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Programa 1 (3 filmes, 125min): “A Trilogia de Beirute”
 
Beirute, nunca mais

Beyrouth, jamais plus
Jocelyne Saab | França | 1976, 37’, 16 mm para DCP restaurado (Association Jocelyne Saab)
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Carta de Beirute
Lettre de Beyrouth
Jocelyne Saab | França | 1978, 50’, 16 mm para DCP restaurado (Association Jocelyne Saab)
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Beirute, minha cidade
Beyrouth, ma ville
Jocelyne Saab | França | 1982, 37’, 16 mm para DCP restaurado (Association Jocelyne Saab)
 
No início da década de 1970, a jornalista e cineasta libanesa Jocelyne Saab trabalhou como repórter para a televisão francesa. Seu tema principal era a vida política de seu país. Com a eclosão da Guerra Civil Libanesa, em 1975, o seu cinema tomou um rumo mais pessoal para tentar transmitir o impacto da guerra sob o olhar íntimo, em contraste com os inúmeros jornalistas estrangeiros que também faziam suas coberturas. Entre 1976 e 1982, Saab fez três médias-metragens documentais ambientados na capital Beirute, em três fases distintas da guerra, que acabou durando até 1990 e envolveu milícias cristãs, sunitas e xiitas, ateus, palestinos, drusos e o Estado de Israel.
 
Em Beirute, nunca mais, observamos de imediato um jovem dormindo na rua, um carro de artilharia atravessando o quadro, a paisagem tomada pela destruição. A narração em off nos informa que “um em cada dois viajantes no mundo conhece Beirute, mas a cidade não existe mais.” Pessoas caminham pelas ruas fantasmas, repletas de destroços da guerra que estava apenas começando e que já havia deixado milhares de mortos na cidade, que foi um dia considerada a Paris e a Suíça do Oriente Médio. A narração foi escrita pela artista visual e poetisa libanesa Etel Adnan e faz uma reflexão sobre o que vemos em julho de 1976, há pouco mais de um ano do início do conflito. Esqueletos de massivos edifícios modernos, jovens armados, crianças abandonadas revirando a sucata de tudo o que existe em uma metrópole. A cidade é apresentada por um olhar contemplativo, que vagueia pelas ruas, sem se envolver explicitamente com a destruição que testemunha.
 
Em 1978, com a ação militar israelense no sul do Líbano, Saab realiza Carta de Beirute, que foi escrito em parceria entre ela e Adnan. Dessa vez, a cineasta não apenas narra um texto sobre imagens, mas também se coloca diante da câmera, como uma personagem que se dirige tanto aos seus amigos da classe intelectual e artística libanesa quanto à população em geral, para ouvir o que têm a dizer. Dentro de um ônibus (alugado para o filme) que se desloca de leste a oeste da cidade dividida, ela entrevista grupos diferentes de pessoas, como estudantes, trabalhadores, mulheres e homens idosos. Depois, em seu carro, Saab viaja para o sul do Líbano, onde entrevista militares de vários países a serviço da ONU e participa de um evento com o líder da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), Yasser Arafat. O filme conclui com uma visita a um parque de diversões abandonado, e com a sensação de que o país está girando em círculos.
 
Em junho de 1982, Israel invade o Líbano e, no mês seguinte, bombardeia Beirute. Na terceira parte da trilogia, Beirute, minha cidade, Saab novamente se coloca diante das câmeras para mostrar as ruínas que representam o que restou da casa de 150 anos de sua família, onde cresceu. Em seguida, com imagens de fontes diversas, ela denuncia o cerco que foi o momento mais violento da guerra, com corpos de mulheres e crianças soterrados pelos bombardeios, pessoas queimadas, mutiladas e desabrigadas. Vemos as imagens de resistência e sobrevivência da população enquanto ouvimos uma reflexão melancólica, porém firme, dessa vez escrita e narrada pelo teatrólogo libanês Roger Assaf. As imagens não poupam o espectador, porém também não existem para agredir, mas para esclarecer ao mundo o preço da guerra. Ao fim, testemunhamos tanques militares desfilando com crianças e jovens preparados para irem ao front. A população os apoia, clama a Deus por justiça, e a guerra continua.
 

As restaurações digitais dos filmes da Trilogia de Beirute foram feitas entre 2019 e 2022 e fizeram parte de uma iniciativa conjunta entre a Associação Jocelyne Saab, instituições europeias e libanesas. Apesar das digitalizações terem ocorrido na Europa, as restaurações foram conduzidas no Líbano, em uma série de workshops, com o intuito de devolver à população local imagens de seu país. Os filmes, que foram reduzidos e censurados pela televisão francesa nas suas transmissões iniciais, passarão no IMS Paulista em suas versões mais completas possíveis. Enquanto a versão de Beirute, nunca mais que circulou durante a vida de Saab é narrada em francês pelo jornalista e cineasta Jörg Stocklin, a versão exibida (descoberta após a morte da diretora) é narrada em inglês pela própria Saab.
 


 
Programa 2 (2 filmes, 107min): “Leila e os lobos”
 
Leila e os lobos

Leila wa al ziap
Heiny Srour | Líbano/Reino Unido | 1984, 95’, 35 mm para DCP restaurado (Heiny Srour)
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As crianças da guerra
Les Enfants de la guerre
Jocelyne Saab | França | 1976, 12’, 16 mm para DCP restaurado (Association Jocelyne Saab)
 
Inspirado na estrutura de As mil e uma noites e em histórias presentes no imaginário libanês e palestino, Leila e os lobos nos conduz por diferentes momentos no tempo para mostrar a presença das mulheres nos conflitos do Oriente Médio no século XX e para deixar explícito que, sem a participação feminina, não há revolução. Em 1975, a libanesa Leila (interpretada por Nabila Zeitouni) vive em Londres, onde organiza uma exposição de fotos sobre a luta palestina junto com seu namorado, Rafiq (Rafic Ali-ahmad). Enquanto as fotos cristalizam cenas de homens fardados e armados, uma velha, a avó da protagonista, conta que mulheres largaram seus filhos para protestar contra a expulsão dos palestinos de suas terras. Leila presencia a cena e questiona novamente Rafiq sobre o fato de as fotos mostrarem apenas homens. Mas Rafiq não se lembra de ver mulheres durante as manifestações: “Mulheres não têm nada a ver com política”, ele declara.
 
Seguem-se diversas outras histórias conectadas por Leila, que caminha entre as paisagens com um vestido branco. Em um cemitério, ela presencia um grupo de mães, irmãs e filhas que cantam em luto por seus entes martirizados. Durante a ocupação britânica da Palestina, nos anos 1920, homens lutam em protesto enquanto mulheres despejam óleo fervendo nos soldados ingleses. Ainda assim, vemos que essas mesmas mulheres são proibidas de frequentar a escola, apanham dos maridos e são confinadas à vida doméstica. Em 1937, em um vilarejo, os preparativos para uma festa de casamento são feitos pelas mulheres que recheiam quitutes com munição, forram o corpo da noiva de armamentos e embrulham espingardas em um tapete, para passarem despercebidas pela polícia, que se ocupa em revistar os homens, e, assim, munir os combatentes nas montanhas. Testemunhamos cenas de conflito com uma presença feminina, seja de um massacre de palestinos pelas forças israelenses em 1948, seja do princípio da Guerra Civil Libanesa em 1975.
 
As histórias são introduzidas com imagens de arquivo e protagonizadas pelos mesmos atores que interpretam Leila e Rafiq. Elas também são entremeadas por uma cena em uma praia, onde um grupo de mulheres sentadas na areia com vestimentas pretas tradicionais árabes observa melancolicamente um grupo de homens de sunga se divertindo na água. Ali, diferentes gerações refletem sobre um presente impiedoso que as mantêm aprisionadas a tradições misóginas e contam sobre costumes árabes sombrios que datam de períodos anteriores ao islamismo. A mudança cabe a toda a sociedade, mas principalmente às mulheres, pois, como diz a música tradicional durante os créditos de abertura: “Não culpamos o lobo por atacar o rebanho. Toda a culpa é do pastor ausente.”
 
Leila e os lobos estreou uma década após o primeiro filme de Heiny Srour, o documentário militante A hora da libertação chegou. Até hoje, permanece o único longa-metragem de ficção realizado pela cineasta libanesa, apesar de ganhar prêmios em festivais em Cartago e Mannheim. Ele foi restaurado digitalmente em 2021 pelo Centro Nacional de Cinematografia (CNC), na França, a partir dos negativos originais em 16 mm que foram conservados pelo Instituto de Cinema Britânico (BFI) e sob a supervisão de Srour. Em uma entrevista realizada em 2020, Srour comentou: “Leila e os lobos é um filme cético. Mas eu continuo fiel à causa da justiça, apesar de enormes desilusões políticas. Porque onde há injustiça, há guerra e violência. E, neste caso, invariavelmente os mais vulneráveis pagam o preço: os pobres, as mulheres e as crianças. E os ricos e negociantes de armas inevitavelmente vencem sempre.”[1]
 
A exibição de Leila e os lobos no dia 9 será seguida por um debate com Carol Almeida, uma das curadoras da Mostra de Cinema Árabe Feminino. As sessões do filme de Srour contarão ainda com um vídeo de apresentação feito pela diretora e com o curta-metragem restaurado As crianças da guerra, realizado por Jocelyne Saab. O documentário de Saab expõe a dramática situação das crianças da Guerra Civil Libanesa, em particular sobreviventes de um massacre na favela majoritariamente muçulmana de Karantina, que reproduzem em brincadeiras as cenas que presenciaram. Mesmo quando são dados papel com giz de cera, os jovens desenham armas e tanques. E, assim, o filme deixa claro que a própria condição de vida e desenvolvimento dessas crianças irá perpetuar o conflito.
 
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Agradecimentos da sessão: Analu Bambirra + Carol Almeida/Mostra de Cinema Árabe Feminino, Gerard-Jan Claes/Sabzian, Giliane Ingratta Góes, Giovanni Vimercati, Graham Carter/Several Futures, Heiny Srour, Iasmini Catanio dos Santos Nardi, Isabel Rojas/FICUNAM, Jinane Mrad + Mathilde Rouxel + Ossen El-Sawaf/Association Jocelyne Saab, Jonathan Mackris, Kaleem Hawa, Laure Gillot/Les Mutins de Pangée, Nicole Brenez, Olivier Hadouchi, Stoffel Debuysere/Courtisane Festival
 
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Minibio da convidada: Carol Almeida é pesquisadora, professora e curadora de cinema. Doutora no Programa de Pós-Graduação em Comunicação na UFPE, com pesquisa centrada no cinema contemporâneo brasileiro. Faz parte da equipe curatorial do Festival Olhar de Cinema/Curitiba, da Mostra de Cinema Árabe Feminino (que incluiu filmes de Heiny Srour e Jocelyne Saab em edições passadas) e da Mostra que Desejo. Participou também de comissões de seleção de filmes para festivais, como Forumdoc.bh, de Belo Horizonte, For Rainbow, de Fortaleza, e Recifest, do Recife. Fez curadoria da mostra Arquivos desobedientes: o cinema e as rasuras da história, no Olhar de Cinema em 2025, e da mostra Su Friedrich e outras imagens para o invisível, no Olhar de Cinema de 2022. Realiza oficinas sobre cinema brasileiro, curadoria e crítica de cinema e representação de mulheres no audiovisual. Já participou de júris em festivais como a Mostra de Cinema de Tiradentes, Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, Janela de Cinema, Animage, entre outros. Junto a Kênia Freitas, fez a curadoria da mostra virtual Nossa terra, nossa voz, atualmente em cartaz na Spcine Play.
 

[1] A entrevista com Olivier Hadouchi pode ser lida através do link “My loyalty is always with the oppressed. Whether in Africa, the Middle East or Vietnam”

 
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