais filmes, me deixa.” Ali: “Isso é possível?” Avi: “Estou cansado. Se você quiser, faremos um filme sobre a melhor forma de usar sua Air Fryer.
 

 

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