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Programa 1
Nada além de um homem

Nothing But a Man

Michael Roemer | EUA | 1964, 92’, 35 mm para DCP restaurado (The Film Desk)

 
Nada além de um homem conta a história de Duff Anderson (interpretado pelo ator e ativista político Ivan Dixon), um homem negro de 30 e poucos anos que trabalha na empresa ferroviária no estado segregado do Alabama, no Sul dos Estados Unidos. Uma noite, numa festa religiosa, ele conhece Josie Dawson (a cantora de jazz e também ativista Abbey Lincoln), uma professora do ensino básico e filha do proeminente pastor negro local. O estilo de Duff – ácido, casual, muitas vezes taciturno e resistente à integração numa sociedade liderada por brancos – atrai Josie para fora do seu ambiente familiar conservador, imponente e restritivo. Os dois se apaixonam e decidem se casar, a contragosto de todos ao seu redor. Duff então enfrenta uma série de desafios ao tentar sustentar sua nova família e sobreviver enquanto pai e marido.
 
O filme norte-americano foi coproduzido de forma independente e corroteirizado pelo cinegrafista Robert M. Young e o diretor Michael Roemer, ex-colegas de faculdade na Universidade de Harvard, que já haviam colaborado em um documentário. O nova-iorquino Young e o berlinense Roemer conceberam Nada além de um homem no auge do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos e ao longo de uma viagem de pesquisa pelo Sul do país. A obra resultante (que foi filmada em uma comunidade negra numa parte sulista de Nova Jersey por motivos de segurança) foi marcada por uma forte verossimilhança emocional. A fotografia compassiva de Young registrou close-ups de seus protagonistas, com uma aproximação emocional considerada radical para o cinema norte-americano da época. Roemer baseou-se nas suas próprias memórias de criança judia na Alemanha nazista para delinear tanto a ira animalesca dos racistas brancos que cerceiam Duff e Josie quanto as dinâmicas de uma família em risco de se desintegrar sob o peso da opressão social.
 
Nada além de um homem foi inovador em seu uso da trilha sonora, que contou com participações de artistas da Motown, como The Miracles, Mary Wells e o então adolescente Stevie Wonder. O filme foi lançado um ano antes do assassinato de Malcolm X, que valorizou seu retrato da busca por uma autossuficiência negra norte-americana. Ganhou dois prêmios no Festival Internacional de Cinema de Veneza e elogios quando passou no Festival de Cinema de Nova York, porém foi lançado nos Estados Unidos de forma tímida e acabou passando majoritariamente em centros comunitários e universidades. Nada além foi relançado com êxito em 1993 e, nas décadas seguintes, se tornou uma referência para diversos artistas, entre eles a cineasta francesa de descendência senegalesa Alice Diop (Saint Omer), que comentou em uma entrevista recente que o filme “magnifico” de Roemer e Young “lida com a condição dos afro-americanos de uma maneira inédita pra mim, por ser tão preciso e baseado na observação da comunidade, de forma totalmente ficcional”.[1]
 
O filme foi restaurado em película pela Biblioteca de Congresso em 2013 e, em 2024, remasterizado em 4K a partir dos seus negativos originais de câmera (hoje localizados na George Eastman House, em Nova York). A remasterização foi feita em parceria entre o selo Criterion Collection e a distribuidora The Film Desk, responsável pela circulação em novas cópias da filmografia enxuta de Roemer. As exibições de Nada além de um homem no IMS Paulista marcam a estreia da versão digital do filme no Brasil.
 

 

 

Programa 2
Gente saudável para brincar

Zdravi ljudi za razonadu

Karpo Acimovic Godina | Iugoslávia | 1971, 16’, 35 mm para DCP restaurado (Cinemateca da Eslovênia)
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A vida de um minerador exemplar
Slike iz života udarnika

Bahrudin “Bato” Cengic | Iugoslávia | 1972, 79’, 35 mm para DCP restaurado (Centro de Cinema de Sarajevo)
 

Adem (interpretado por Adem Cejvan) é um minerador que vive em uma parte rural da Bósnia logo após a conclusão da Segunda Guerra Mundial. No filme pitoresco A vida de um minerador exemplar, acompanhamos as aventuras do udarnik (trabalhador e herói nacional) e seus colegas enquanto competem diretamente com outros mineradores de regiões iugoslavas para ganhar medalhas oficiais. No decorrer dos 25 anos da história, Adem perde sua segunda mulher (Helena Buljan) para a família tradicional muçulmana dela, ganha uma condecorada mineradora como sua terceira esposa (Štefka Drolc) e acaba sozinho e em busca de ajuda para cuidar das suas seis filhas. Ele também vai de um seguidor do exemplo do minerador soviético Alexei Stakhanov para um homem fisicamente destruído, que faz de tudo para se manter ao lado dos seus companheiros, sem perder as suas crenças em nenhum momento.
 
A vida de um minerador exemplar foi inspirado na história do udarnik mais celebrado da ex-Iugoslávia, o bósnio Alija Sirotanovic, que aparece no filme como uma versão dele mesmo e no meio de um elenco de atores profissionais e não profissionais (vários deles mineradores reais cujos feitos foram esquecidos na memória nacional popular). O terceiro longa-metragem do cineasta bósnio Bahrudin “Bato” Cengic foi feito em parceria com o cinegrafista esloveno-macedônio Karpo Godina, que inventou maneiras de iluminar as cenas nas minas subterrâneas de carvão a 600 metros da superfície. O filme é estruturado como uma série de cenas realizadas no estilo tableau vivant (pintura viva), com um efeito tragicômico que imita um estilo clássico de propaganda socialista e, ao mesmo tempo, revela a vulnerabilidade humana por trás dela.
 
A vida... estreou no Festival de Cinema de Pula, na Croácia, onde muitos espectadores desafiaram a autenticidade da representação da condição dos seus personagens. Porém, apesar da sua recepção inicialmente hostil, o filme foi reconhecido ao longo dos anos como uma contribuição crucial ao movimento cinematográfico da Black Wave (Onda Negra) iugoslava, cujos filmes buscaram representar a realidade iugoslava de forma crítica e criativa. Ele foi restaurado digitalmente em 2023, sob a supervisão do ainda ativo Godina, em um projeto realizado em parceria entre a Cinemateca da Eslovênia, a Cinemateca da Croácia, o Centro de Cinema de Sarajevo e o Museu de Cinema da Áustria, e que contou com o apoio de um prêmio dado pela Associação das Cinematecas Europeias (ACE). A restauração em 4K estreou no Festival de Cinema de Veneza, meio século após as primeiras exibições do filme no mesmo evento.
 
O programa no IMS Paulista também conta com um curta-metragem dirigido por Godina que ajudou a inspirar a estética do longa de Cengic. Gente saudável para brincar é um documentário musical e colorido, filmado na província de Voivodina, no norte da Sérvia, uma região conhecida pela grande quantidade de etnias e línguas entre sua população. A câmera de Godina faz um panorama dos diversos habitantes da província, cujos depoimentos sobre suas vidas são muitas vezes filmados em frente de suas casas. Gente saudável para brincar ganhou dois prêmios no Festival Internacional de Curtas-Metragens de Oberhausen em 1971 e, em 2016, foi restaurado digitalmente pela Cinemateca da Eslovênia em parceria com o Museu de Cinema da Áustria (entre outras entidades), em um projeto dedicado à restauração digital da produção de Godina como curta-metragista experimental. Agradecimentos especiais pelas primeiras exibições brasileiras da versão restaurada do filme vão para Dara Hlavka Godina e Karpo Acimovic Godina.
 
[1] A entrevista “A Cinema of Reparations: Alice Diop in Conversation with Kevin B. Lee and Libertad Gills” foi conduzida em inglês na mais recente edição do Festival de Cinema de Locarno.

 

 
MUTUAL FILMS