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“Uma conversa com Karpo Godina”
A entrevista a seguir com o cineasta e cinegrafista Karpo Godina foi realizada por e-mail em inglês entre fevereiro e março de 2025. Agradecimentos vão a ele pela generosidade com seu tempo e a sua esposa e colaboradora, Darja Hlavka Godina, que intermediou a conversa. Mutual Films: Entendemos que, no início de sua carreira, você se inspirou em um ensaio escrito pelo teórico e cineasta francês Alexandre Astruc, que foi originalmente publicado em 1948. Isso é verdade e, neste caso, o que o inspirou no ensaio? Karpo Godina: Antes mesmo de ler o ensaio de Astruc “Nascimento de uma nova vanguarda: A caméra-stylo” , eu trabalhei em vários filmes que, sem que eu percebesse, combinavam com os conceitos que o autor levanta no texto. O conceito de caméra-stylo [“a câmera-caneta”] enfatiza o controle criativo do diretor de um filme e a ideia de que um filme não é apenas um veículo para uma narrativa, mas também um meio para expressão artística. O cineasta deve usar a câmera tão livremente quanto um escritor usa sua caneta. Um filme deve ser uma expressão individual, comparável a escrever um romance ou um ensaio literário. Como um exemplo: Em um dos meus primeiros filmes, tomei um poema como base e criei minha própria interpretação cinematográfica das paisagens emocionais do texto. O título original do meu primeiro filme é Divjad (“Jogo”, 1965) [que, como os outros filmes iniciais de Godina, foi feito em Super 8, antes dele migrar para 35 mm no final da década de 1960]. O texto no qual o filme se baseou foi escrito pelo poeta e letrista croata Zvonimir Golob, e eu o encontrei na seção de Literatura de um jornal croata. Não reli o texto por décadas depois. No entanto, recentemente minha família encontrou um livro de poemas de Golob que incluía o poema, em uma loja de antiguidades em Zagreb. MF: Seus curtas-metragens frequentemente usam música como um elemento importante, incluindo Gente saudável para brincar, que tem uma música original na trilha sonora. O que o inspirou a usar música com tanta força em seus curtas? KG: Eu trabalhei como diretor de fotografia em 1969 na região de Voivodina, na Sérvia, para filmar o longa-metragem Early Works, do sérvio Želimir Žilnik, que depois ganhou o Urso de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Berlim. [N.T. Entre os cineastas associados ao movimento Onda Negra Iugoslava, Žilnik foi o mais prolífico e longevo, e inclusive, estreou um novo filme, Eighty Plus, no Festival de Berlim este ano]. Eu então recebi a oferta de dirigir e filmar na mesma região um curta-metragem, que se baseava em meu próprio roteiro. Fiz os planos do filme no estilo de tableaux vivants – na cinematografia, o termo “tableaux vivants” é usado para cenas que lembram pinturas estáticas, onde elementos como composição, iluminação, cores e os posicionamentos dos personagens são cruciais para a expressão de emoções, temas ou símbolos. E eu precisava de música ou canções para unir as cenas durante o processo da montagem. Na cidade sérvia de Novi Sad, conheci dois músicos, os irmãos Mladen e Predrag Vraneševic, que, com sua banda, combinavam rock, jazz, música eletrônica e experimental com letras satíricas e absurdas. Eles eram uma das bandas mais incomuns da cena musical iugoslava. Essa banda [cuja iteração mais famosa tinha o nome de Laboratorija Zvuka, ou “laboratório de som”] eventualmente criou a música para a maioria dos meus curtas e longas-metragens. MF: Como foi que você concebeu o filme Gente saudável para brincar? E o que significa o título do filme para você? KG: Minha grande surpresa quando cheguei à Voivodina – que se localiza na parte norte e baixa da Sérvia – foi descobrir que as casas nas vilas eram pintadas com várias cores alegres. Uma surpresa ainda maior veio quando comecei a bater nas portas de diferentes casas. Quando bati na porta de uma casa verde, um húngaro feliz apareceu; quando bati na porta de uma casa azul, um eslovaco feliz apareceu; na porta de uma casa branca, um russo feliz apareceu; em uma casa amarelo-dourada, um croata feliz; em uma porta colorida, um romeno feliz... E eu fiz um filme com todas essas pessoas. Assim, um título lógico para o filme nasceu: Gente saudável para brincar. [N. T. O nome em português é uma tradução literal do título original do filme de Godina em esloveno-croata. O nome oficial do filme em inglês, Litany of Happy People, se traduzuria como “A ladainha das pessoas felizes”]. Após a conclusão do filme, continuei utilizando o método de tableaux vivants nos curtas-metragens sob minha direção que se seguiram. Eu explorei várias abordagens estilísticas e experimentei diferentes possibilidades para essa expressão cinematográfica, e os resultados foram, para mim, bem-sucedidos e encorajadores. MF: Logo depois, você começou a colaborar com o cineasta bósnio Bahrudin “Bato” Cengic. Como foi que surgiu a parceria entre vocês? KG: Minha primeira colaboração como diretor de fotografia com Cengic foi em 1971, no filme O papel da minha família na revolução mundial. Antes disso, ele tinha visto meu trabalho em Early Works. Ele gostou da expressividade da minha câmera inquieta e dinâmica. Nós construímos o filme dele em um estilo semelhante, mas diferente de Early Works, pois O papel da minha família na revolução mundial era colorido. Naquela época, nós na Iugoslávia tínhamos comprado lentes de zoom de alta qualidade da Europa Ocidental pela primeira vez, o que fascinou tanto Cengic que eu fiz praticamente o filme inteiro com elas. O filme seguinte com ele, A vida de um minerador exemplar, foi filmado em um estilo calmo e estático. Quando Cengic me chamou para fotografar A vida de um minerador exemplar, ele conhecia bem os meus curtas-metragens e expressou o desejo de que eu também filmasse o longa no estilo de tableaux vivants. Eu disse a ele que filmar um curta-metragem com uma câmera estática é uma coisa, mas um longa-metragem é outra história. Eu o avisei que, pessoalmente, não via problema em fazer isso, mas ele, como diretor, enfrentaria inúmeros problemas. Em particular, ele teria dificuldades com os enquadramentos dos planos e contra-planos no processo de desenvolvimento de uma narrativa. O estilo tableaux vivant em um longa exigiria uma abordagem não convencional e inexplorada para contar histórias, enquadrar e dirigir os atores. Ele insistiu que daria certo, e então começamos corajosamente a filmar A vida de um minerador exemplar. MF: Como foi o processo de trabalho entre Cengic e os atores do filme? Ele explicou a eles como seria o filme final? KG: No começo, Cengic enfrentou desafios consideráveis, particularmente ao explicar e convencer os atores de que o que seria exigido deles não seria um estilo de atuação convencional, mas uma abordagem altamente estilizada, com movimentos mínimos dentro de um quadro definido. Ele teve que esclarecer que as sequências do filme usariam tomadas estáticas e quadros cuidadosamente compostos, lembrando pinturas. Ele também teve que enfatizar a eles que este não seria um filme com cenas dinâmicas com movimentos rápidos, mas que o foco estaria no poder das imagens individuais. MF: No final, como você se sentiu sobre seu trabalho no filme? KG: Pessoalmente, as filmagens de A vida de um minerador exemplar foram prazerosas. Com os meus filmes anteriores eu poli o estilo tableaux vivant e eu fiquei satisfeito com o resultado da prática. Neste filme ele excedeu minhas expectativas, e, como vejo hoje, mais de 50 anos depois, esse estilo continua a cativar o público. MF: O que fez Cengic ser um cineasta único, tanto com relação a sua personalidade como a seu trabalho? O que o diferencia dos outros cineastas com quem você trabalhou nos anos 60 e 70? KG: Cengic estudou na Inglaterra. Ele trouxe consigo um conhecimento e uma forma de expressão que era muito diferente e desconhecida para nós na Iugoslávia. Em resumo: Ele era a simbiose entre o Ocidente e os Bálcãs. Isso o fez especial, e eu acredito que essa qualidade reflete nos seus filmes. MF: Atualmente, você está trabalhando em novos filmes. Nós também sabemos que, nos anos recentes, você esteve muito envolvido na supervisão das novas restaurações digitais dos filmes (originalmente realizados em película) que dirigiu e nos quais trabalhou como cinegrafista. Por exemplo, sabemos que você supervisionou a restauração de A vida de um minerador exemplar e as restaurações dos seus curtas-metragens como diretor em 8 mm e em 35 mm, entre esses, Gente saudável para brincar. Como tem sido essa experiência para você supervisionar as restaurações? Quais aspetos você considera mais interessantes, desafiadores e positivos de trabalhar nesses projetos de restauração? KG: Uma grande vantagem que eu vejo nos projetos que ajudei a restaurar foi o fato de eu ser o diretor de fotografia de todos esses filmes e conhecer o espectro de cor original. Restaurar filmes em que o cinegrafista não está mais vivo envolve inúmeros dilemas. E a equipe de restauração, nesses casos, nunca pode ter certeza total se capturou a estrutura original da fotografia do filme, porque a maioria das cópias antigas de filmes coloridos desbotou ou se deteriorou quimicamente. Eu posso confirmar que as restaurações dos “meus” filmes permanecem, em geral, fiéis às cópias originais que foram exibidas nos cinemas na época de seu lançamento. No entanto, o meio digital é diferente do analógico, o que significa que uma transferência perfeitamente precisa do espectro de cor original não é possível. Além disso, os projetores digitais nos cinemas são totalmente diferentes dos analógicos, e isso também leva a mais desvios nas exibições. |
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