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“Entre três raizes”
 
O texto a seguir foi originalmente escrito por Heiny Srour em 1998 em francês para um livro sobre cinema libanês, que acabou não sendo publicado. Ele depois foi traduzido para o inglês por Sis Matthé, da revista, online Sabzian, para publicação no livro Out of the Shadows e em um dossiê online dedicado ao cinema de Srour . Além dos diversos materiais organizados por Sabzian, o vídeo de uma longa conversa em inglês com Srour em 2024, moderada pela cineasta iraniana Bani Khoshnoudi na ocasião de uma retrospectiva dos filmes de Srour e Saab no festival mexicano de cinema FICUNAM, pode ser assistido aqui.
 
Presenciei o primeiro dia da Guerra Civil Libanesa de uma forma muito simbólica: fui expulsa da casa da minha família pelo meu pai, depois de ter me humilhado profundamente na presença de um colega que me considerava uma heroína por ter feito o filme A hora da libertação chegou, entre os combatentes da liberdade em Dófar. Para ser mais precisa, saí de casa depois de meu pai ter humilhado esse colega no meu próprio quarto e o expulsado do local. Em sinal de protesto, saí com o colega em vez de me submeter ao que tinha sido mais do que um tapa na cara para mim – eu, que me considerava um ser inteligente depois de ter retornado em glória de Cannes, Paris e Nova York.
 
Que pecado eu havia cometido no meu quarto com o colega? Eu havia entrado no quarto para buscar um poema do iraquiano Muddaffar Al Nawwab, que eu queria mostrar a ele. Meu colega – o cineasta argelino Abdelaziz Tolbi, que estava visitando Beirute – inocentemente me seguiu, e nos perdemos em nossas discussões poético-filosóficas enquanto o resto da casa cochilava em uma merecida sesta após um longo almoço mediterrâneo. “Sayakuna kharab! Sayakuna kharab! Hadhihi al-umma, la budda laha an ta'khudha darsan bil takhrib!” ("Haverá destruição! Haverá destruição! Esta nação árabe precisa aprender uma lição de autodestruição!"), recitei com fervor. Era o fim do poema de Al Nawwab, e Tolbi absorveu minhas palavras de uma forma exaltada. Nelas, ele encontrou a resposta criativa que estava procurando em conexão com o filme de ficção que sonhava fazer.
 
Nós dois estávamos deslumbrados pelo poema profético de Al Nawwab e não sabíamos que meu pai não estava dormindo. Que, de fato, ele estava espionando nossos ruídos. Que ele estava se perguntando o que aquele goy (uma palavra usada pelos judeus para designar os não judeus) estava fazendo no quarto de sua filha. E que ele estava dizendo a si mesmo: “Uma coisa é deixar um goy entrar em casa — eu não podia negar isso à minha filha, que não via há três anos. Ela me garantiu que ele era casado e pai de quatro filhos. Além disso, enquanto almoçávamos, toda a família podia ficar de olho nele. Mas esse goy teve a audácia de ficar por ali depois da sobremesa e do café; de ficar na sala a tarde toda, sozinho com minha filha, sem ninguém para supervisioná-los, além da empregada! E agora ele ousa entrar no quarto dela! Isso é passar dos limites...”
 
Sayakuna kharab...Sayakuna kharab…Eu não poderia ter dito melhor…
 
Estávamos voando alto em uma atmosfera rarefeita de estética e marxismo quando meu pai, ainda de pijama, correu para dentro do meu quarto. Furioso, insultou meu colega e o expulsou da maneira mais humilhante possível. O pobre Tolbi ficou pasmo. Ele acreditava estar na casa de uma cineasta guerrilheira, sobre quem havia lido na imprensa que ela havia caminhado 400 quilômetros em meio a bombardeios para filmar a guerrilha mais radical do mundo árabe. Algo que nenhum homem ousou fazer...E agora, antes mesmo que pudesse registrar o que estava acontecendo, ele foi expulso daquela casa supostamente moderna.
 
“Ya ard, insha’i w-ibla’ini!” (“Ó Terra, abre-te e engole-me!”) Infelizmente, a Terra não me concedeu este desejo. Fora de mim, de vergonha e humilhação, encontrei-me na rua ao lado de Tolbi. Quando ele recuperou o fôlego, o meu pobre colega gaguejou: “O seu meio nem sequer é feudal, é tribal.” Eu esperava retribuir sua gentileza, pois ele havia me acolhido calorosamente quando fui sua hóspede na Argélia! Havia entrado numa grande enrascada.
 
Mas esta não foi a última vez em que me vi dividida entre as duras pressões e a atmosfera estimulante dos meus pares – entre os quais me superei e dei o meu melhor – e o meu ambiente familiar, que estava a anos-luz da minha vida pública. Era uma família acolhedora, admito, mas dentro dela mesma...“Eu fico sufocada na comunidade malaia”, disse-me uma prima de Singapura. Esta prima, que pertence à minha família espandida mulçumana, também é artista e, tal como eu, sufoca dentro dos estreitos limites da sua comunidade religiosa. Muitas vezes me perguntei se os sentimentos de sufocação dela tinham a ver com o fato de ser mulher ou artista. Tal como eu, casou-se fora do seu meio social.
 
Mas voltemos ao nosso tema da guerra civil. Então, Tolbi e eu nos encontramos na rua, ainda atordoados e incrédulos com o tapa retumbante que meu pai deu ao nosso vanguardismo e universalismo. Acreditávamos ter apagado da nossa memória as coisas religiosas antiquadas, as tradições tão retrógradas, a velha ordem patriarcal que atribuímos ao imperialismo e aos regimes árabes. E bang! Mal havíamos dado alguns passos pela rua quando recebemos um segundo tapa... ou melhor, um golpe de cassetete, neste caso! As balas começaram a zunir. Eram os primeiros tiros da guerra civil, e isso os tornava aterrorizantes. Em Dófar, entre os guerrilheiros, eu já tinha me acostumado um pouco com isso – embora não antes de literalmente me borrar de medo na primeira vez em que a Força Aérea Real Britânica bombardeou uma área perto de nós, e não antes de meu engenheiro de som me apelidar de “diretora de merda” porque eu gritava compulsivamente “Ya mami!” (“Mamãe!”) toda vez que ouvia tiros de armas de pequeno porte à queima-roupa, arruinando assim suas maravilhosas gravações sonoras. É claro que eu havia cuidadosamente escondido tudo isso da imprensa, de Tolbi e dos meus colegas, com medo de ser rejeitada – eu, que fui a primeira diretora mulher do Oriente Médio a ser selecionada para o Festival de Cinema de Cannes. Eu tinha muito medo de ouvir: “Vejam o que acontece quando uma mulher tenta fazer um filme. E numa guerra de guerrilha, logo ali! Nós avisamos”. Mas em Dófar, com as escoltas militares, o deserto, as rochas, as mulheres e crianças armadas, os tiroteios faziam parte da trilha sonora da vida. Em Beirute, as balas que voavam em meio à dolce vita libanesa foram ainda mais angustiantes.
 
A governança confessionalista que tanto ridicularizamos nos mostraria que não se importava nem um pouco com o nosso desprezo intelectual por ela. Tínhamos a ignorado? Iria nos mostrar que estava viva e ativa. Tínhamos sido culpados de usar terrorismo moral contra os “canalhas” que a adotaram? Eles nos pagariam aterrorizando-nos de uma maneira muito mais física ao longo dos próximos dezessete anos. Eu deveria ter suspeitado da presença desse confessionalismo, já que falava árabe com dois sotaques diferentes, como a maioria dos libaneses: um na minha família e no meu ambiente regional (os judeus libaneses falam com um sotaque próximo ao sotaque sírio) e outro nos cafés de Hamra e nos círculos culturais (uma espécie de árabe jornalístico padronizado cujo leve classismo mascarava particularidades religiosas ou regionais – “a herança envenenada do Império Otomano”, como gostávamos de dizer).
 
A casa do amigo onde eu e Tolbi planejávamos nos refugiar ainda estava distante. Que se danem as balas! Voltar para minha casa estava fora de questão. A ordem patriarcal, imperialista e capitalista era a mesma, não era? Avanti Popolo! “Al mawt, wa la-l-mazalati” (“A morte em vez de uma vida de humilhações”), cantavam na época os fedayin que apoiávamos com tanto fervor. Eu estava determinada a provar ao meu pai que eu era um ser inteligente e não um eterno menor de idade, o status ao qual o judaísmo dele, institucionalizado pelas leis libanesas, me havia confinado. Chegamos sãos e salvos à casa de meu amigo e, no decorrer da conversa que se seguiu, Tolbi descobriu que, embora eu falasse árabe clássico-jornalístico fluentemente, quando se tratava de leitura, eu era apenas semianalfabeta em árabe – graças à minha educação escolar na língua francesa. “E eu pensava que era impensável que Heiny tivesse passado horas debruçada sobre o documento produzido para o congresso de documentaristas!” Ah, esse poder manipulador da imprensa! Oh, céus! Mais uma indignação!
 
Bem, essas não seriam as últimas indignações da minha carreira. Continuei a cruzar fronteiras. Toda vez que o sucesso profissional me fazia voar alto acima do peso da tradição, o longo braço da minha família me trazia de volta ao planeta Terra, onde as leis da gravidade são implacáveis com uma mulher oriental, principalmente se ela for judia em um mundo árabe inundado de bombas lançadas em nome do judaísmo.
 
Então, após eu receber 400.000 francos do Grande Prêmio de Melhor Roteiro do mundo francófono por Leila e os lobos – eu, que nunca havia frequentado uma escola de cinema –, tive minha mala aberta e revistada na minha ausência por um membro da minha família, na melhor tradição da Inquisição Espanhola. Estou exagerando: não fui queimada na fogueira, como dezenas de milhares de judeus foram queimados nas mãos de Torquemada. Mas fui expulsa da casa da minha própria irmã, tão escandalosa que foi a censura familiar do meu roteiro. Sem mencionar o linchamento público, semelhante a um pogrom, a que minha família me submeteu após eu fazer o meu filme Rising Above: Women of Vietnam (1995). E assim por diante...
 
Filmei uma metade de Leila e os lobos na Síria, graças em parte à solidariedade ativa dos meus colegas de cinema sírios, que me imploraram para esconder o fato de eu ser judia. Quando criança, cresci com a noção do “Povo eleito”. Na adolescência, levei um tapa na cara de um professor de hebraico na Escola Judaica Francesa em Beirute por ter ousado afirmar que esse Deus judeu era injusto com os não judeus. Portanto, era pedir demais esconder minha identidade judaica como se fosse uma doença venérea. Mesmo assim, me curvei. Meus colegas sírios já tinham muitos problemas com o próprio governo deles, e eu não queria agravá-los.
 
No Líbano, tanto quanto na Síria ou em qualquer outro lugar do mundo árabe, assim que saio do meu pequeno círculo esquerdista, meu judaísmo causa um arrepio, uma onda de inquietação, ou até um impacto pior em qualquer reunião de pessoas com quem eu me encontro. E nem sempre sei o que fazer, porque não consigo me identificar com essa religião, na qual o rei mais belo dos belos, o mais sábio dos sábios, Salomão, mantinha um harém de mil mulheres (700 princesas e 300 concubinas, segundo a Bíblia). E a única coisa que atrai a ira deste Senhor tão justo e tão bom é que algumas das mulheres são pagãs e que Salomão construiu templos dedicados aos seus ídolos, uma ofensa intolerável a um sistema monoteísta. Depois de todas as minhas cruzadas – antipatriarcais, anticlericais, antidespóticas, anti-anti-anti... – tanto globalmente, quanto na minha família, recentemente me surpreendi ao pintar e repintar a Estrela de Davi nas lanternas mortuárias dedicadas ao meu falecido pai.
 
A Estrela de Davi? Cheguei ao ponto de achar insuportável vê-la na televisão, tamanha era a onda de morte e miséria que os tanques e aviões que ostentavam esse símbolo levaram ao longo das guerras israelenses. Cheguei ao ponto de, às vezes, sentir vergonha da minha origem judaica. Quando criança, eu adorava essa estrela quando me explicavam que ela era composta de duas figuras geométricas perfeitas – triângulos isósceles – um apontando para cima e o outro para baixo, simbolizando o equilíbrio entre o espiritual e o temporal. Um amigo libanês, apreciador da culinária macrobiótica e do budismo, me disse que essa Estrela de Davi “é o símbolo universal do Tao e do Yin-yang em todo o Oriente”.
 
A tradição judaica orienta que orações de consolação específicas para o período em que a pessoa faleceu sejam lidas aos parentes do falecido. E é por isso que o livro de Isaías é lido para mim em um ritual anual; aliás, será lido para mim em alguns dias para me consolar pela morte do meu pai. Essas orações começam de forma bastante simbólica, agradecendo ao Senhor por ter enviado bons profetas aos judeus, pois também existem falsos profetas. E, segundo a Bíblia, Isaías foi um dos bons profetas.
 
O que diz Isaías ao se dirigir aos filhos de Israel quando o Eterno fala através dele? “Ah, nação pecadora, povo carregado da iniquidade! Raça de malfeitores, filhos dados à corrupção!” (Isaías 1:4) E mais adiante: “A cabeça toda está ferida, todo o coração está sofrendo. Da sola do pé ao alto da cabeça não há nada são...” (Isaías 1:5-6) E: “Parem de trazer ofertas inúteis! O incenso de vocês é repugnante para mim. Luas novas, sábados e reuniões! Não consigo suportar suas assembleias cheias de iniquidade. Suas festas da lua nova e suas festas fixas, eu as odeio. Tornaram-se um fardo para mim; não as suporto mais! Quando vocês estenderem as mãos em oração, esconderei de vocês os meus olhos; mesmo que multipliquem as suas orações, não as escutarei! As suas mãos estão cheias de sangue! Lavem-se! Limpem-se! Removam suas más obras para longe de minha vista! Parem de fazer o mal, aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva.” (Isaías 1:13-17)
 
É assim que meu pai me fala, mesmo depois de sua morte, ele, que foi um apaixonado defensor de Menachem Begin [primeiro-ministro israelense entre os anos 1977 e 1983 e fundador do partido Likud, atualmente liderado por Benjamin Netanyahu]. “Os seres humanos têm tantos tesouros escondidos.” É o que me diz meu amigo macrobiótico, que está sempre lá para me mostrar as belezas insuspeitas da Vida.
 
E isso não é tudo. Pois Isaías continua: “Pois a lei sairá de Sião, de Jerusalém virá a palavra do Senhor. Ele julgará entre as nações e resolverá contendas de muitos povos. Eles farão de suas espadas arados, e de suas lanças, foices. Uma nação não mais pegará em armas para atacar outra nação, elas jamais tornarão a preparar-se para a guerra.” (Isaías 2:3-4) Não foi isso que me atraiu para o marxismo, essa esperança de que as guerras desapareceriam com o fim do capitalismo? Esse amor pela paz e pela justiça é outro tesouro escondido que me foi deixado por meu pai – ele, que rasgava os livros marxistas que eu lia às escondidas, à luz de uma tocha, debaixo das cobertas da minha cama.
 
Sobrecarreguei meus colegas homens com comentários sarcásticos sobre a representação feminina. “Cineastas árabes claramente têm problemas com suas mães”, escrevi com maldade. E quando criei coragem para me olhar no espelho, vi uma cineasta que tinha os mesmos problemas com o próprio pai. Pois de Dófar ao Vietnã, passando pelo Líbano, Palestina e Egito, sempre me vi do lado do Davi do momento contra o Golias das circunstâncias. Pois mesmo na Bíblia, o adorável pastorzinho que derrota brilhantemente o monstro de ferro, armado apenas com sua fé e seu estilingue, abusa de seu poder ao se tornar rei...E é severamente repreendido por seu Senhor, uma vez que “o Eterno está sempre ao lado dos oprimidos”.
 
Meu pai, um homem de bem, de fato me transmitiu isso – ele, que sofreu tantas discriminações quanto qualquer judeu poderia esperar encontrar na sociedade libanesa. Ele que tanto me discriminou, esta menina que ele não queria e tanto esperava que substituísse o menino que morreu antes do meu nascimento. Para ele, foi uma discriminação por ordem divina, infligida com toda a boa-fé que sua Bíblia lhe dava e o objeto de tanto sofrimento para mim, na minha vida privada e profissional.
 
Eu então reinventei minha Estrela de Davi.
 
Tudo isso para explicar por que eu compulsivamente me vejo fazendo filmes que são muito mais difíceis de realizar do que são os dos meus colegas homens.
 
Londres, dia 16 de outubro de 1998
 

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