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Johnny Guitar, de Nicholas Ray”
 
O que seguem são trechos do capítulo sobre Johnny Guitar de uma celebrada biografia crítica de Nicholas Ray que foi escrita pelo historiador e curador francês Bernard Eisenschitz. O livro foi originalmente publicado em 1990 em francês sob o título Roman américain: Les viés de Nicholas Ray, e depois, em inglês em 1993 com o título Nicholas Ray: An American Journey (com tradução do crítico inglês de cinema Tom Milne). Agradecimentos vão a Eisenschitz - também autor de extensos trabalhos sobre Fritz Lang, Jean Vigo, Robert Kramer, entre outros cineastas - pela sua permissão de traduzir para português uma parte do seu livro sobre Ray, que segue inédito no Brasil.
 
Johnny Guitar começou com uma encomenda: quatro clientes do agente de talentos Lew Wasserman e uma história vendida para um estúdio. O primeiro era Roy Chanslor, um ex-jornalista que se tornou um prolífico roteirista e escritor (ele vendeu três roteiros para o cinema em 1953). Quando seu romance Johnny Guitar foi publicado em maio de 1953, ele imediatamente o transformou em um roteiro sob medida para Joan Crawford, o segundo cliente: o romance é dedicado à estrela. Depois de sua "Segunda carreira" no Warner Brothers, lançada pelo filme de Michael Curtiz Alma em suplício (Mildred Pierce, 1945) - um papel vencedor de Oscar que ela conseguiu graças a Jerry Wald e Wasserman - Crawford foi de estúdio em estúdio, filme por filme: sua carreira estava, na verdade, sendo dirigida pela agência de Wasserman, MCA [Music Corporation of America]. Wasserman apostou muito em Nicholas Ray, que havia saído do estúdio RKO com o sucesso de Paixão de bravo. Mas dizia-se dele, assim como do diretor Cliff Harriston no romance de Gavin Lambert The Slide Area (1959), "Ele é bom, mas tem que ser vigiado". No capítulo "The Closed Set" ("O set fechado"), a estrela - claramente baseada em Crawford - decide que "Tudo que um homem precisa é de uma boa imagem, e eu darei isso a ele". O diretor aceita, pois precisa do dinheiro.
 
As condições sob as quais Ray abordou seu novo filme eram muito mais favoráveis e lisonjeiras. O contrato estava com o Republic Pictures, um dos menores entre os grandes estúdios, mas era um contrato para um único filme, e com seu papel duplo de diretor e produtor, era um primeiro passo para a independência que Ray buscava. Além do mais, era a maior produção do estúdio naquele ano, e o gênero de faroeste estava de longe "acabado". Muito distante do impulso dado para o gênero pela janela Scope e 3-D, estes foram os anos do "super-faroeste" e "faroeste adulto", para usar os termos de André Bazin. Os filmes O rio da aventura (The Big Sky), de Howard Hawks, e Matar ou morrer (High Noon), de Fred Zinnemann, ambos foram lançados em 1952. No ano de 1953, foram lançados importantes faroestes como O preço de um homem (The Naked Spur), de Anthony Mann, Os brutos também amam (Shane), de George Stevens, e A bela e o renegado (Ride, Vaquero!), de John Farrow, mais dois filmes que foram ignorados pelos críticos americanos, O rancho das paixões (Rancho Notorious), de Fritz Lang, e Homens indomáveis (Silver Lode), de Allan Dwan. Os filmes de 1954 Caminhos ásperos (Honda), de John Farrow e com John Wayne no elenco, O último bravo (Apache), de Robert Aldrich e com Burt Lancaster no elenco, e O rio das almas perdidas (River of No Return), de Otto Preminger e com Marilyn Monroe e Robert Mitchum, foram todos filmados ao mesmo tempo em que Johnny Guitar foi realizado. A ideia inicial de usar widescreen teve que ser abandonada, porém, o orçamento de Johnny Guitar foi generoso, e filmar em cores especialmente era um luxo para o estúdio operado há muito tempo por Herbert J. Yates.
 
O roteiro de Chanslor estabeleceu os cenários e situações básicas para o filme - ou, mais estritamente, os clichês de faroeste. Este primeiro roteiro foi fielmente adaptado do romance e era uma coleção de platitudes improváveis (Chanslor dirigiu uma linha de produção de faroestes baratos para o Universal) - por exemplo, a cidade se chama Powderville ("Vila de pó") e o saloon se chama Bills ("notas", para mostrar que Vienna é gananciosa). Nenhuma ambiguidade, nenhum relacionamento passado entre os personagens. Johnny é um sedutor e um pequeno jogador, Vienna está interessada apenas em dinheiro (mas sua feminilidade será revelada pelo amor), Emma busca vingança por seu marido (não por seu irmão), a gangue do Dancing Kid de fato roubou a diligência. Os incidentes - roubo, suspeitas, incêndio, linchamento, perseguição, esconderijo do bandido, perseguição - seguem um ao outro sem construção, sem diferenciação nos diálogos. Apenas duas falas sobreviveram deste roteiro: "Estava contra o sol" e "Porque não sou o gatilho mais rápido do Oeste". Mas seu contexto e ressonância são muito diferentes no filme. A primeira é dada a uma "testemunha" não "amigável" o suficiente para agradar os interrogadores. Enquanto isso, a segunda alivia a tensão durante outro interrogatório e coloca Johnny entre os dois campos (sendo uma testemunha nem "hostil", nem "amigável", em uma analogia à qual retornaremos em breve), ao mesmo tempo em que estabelece sua ambivalência pessoal (logo descobrimos que ele está mentindo).
 
Entre junho de 1953 e o início das filmagens em setembro, Ray reservou um tempo para elaborar um roteiro totalmente novo com um quarto cliente da MCA. Durante uma festa na casa de Humphrey Bogart, ele conheceu um escritor dois anos mais novo chamado Philip Yordan. "Alguém começou a discutir comigo, um cara grande", Yordan relembrou. "De repente, um homem alto se moveu atrás de mim, pegou esse cara e o empurrou contra a parede, era Nick. Ele simplesmente estava lá e interveio. Foi assim que o conheci." Originalmente de Chicago, advogado por formação, Yordan desembarcou em Hollywood graças ao sucesso de sua peça Anna Lucasta (1944), que transpôs o enredo da peça Anna Christie (1921), de Eugene O'Neill, para um ambiente com personagens negros. Ele já tinha escrito uma série de roteiros robustos, especialmente para filmes de ação de baixo orçamento, e havia começado uma colaboração frutífera com Anthony Mann. Ele também tinha a reputação de servir de fachada para escritores que estavam na Lista Negra.
 
Como Yordan, um liberal convicto, explicou: "Todos nós ajudamos escritores na Lista Negra. A maioria desses caras eram nossos amigos, e enquanto tivessem talento, não nos importávamos com suas crenças políticas. Mas os estúdios faziam a triagem. Às vezes, ao escolher alguém, tínhamos problemas com o estúdio, mas se não fosse importante, nos safávamos." O tom de Johnny Guitar às vezes chega bem perto do filme anterior de Yordan, A selva nua (The Naked Jungle, 1954, dirigido por Byron Haskin), mas o roteiro deste filme, no entanto, foi escrito por Ben Maddow, seu "fantasma" em vários projetos. Com base nisso, o roteiro de Johnny Guitar é às vezes atribuído a Maddow. O próprio Maddow, que não fazia segredo ao reivindicar a autoria de filmes creditados a Yordan como A selva nua e Os que sabem morrer (Men in War, 1957, dirigido por Anthony Mann), negou que tenha tido qualquer participação no filme de Nicholas Ray. Ninguém nunca explicou como Yordan poderia ter tido uma carreira tão longa, com um corpo de trabalho tão coerente, se ele próprio não havia escrito nada. Seus colaboradores anônimos, na verdade, pensavam nele como um administrador; assim como Lew Wasserman vendia pacotes de filmes, a operação mais modesta de Yordan vendia pacotes de roteiros, com uma garantia de qualidade e acabamento que era, sem dúvida, sua responsabilidade fornecer.
 
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Yordan disse sobre Ray que "Ele colaborou comigo mais no nível arquitetónico do que no dramático, criando cenários como o salão, trabalhando nas relações geométricas entre os lugares". E, enquanto isso, Ray escolheu um elenco poderoso para apoiar sua estrela Crawford. O papel principal masculino de Johnny Guitar foi para Sterling Hayden. Um marinheiro que virou ator, agente da OSS na Iugoslávia durante a Segunda Guerra Mundial, traumatizado pelo depoimento que foi induzido a fazer perante o Comitê de Atividades Antiamericanas, perturbado por um casamento à beira do colapso, Hayden não dava mais a mínima para sua carreira e pulava de um filme medíocre para outro. Embora declarasse sua admiração profissional por Ray como um diretor, Hayden não tinha motivos para se interessar por um papel no qual ele teria tanto a oferecer, precisamente por seu ar de ter perdido todas as suas ilusões e o desapego de sonhador com os quais ele entrega suas falas mais líricas. Hayden contou depois que não sabia andar a cavalo, tocar violão ou atirar com uma arma. Essas ações se tornam arquetípicas no filme, uma impressão reforçada pela escolha de atores coadjuvantes, alguns deles do elenco do Republic, outros de faroestes dirigidos por John Ford, André De Toth e Anthony Mann. O papel de McIvers, de Ward Bond [um invicto conversador e presença constante no cinema de Ford], era semelhante ao papel que o ator havia interpretado em um filme anterior de Ray, Cinzas que queimam.
 
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Johnny Guitar está muito longe dos faroestes de John Ford. Sua matéria-prima não é o Oeste, mas uma visão cinematográfica do Oeste. "Eu tinha decidido violar todas as regras do faroeste": a declaração foi usada como justificativa somente após o fato. Yordan, fazendo seu trabalho habitual, e Ray, em puro desespero, exploraram a grosseria do material fornecido por Chanslor. Eles incorporaram uma série de estereótipos decorativos, dramáticos ou verbais. Trocas como "Você não tem coragem"/"Tente-me", ou "Sorte não tem a ver com isso" proliferam por toda parte. O excesso gera ironia: os diálogos cinematográficos raramente revelam tanto sobre estereótipos e a ambiguidade que pode estar por trás deles como na confusão de falas aqui, como "Não aperto a mão de canhoto". Sem esquecer a palavra de ordem pessoal de Ray [falada por Johnny], "Sou forasteiro aqui". A estilização seguiu-se naturalmente dessas escolhas. Como frequentemente é o caso com Ray, a ação é precisamente localizada no lugar e tempo: três dias, da tarde de sexta-feira até a manhã de domingo. Graças a uma preocupação de Ray e Yordan com a passagem do tempo na vida diária e com as vidas de personagens sobrecarregados por seus passados.
 
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Em uma análise persuasiva, o crítico Michael Wilmington vê o teatro como a metáfora dominante em Johnny Guitar, com essa qualidade surreal se tornando sua única realidade por ser fiel às emoções. A troca de papéis de gênero sternbergiana (o golpe de gênio de Joan Crawford, de acordo com Yordan) contrasta com atores - uma atriz - mostrando sua idade, suas rugas, dissociando-se do artifício dramático e dos efeitos visuais formais. É essa interação entre artifício e nudez - em vez de qualquer mensagem (muito debatida) - que está no cerne do filme.
 
Quanto à descrição das técnicas de repressão e perseguição, Johnny Guitar claramente pertence ao lado dos filmes liberais de sua época, aqueles que usam enredos de gênero para transmitir mensagens pluralistas (como o faroeste Homens indomáveis ou o clássico de ficção cientifica O dia em que a Terra parou / The Day the Earth Stood Still, dirigido por Robert Wise em 1951). Yordan viu isso como o cerne da questão. Quando entrevistado por Bertrand Tavernier em 1962 para Cahiers du cinéma sobre Johnny Guitar, ele falou de problemas com a censura, de "um tema essencialmente moderno, uma situação criada pela ascensão de uma moralidade de classe média que encorajou essa política de terror. Você está vivendo pacificamente em algum lugar tranquilo, quando de repente alguém aparece e lhe diz: 'Você não tem o direito de viver aqui por tal e tal motivo, então saia, ou então...' Por que, eu pergunto a você, por que não tenho o direito de viver aonde eu quero?"
 
A menos que Yordan tenha usado um fantasma para esta entrevista também, ele resume muito bem as intenções de Johnny Guitar - intenções que se tornaram o assunto de polêmicas surpreendentes durante a década de 1970. Alguns viam a personagem de Vienna acima de tudo como uma continuação da personagem de Crawford em Alma em suplício, com uma vitória final conquistada sobre o matriarcado (algo sinalizado no gesto da Vienna de preparar o café da manhã para Johnny perto do final do filme). Para outros, Vienna é moldada na personalidade da atriz, que "recusou ajuda" (uma alegação não comprovada em lugar nenhum) ao Comitê de Atividades Antiamericanas. De acordo com a nota curatorial para uma exibição de Johnny Guitar na Universidade do Texas, Vienna é "uma materialista" e Johnny "um marxista pronto para derrubar seus opressores indo além dos limites do sistema!" O próprio Ray não era totalmente inocente dessas fantasias, por exemplo, ele disse à revista britânica Take One que "em Barcelona, o filme dividiu politicamente a cidade em dois" [algo que foi depois contrariado pelos organizadores de uma retrospectiva na Espanha dos filmes de Ray].
 
No entanto, o filme convida as leituras políticas: dois personagens falam em nome da multidão, uma (Emma) de modo histérico, o outro (McIvers) de modo mais realista. Eles começam rejeitando os forasteiros, e quando alguns deles (o Dancing Kid e seus companheiros, inocentes no filme do delito que o roteiro de Chanslor os creditou) são levados de fato a se tornarem foras da lei, eles são pressionados a denunciar os outros. O diálogo entre Johnny e Vienna sobre o bando armado reflete um clima particular, junto a convenções de gênero:
 
JOHNNY: O bando é capaz de visitar você à noite. O mesmo que a visitou ontem, só que diferente. Um bando armado não são pessoas. Eu conheço. É feito um animal. Anda e pensa feito um.
VIENNA: São homens nervosos com uma corda disponível sedentos por alguém para enforcar, e depois de cavalgar por horas, enforcam qualquer um. Eu sei do que estou falando.
 
Nenhum espectador, no entanto, poderia interpretar mal a cena do interrogatório do jovem integrante do grupo de Dancing Kid, Turkey (interpretado por Ben Cooper), por Emma e McIvers, dado o comentário irônico anterior de Vienna sobre a incapacidade de Emma de produzir "mais testemunhas":
 
EMMA: Diga que Vienna estava com vocês e terá uma chance.
MCIVERS: Você até pode fugir daqui.
EMMA: Você é só um menino, não queremos machucar você!
MCIVERS: Só queremos a verdade, filho...Você só precisa concordar. A Vienna estava com vocês?
TURKEY balança a cabeça, sinalizando que não.
EMMA (de forma agressiva): Estava?
TURKEY sinaliza sim e abaixa a cabeça.
 
A referência a uma prática usada durante os anos de caça às bruxas nos Estados Unidos, por meio da qual certas testemunhas esperavam escapar tanto da Lista Negra quanto da vergonha de ser um informante, é clara. Como um roteirista de Hollywood disse uma vez sobre sua esposa (que também era roteirista): "O que ela fez foi não mencionar nenhum nome, mas se os nomes fossem mencionados, ela diria: 'Sim, ele era', porque eles já tinham sido mencionados. Até hoje ela está muito chateada com isso." [N.T. O depoimento de Sterling Hayden frente ao Comitê também contou com diversos momentos no qual o ator foi solicitado a confirmar as tendências comunistas de pessoas pre-julgadas, algo mostrado em seu livro ,Wanderer e sua adaptação cinematográfica Der Havarist.]
 
A desconfiança da multidão e da "maioria silenciosa", o viés social pronunciado em relação ao estranho, não era novidade no cinema de Ray. A ladainha de Emma ao bando armado [na qual ela insiste em caçar Vienna e o Kid pelo bem da comunidade] marca claramente a convergência dessa obsessão (parte integrante do propósito liberal de Yordan) com a corrente emocional freudiana que surgiu, quase inadvertidamente por parte de Yordan e Ray, durante as filmagens de Johnny Guitar.
 
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Embora Mercedes McCambridge falou depois que não teve muito a ver com seu diretor, a atriz que interpretou Emma o entendeu da forma seguinte: "Nick Ray era um homem muito torturado. Mas você teria que escrever a análise do seu caráter. Acho que seus filmes provavelmente mostram sua grande inquietação, sua melancolia, sua vulnerabilidade, a crueza de sua natureza, a ternura ocasional, que era muito profunda. Mas essas são apenas as minhas observações sobre um homem andando pelo set."
 

 

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