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“A morte de um homem alto”
 
O seguinte ensaio foi originalmente escrito por Ruchir Joshi em 1996 e publicado na India Magazine. Ele foi traduzido do inglês para o português, e postado aqui com a permissão do autor. A tradução foi feita por Gustavo Pinheiro (tradutor, advogado do setor audiovisual, editor, educador e programador de filmes graduado em Cinema pela Unespar e em Direito pela Universidade Federal do Paraná) e Mariana Shellard (co-fundadora da Mutual Films).
 

1. O velório
 
Eu passei a noite de 23 de abril de 1992 bebendo com dois amigos no bar Olympia, na Park Street.
 
Nós três, de alguma forma, trabalhávamos com cinema. O mais velho de nós estava envolvido no movimento de cineclubes de Calcutá desde 1960 – ano em que eu nasci. O outro, também mais velho do que eu, era um crítico conhecido. Minha preocupação em particular com filmes sérios – como cineasta documental – remontava, naquela época, há apenas insignificantes dez anos, e, portanto, como fazem os novatos, eu sobretudo ouvi.
 
Ignorando os ratos que passavam por nossos pés, nós bebemos rum e soda e discutimos sobre um curta-metragem que havíamos acabado de assistir. Conforme a bebedeira progredia, o filme foi deixado para trás e a conversa se transformou em memórias e fofocas. Inevitavelmente chegamos em duas figuras que se destacaram no cinema bengali contemporâneo – Satyajit Ray e Ritwik Ghatak – um diretor consideravelmente menos conhecido do que Ray, mas o qual muitos consideram como superior. Ghatak havia morrido há dezesseis anos, em 1976. Ray, como todos nós sabíamos, estava internado no hospital naquele momento, deitado no que seria provavelmente seu leito de morte.
 
Alguém mencionou o Oscar pelo Conjunto da Obra que Ray havia recebido no seu quarto de hospital alguns dias antes. “Por toda sua vida ele quis um Oscar. Estes piratas em Hollywood finalmente correram aqui com suas malditas câmeras de vídeo apenas quando se deram conta de que ele estava morrendo. Se ele estivesse bem, provavelmente teria recusado. Digo, olha os franceses. Quando eles o presentearam com a Legion D’Honneur? 1985? Por que Satyajit Ray teve que esperar pelo prêmio da Academia pelo Conjunto da Obra até ele ter sido dado para cada diretor norte-americano de segunda categoria?”
 
“Eu não acho que ele recusaria. Ritwik talvez teria, mas não o nosso Raybabu.”
 
“Se estivesse vivo, Ritwik teria gargalhado.”
 
“Sim. ‘Manik, por que estão te dando o Oscar por A esposa solitária (Charulata, 1964) agora? Você fez o filme em ‘64!’”
 
“‘Manik, esses caras de Hollywood são ainda mais mesquinhos do que você. Eles foram enviados em um barco tão lento que levou 28 anos! Veja, até seu filho cresceu desde seu último filme decente!’”
 
“Ó, o Ritwik conseguia ser mau.”
 
“Muito mau...ouça, eu já te contei essa? Eu não deveria.”
 
O cara dos cineclubes mandou essa história: “Essa é do início dos anos 60. Na época, Ritwik havia realizado três grandes filmes, um depois do outro, mas ninguém percebeu.[1] Enquanto Ray já estava sendo comparado a Kurosawa e Bergman por críticos estrangeiros.
 
“Então...num domingo de manhã, o mercado de Gariahat presencia uma visão estranha. Ritwik Ghatak comprando verduras. Por quê? Porque se sua esposa o enviara ao mercado, significava que ela havia dado-lhe dinheiro. E dar dinheiro a ele normalmente significava que Ritwik iria direto à loja de bebidas.” Um garçom se aproximou de nossa mesa, intrigado com a história.
 
“Mas hoje, aqui está Ritwikbabu, com uma sacola de compras numa mão, comprando verduras. Ritwikbabu foi enviado para o mercado não apenas com dinheiro, mas também com uma doce bebezinha – a filha de sua sobrinha. Por quê? Porque a senhora Ghatak sabia que Ritwik faria qualquer coisa por um trago, porém jamais poderia mostrar a cara numa loja de bebidas com um bebê. Xeque-mate.” Meu amigo tomou um sádico gole de rum.
 
“Então, a cestinha do mercado está sendo enchida, praticamente por conta própria. O dinheiro saindo do bolso, também por conta própria. Restam-lhe apenas cinco rupias – apenas o suficiente para uma garrafa de Bangla[2] – quando ele vê algo pelo canto do olho.”
 
Meu amigo puniu o garçom por espionagem ao mandá-lo trazer outro drink.
 
“Bem, Ritwik é um homem alto, em torno de 1,86m sem se curvar. Ele consegue enxergar sobre as cabeças da multidão do mercado. O que ele vê é outra figura alta. Ele abra caminho entre a clientela.
 
“‘Ei Manik! Manik, olá!’ diz ele, para nem mais nem menos que Satyajit Ray, também incumbido das compras pela senhora Ray. ‘Manik! Você! Aqui? Como é bom te ver!’ diz Ritwik.
 
“‘Hum... olá’ diz Manik cautelosamente, porque ele conhece Ritwik.
 
“‘Ouça Manik, você poderia me fazer um favorzinho?’
 
“‘É...’
 
“‘Não, hoje não preciso de dinheiro emprestado. Apenas segure esta pequena por um segundo, eu já volto.’ E antes que Ray diga qualquer coisa Ritwik desaparece, deixando-o com a bebê.
 
“Passa-se meia hora. Ray está preso no mesmo lugar. As pessoas o reconhecem, claro, e param para elogiar seus filmes, começam a perguntar sobre seu projeto mais recente, pessoas amigáveis de Calcutá, alguém o aconselha sobre sua mise-en-scène. A bebê molha sua camisa. Quarenta minutos, nada de Ritwik, Ray lívido. Três pessoas já haviam perguntado a ele para onde tinha ido a mãe da sua menininha. Já estava batendo uma hora...e...e Ritwik voltou! Cambaleando um pouco, mas muito alegre.
 
“‘Ah Manik. Obrigado, obrigado. Ela se comportou?’
 
“‘Hum...’ Ray olha para baixo para a mancha molhada na sua camisa.
 
“‘O quê? Ela urinou em você? Garota má!’ diz Ritwik. E então ele franze a testa intrigado. ‘Mas, por que ela fez isso?...Ela não assistiu seu novo filme!’”
 
Nós gargalhamos antes de cairmos em silêncio. O crítico de cinema conhecia a família de Ray. Ele balançou a cabeça.
 
“O Oscar foi seu último suspiro. É uma questão de tempo agora, ele está em coma profundo. Ele está sendo mantido vivo artificialmente. Tubos e aparelhos. Ele não deu sinal de consciência nos últimos três dias.”
 
O rum entrou em combustão com um sentimentalismo bengali quintessencial, levando o cronista da irreverência à pieguice.
 
“Eu me pergunto o que Ritwik dirá a Satyajit quando eles se encontrarem,” ele suspirou em seu copo.
 
“Ó,” sorriu o crítico de cinema, “Provavelmente...‘Ah, Manik! Finalmente você está aqui! Diga, pode me fazer um favor? Quer dizer, por que mudar o hábito de uma vida inteira só porque você está morto?’
 
“Neste momento, Manik dará meia volta e voltará correndo para este mundo!”
 
Eu cheguei em casa e, como em toda noite, minha mãe estava assistindo TV. Mas, ao invés da costumeira novela, eu vi o ator Om Puri dando uma machadada em um tronco de árvore. “Bom corte, filme ruim...” Eu pensei e então me dei conta de que os tubos e aparelhos haviam falhado – eu havia acabado de participar de um velório antecipado. Om Puri deu outra machadada seca. A madeira deslizou sem uma única marca.
 
Minha mãe disse: “Ele faleceu às seis horas da noite. Eles anunciaram.”
 

2. O Presidente
 
Toda morte famosa traz consigo um ataque violento aos sentidos e a partir do dia seguinte começaria um dilúvio:
 
Um período de luto nacional seria declarado, levando bandeiras à meia-haste em todo o país. Ao longo da semana seguinte todos os jornais e revistas publicariam obituários, artigos, avaliações de filmes, loas ao grande gênio de talentos múltiplos como diretor, músico, escritor e designer gráfico. A escrita variaria de hagiografias estridentes a despedidas reverentes em tons sombrios e melancólicos.
 
Clichês como “gênio multifacetado”, “personalidade imponente”, “perda irreparável” e “fim de uma era” seriam repetidos como se os escritores estivessem sendo controlados por um ditafone com uma fita em looping.
 
Doordarshan, a televisão pública, teria uma transmissão ininterrupta de tudo o que Ray filmou e tudo que foi filmado sobre ele. Personalidades famosas do cinema de todo o mundo enviariam mensagens de condolências, assim como alguns chefes de Estado.
 
Satyajit Ray, o mais profundamente reservado dos homens, teria um dos funerais públicos mais barulhentos já vistos na Índia.
 
Em minha mente ouço alguém, digamos uma criança de dez anos da cidade de Calceta, no Equador, me perguntar: “Então, quem era esse homem? O Presidente? Como sua morte pode ter parado uma cidade de 12 milhões de habitantes por dois dias?”
 
Ele foi um contador de histórias que as contava nos filmes. Ele foi um contador que não criava muitas histórias próprias. Ele praticamente só contava histórias de outras pessoas, mas as contava bem, algumas vezes muito bem. Quando ele começou, não sabia como fazer, mas aprendeu por conta própria. Ele observou como algumas pessoas contavam suas histórias em outros países e ele trouxe isso de volta com ele.[3]
 
Naquele tempo, ninguém aqui contava histórias filmadas como ele fazia e as pessoas começaram a notar. Daí, pessoas de todo o mundo ficaram extasiadas por suas histórias. Deram a ele muitos prêmios. Em seu próprio país sua fama cresceu e cresceu.
 
Quando morreu, ele morava em uma casa alta. E mesmo já havendo outros contadores de histórias naquele momento, alguns melhores que ele, sim, quando morreu, ele havia sido, por muitos anos, o Presidente dos Contadores de Histórias.
 

3. A casa alta
 
Eu moro próximo da casa de Ray e ainda mais perto do lar de idosos Belle Vue onde ele passou suas últimas semanas. Antes da erupção de um novo bloco de apartamentos na frente da minha janela, eu costumava ter uma visão direta da Unidade Cardíaca de Cuidados Intensivos no último andar do hospital.
 
Alguns dias antes dele morrer, em um momento irreverente, eu o imaginei se debruçando na janela à noite, sem prédios entre nós. Eu me imaginei acenando para ele, fazendo caretas, fazendo-o gargalhar com uma ousadia pela qual eu havia me convencido de que ele ansiava, rodeado como era por todas essas enfermeiras silenciosas e médicos fúnebres.
 
Eu não costumo ser sentimental, mas na noite em que ele morreu eu decidi caminhar até a rua Bishop Lefroy. Talvez tomado pela curiosidade, ou talvez um estranho desejo de dar minhas condolências. Quem sabe eu pensei que encontraria um de meus amigos do início da noite.
 
Eu saí de minha casa para uma paisagem estranha. Tudo ao meu redor era sinais de construção. Em muitos lugares a calçada havia desaparecido, enterrada sob deslizamentos de terra e lascas de pedra. Cachorros de rua se enrolavam debaixo do esqueleto de prédios velhos. Misturadores de cimento jaziam boquiabertos no próprio sono, cansados e parados, como se tivessem sido arrastados por décadas em uma máquina do tempo do século XIX. Blocos de apartamentos construídos pela metade oscilavam por entre novos postes de luz pela noite úmida de abril, lajes de concreto enjauladas por barras frágeis de bambu e andaimes de corda.
 
Nas últimas duas décadas, os empreiteiros e o mercado imobiliário tiveram total liberdade nesta área, construindo novos prédios em qualquer espaço possível. Uma a uma as casas coloniais foram derrubadas, entregues à morte por um elo entre empresários ricos e oficiais de governo apáticos. Mais recentemente, transformações similares começaram a ocorrer em toda a cidade. Entre a apatia e o suborno algumas das partes mais bonitas da cidade foram violentadas sem benefício para ninguém além dos ricos e dos políticos.
 
A Calcutá de 1992 não tinha qualquer semelhança à “city of dreadful night” de Kipling.[4] Era difícil achar traços da outra cidade, graciosa ainda que terrível, sobre a qual Tagore escreveu.[5] Não era mais a cidade que Ray retratou maravilhosamente em um ou dois de seus primeiros filmes.
 
Nos anos 60, Calcutá foi tachada pela mídia e agências de publicidade de “a cidade mais pobre do mundo”. E ainda que fosse possível ver os resultados diretos daquele período por entre o caos de poluição, também não era mais “o buraco negro de nossos tempos”.
 
Era como se Calcutá fosse uma atriz. Uma artista em ascensão que despia-se de trajes sucessivos, mantendo um enfeite de um, um trapo de outro, uma mancha de maquiagem berrante de um terceiro, enquanto transformava-se diante de seus olhos em uma personagem completamente diferente.
 
Eu morei a maior parte de minha vida em Calcutá e ainda era minha cidade, a única cidade onde me sentia em casa. Mas aos 32 anos, eu já me relacionava com ela com profunda dificuldade. Para alguém como Ray, a alienação deve ter sido muito mais intensa.
 
Ainda que a maioria dos filmes bem-sucedidos de Ray não sejam sobre a cidade, ele era essencialmente um homem cosmopolita, que também se sentia mais em casa em Calcutá. Mas a Calcutá que ele amava, que nutriu sua arte nos seus anos formativos, havia desaparecido em um passe de mágica há muito tempo. O problema com os filmes de Ray depois de seu primeiro brilhante período, especialmente os que se passavam na Calcutá dos anos 60 e 70, foi que ele nunca se entendeu com as mudanças que ocorriam ao seu redor.
 
A casa em que Ray vivia continuou intocável pela metamorfose que a cercava. Mas em seus últimos anos de vida, a única coisa que ele precisava fazer era dirigir por trinta segundos para qualquer lado para ser confrontado com a crescente selva de pedra.
 
O apartamento fica em um adorável edifício antigo na esquina de duas ruas consideravelmente silenciosas. O edifício provavelmente foi construído no início do século para rajás box-wallas[6]. Uma escadaria majestosa, uma porta imponente, pé direito alto capturando uma bela luz. Até recentemente, seu escritório tinha uma vista agradável de palmeiras e de outros prédios similares. Morando como eu moro, em um dos novos blocos de concreto, aquele flat, junto com a já famosa escrivaninha e poltrona, era uma das poucas coisas dele que eu verdadeiramente invejava.
 
Sendo um cineasta “marginal”, eu não podia reivindicar nem mesmo a mais fugaz proximidade com Ray. Mas considerando a maneira como Calcutá opera, eu tive o prazer de entrar no covil sagrado duas ou três vezes. A primeira vez foi em meados dos anos 80 quando fui entregar um convite para a sessão de meu primeiro filme.
 
Todos sabiam que Ray raramente se aventurava fora de casa para ver filmes, especialmente documentários feitos por jovens desconhecidos da cidade. Eu fui porque era isso que se fazia quando se terminava um filme – você ia pessoalmente entregar o convite para prestar respeito, para pedir bênçãos. A forma correta de pedir era tácita, porque Deus lhe perdoe se você fizesse algo avançado ou estúpido como algumas pessoas às vezes faziam, como tocar os pés dele. Ray veio de uma tradição brahmoista e o desgosto brahmo pelo melodrama hindu se acoplava a ele com um senso de decoro muito inglês.
 
Eu fui à sua casa logo depois que Ray recebeu a Legion D’Honneur de François Mitterrand. Eu havia assistido à cerimônia na televisão e ainda estava fresca em minha mente: Ray vestindo o tradicional dhoti-kurta[7] se dirigiu a Mitterrand para receber a medalha. Mitterrand, alguns bons centímetros mais baixos, colocou suas mãos nos ombros de Ray e puxou-se para cima, plenamente decidido a dar-lhe o tradicional beijo duplo gaulês antes de deixá-lo partir com o ouro. Ray, que passou a vida recusando mulheres que desejavam beijá-lo, não estava disposto a deixar esse francês plantar seus lábios onde nenhum outro homem havia plantado. Ele gentilmente afastou as mãos de Mitterrand de seu ombro e deu um pequeno aceno com a cabeça. Ele então juntou as palmas das mãos num namaskar[8] e se curvou – conseguindo ainda esquivar-se de qualquer tiro que o julgamento de Calcutá poderia disparar contra ele.
 
Eu fui à casa, subi as escadas nas pontas dos pés. Bati na imponente porta cor creme e esperei. Depois do que pareceu um longo tempo, alguém abriu a porta. Pode ter sido um empregado ou um membro da família.
 
“Sim?” Eu declarei minha razão para perturbar. A porta se fechou e eu esperei novamente. Outra longa espera antes que ela se abrisse e eu pudesse entrar. Me senti sortudo, enormemente privilegiado, e em uma trela de tempo muito curta. Eu passei por uma tela que dava em um escritório, um lugar que eu já conhecia de muitas fotografias.
 
“Sim?” Desta vez de uma voz familiar que era anasalada e grave ao mesmo tempo. Os óculos de leitura saíram do rosto e eu fui encarado. Eu estava nervoso demais para encará-lo também, ou até mesmo para olhar ao meu redor. De forma minimalista, eu juntei as mãos e curvei a cabeça – pois esse era o rigor – e então gaguejei meu propósito.
 
“Obrigado. Eu estou muito ocupado com meu próximo filme e os médicos não me permitem sair muito, mas obrigado pelo convite.” Eu comecei meu recuo. “Desejo-lhe boa sorte”. E ele se virou para sua escrivaninha com tampo inclinado de ilustrador. A recusa foi, como o homem, educada, mas nem por isso menos firme.
 
Conforme descia as escadas, me lembro ter pensado “foi assim que Mitterrand deve ter se sentido”. Eu também me lembro de ter pensado “não foi tão ruim assim”. Eu estava, de fato, aliviado de ter escapado do constrangimento de ter mostrado para ele esse Esforço Inicial. Posteriormente eu faria outros filmes, filmes pelos quais não me sentiria envergonhado ao mostrar para qualquer um. Apenas então outra coisa naquele primeiro encontro me surpreenderia – o profundo desinteresse de Ray pelo trabalho que uma pessoa três gerações mais nova do que ele havia criado. Sua completa falta de curiosidade no potencial de um iniciante.
 
Quando minha curiosidade me levou à sua casa na noite do falecimento, era quase meia-noite. Havia uma fila de carros de polícia parados por perto, e alguém havia colocado uma luz brilhante “de casamento” em uma árvore em frente ao portão. Havia uma pequena multidão nos arredores, composta principalmente por fotógrafos. Eles estavam estranhamente quietos conforme esperavam a aparição da próxima celebridade. Eu percebi que havia mais policiais do que pessoas para conter. O crepitar dos rádios da polícia vinha dos furgões estacionados, bizarramente fora de lugar no silêncio. O holofote de casamento projetava sombras estranhas das árvores nas paredes amarelas – o tipo de sombra que se tem quando uma filmagem está acontecendo à noite. Eu esperava a qualquer momento escutar um assistente de produção gritar “SILÊNCIO!” ou “Fim de cena! Jaan jaan, taara-taari chole jaan...”[9] deixando transeuntes passarem.
 
Um homem alto e magro com uma camisa casual branco-sujo e sandálias arrebentadas aproximou-se da polícia que protegia o portão. Ele saudou um dos policiais. “Por favor deixe-me subir. Eu conheço a família. Ele conhecia meu pai. E minha mãe também. Ele era como um deus para mim. Por favor. Eu quero apenas prestar meus respeitos. Ele me conhecia de criança. Ele era como um tio. Por favor, deixe-me subir. O que é isso? Por que você está fazendo isso? Eu quero apenas prestar meus respeitos para a esposa dele. Eu conheço a família.”
 
O oficial o ignorou, exultante pelo fato de que ele tinha alguém para rejeitar, que finalmente ele tinha algo para fazer. O homem, um decrépito na casa dos quarenta, continuou seu refrão em um canto monótono. Suas mãos postas estavam apontadas para o oficial, mas seu rosto agora virado tentava fazer contato visual com outra pessoa, qualquer um que o ouvisse. O oficial, percebendo que não era mais o centro das atenções do homem, virou-se e rosnou para ele. O homem recuou e caiu no silêncio.
 
Deve ter sido difícil lidar com a crescente fama internacional no que era, nos anos cinquenta e sessenta, essencialmente uma cidade pequena contendo muitas pessoas. Os enxames de mediocridades tentando subir no vagão da grandeza em movimento devem ter sido cansativos, e a reclusão, que cresceu com os anos, deve ter parecido o único caminho lógico a seguir. Mas em cada uma das três estranhas ocasiões em que eu saí da mais famosa torre de marfim de Calcutá, eu não pude deixar de sentir que uma larga parte da “grande persona reclusa” foi deliberadamente cultivada para somar-se ao misticismo e ao poder que a acompanhava.
 
Era um pacto faustiano e cada grande artista que selou esse acordo pagou o preço com a qualidade da arte.
 
Às vezes me pego comparando Ray a Picasso.
 
Ambos eram homens jovens com um certo senso de valor próprio e uma fé em seus destinos. Ambos se viraram sozinhos quando o guarda-chuva dos grandes predecessores voou para longe. No caso de Ray, Rabindranath Tagore deixou para trás uma enorme e profunda pegada, e os artistas das duas gerações seguintes tropeçaram conforme tentavam sair deste fosso.
 
Para Ray, seguir Tagore era uma perda de tempo. Como escritor, ou mesmo como pintor (Tagore começou a pintar quando estava com quase setenta anos e produziu algumas imagens incríveis), na Calcutá do final dos anos quarenta, escorregar pelo penhasco do legado tagoreano era um perigo real. Ray teve que levar sua genialidade para outro plano e o cinema apresentou o espaço perfeito através do qual ele pôde deixar para trás a armadilha de sua enorme habilidade clássica, da linguagem e do desenho.
 
Tanto Ray como Picasso deram o salto para o desconhecido e se tornaram famosos por isso. Cinquenta anos depois de Picasso ter pintado Les Demoiselles D’Avignon (1907), a primeira pintura do século XX, Ray concluiu A canção da estrada (Pather Panchali, 1955). O filme se tornou o produto artístico que deu o pontapé inicial na vida recém independente da Índia como uma nação cultural moderna.
 
Como Picasso, Ray seguiu seu primeiro sucesso com energia prodigiosa se desenvolvendo sobre ele. Assim como o espanhol, Ray era muito habilidoso com as mãos e isso aparecia na obra. Mas, novamente, como Picasso, Ray não conseguia encontrar o suficiente em si mesmo para desviar daquela fórmula que lhe trouxe o sucesso inicial.
 
Picasso havia esgotado seu trabalho verdadeiramente excelente em torno de uma década após o início do cubismo. Dentro de nove anos após completar A canção da estrada, em 1955, Ray praticamente havia terminado todos os seus melhores trabalhos – os outros dois filmes da Trilogia de Apu[10], A pedra filosofal (Parash Pathar, 1958), A deusa (Devi, 1960), Três mulheres (Teen Kanya, 1963) e, finalmente, A esposa solitária. Picasso teve o brilho esquisito de Guernica (1937). Ray teve a brilhante explosão expressionista de As aventuras de Goopy e Bagha (Goopy Gyne Bagha Byne, 1969), depois da qual ele montou na força de seus trabalhos iniciais. E ainda que fosse uma grande força, pouquíssimo poder foi acrescentado nos dezesseis filmes seguintes.
 
Como Picasso, cada marca que Ray fazia começou a ser tratada como brilhante. As poucas vozes dissonantes se afogaram no coro que cantou “Gênio!” “Maestro!” “Grandioso!”, e aquele coro prejudicou seriamente a habilidade de Ray de ver o mundo ao seu redor. No final ele implicava com a menor das críticas, até mesmo de velhos amigos.
 
Para Picasso o fim chegou atrás de uma cerca elétrica em sua propriedade em Cote D’Azur. Ray, morando em Calcutá, tinha pouca necessidade da extravagancia de cercas elétricas – o muro invisível que foi construído ao seu redor tinha um grosso e efetivo revestimento de admiração por fora e uma camada igualmente densa de arrogância por dentro.
 
No dilúvio de mini-hagiografias que surgiriam nas semanas seguintes haveria muitas hilaridades. Mas, mesmo entre elas, uma realmente se destacaria por sua bajulação ignorante: Raghubir Singh, um homem mais conhecido por uma série banal de livros de mesa de fotografias, falaria sobre Ray como um “verdadeiro flaneur”. Isso era risível.
 
Parado em frente à sua casa na noite de sua morte, eu me lembro divagar sobre quando teria sido a última vez em que o Presidente havia caminhado em torno de seu reino incógnito. Julgando pelos filmes era possível ser perdoado por estimar que tenha sido nos anos sessenta – um quarto de século antes de sua morte.
 
Os portões se abriram para sair um carro. Os flashes brilharam e reluziram por um momento. Os portões se fecharam e o homem com a camisa branco-sujo voltou, agora diante de outro policial. Ele começou novamente seu mantra. Talvez ele realmente conhecesse Ray, eu pensei. Não, ele teria enviado uma mensagem. Alguém saindo o teria reconhecido. Mesmo através da crosta de auto-importância que as pessoas adquirem quando organizam um recém-falecido, alguém o teria chamado para subir...mesmo assim, talvez não. Esse homem não era um personagem de um filme de Ray. Havia uma qualidade perigosamente enjoativa nele, algo obsessivo, um homem pedindo por um tapa, violência, qualquer coisa para chamar atenção, algum contato humano. Um figurante fora do filme de outra pessoa que vagava pelo cenário errado.
 

4. O set
 
A primeira vez que eu vi o grande homem foi num set no estúdio Indrapuri. Eu tinha recém-terminado a escola e decidi que queria ser um cineasta depois de assistir Profissão: Repórter (Professione: reporter / The Passenger, 1975), de Antonioni. Logo em seguida eu consegui assistir um ou dois filmes da Trilogia de Apu com o assombro boquiaberto que eles merecem de qualquer um com dezessete anos.
 
Na época eu tinha uma ideia boba de que minha ambição fosse singular entre as pessoas da minha idade. Na verdade, eu era parte de um fenômeno muito comum. Na época de Ray, as ambições de carreira dos adolescentes com inclinação à arte variavam de querer ser um poeta como Rabindranath Tagore a querer ser um pintor como Rabindranath Tagore. Quando eu comecei a faculdade isso tinha mudado. Em grande medida por causa do próprio Ray, um terço dos meninos e meninas de Calcutá agora queria se tornar autor de filmes.
 
Ray estava, na época, filmando Os jogadores de fracasso (Shatranj Ke Khilari, 1977). O filme, sobre dois nobres de Lucknow que seguem jogando xadrez enquanto seu reino, Oúde, é dominado pelos ingleses, tinha atraído muito a atenção da imprensa. Era o primeiro filme de Ray em outra língua que não o bengali (era em hindustâni e em inglês). Richard Attenborough tinha vindo de Londres para interpretar o General Outram, que destituiu o Nawab Wajid Ali Shah. O Nawab de Oúde era interpretado por Amjad Khan, mais conhecido então como o cara malvado do mais recente "maior blockbuster de todos os tempos" do cinema de Bombaim, Cinzas (Sholay, 1975). Outras estrelas do filme ainda incluíam Shabana Azmi, uma das mais conhecidas atrizes do cinema de arte “New Wave” dos anos setenta.
 
Eu conhecia alguém que conhecia alguém que conhecia o captador de som e consegui entrar no Indrapuri para assistir a filmagem.
 
Indrapuri é um dos cinco estúdios em Tollygunj, o estúdio-para de Calcutá, o bairro de estúdios. Da primeira vez que você entrava lá parecia que você estava entrando num castelo decrépito. Grandes portões de aço enferrujado se abriam para te levar ao primeiro pátio, onde ficavam estacionados os carros. Então, após ter sua procedência rigorosamente verificada, você passava por outro portão e ia para o complexo onde ficavam os grandes estúdios de som, que pareciam hangares. Fora dos estúdios as pessoas se amontoavam – extras, técnicos, diaristas[11] e vários outros que compõem o pequeno exército que sustenta uma grande produção.
 
Nos estúdios, que estavam vazios aquele dia, marceneiros residentes e pintores – alguns dos melhores cenógrafos do mundo – trabalhavam criando pedaços da Lucknow do século XIX em compensado, gesso e argila. Do estúdio em que a equipe estava filmando brotava uma pequena multidão em volta das portas – os pescoços como gruas sobre os ombros uns dos outros, espiando o cavernoso interior para tentar ver a ação, mesmo que de relance.
 
Embora eu não soubesse, eu tinha ido ver Ray filmar o que muitos consideram ter sido seu último bom filme.
 
O ano era 1977. O antigo rival de Ray, Ghatak, tinha morrido no ano anterior, o álcool finalmente cobrando seu preço. Ele morreu tendo feito apenas cinco longas-metragens e alguns projetos incompletos ou não realizados. Levaria ainda uma década até as pessoas começarem a perceber o que tinham perdido com a morte precoce de Ghatak.[12]
 
Em 1977 Calcutá já não era a única cidade que produzia cinema sério. A “Nova Onda"[13] de filmes de arte estava firmemente estabelecida em Bombaim e ao Sul da Índia. Em Bengala, as violentas revoltas dos anos sessenta e meados de setenta – o movimento de guerrilha maoísta dos naxalitas e a guerra de Bangladesh, seguida do draconiano Estado de Emergência de Indira Gandhi – tinham deixado cicatrizes. O prejuízo foi tanto econômico quanto espiritual. A Frente de Esquerda liderada pelo PCI(M)[14] tinha acabado de assumir o poder e ficaria no governo por um período de 20 anos [34 anos, na verdade], uma jornada ainda longe de acabar.
 
A Frente de Esquerda não poderia, por ela mesma, ter criado o empobrecimento intelectual de Bengala. Mas, assim como fizeram com a pobreza econômica que herdaram, foi algo que eles usaram para seus próprios fins.
 
Ao longo deste período houve um velado, mas constante ataque à base das tradições, histórias e ideias que não se encaixavam na visão dos Esquerdistas de um futuro “revolucionário”. Ao mesmo tempo, enquanto as paredes eram cobertas com a foice e o martelo e retratos de Marx, Lenin e Stálin, empresas e indústrias foram seduzidas de volta para o Estado que elas tinham abandonado nos anos sessenta.
 
A nova cultura bengali que emergia deste contexto tinha pouco a ver com o etos de Tagore ou os filmes de Ray. Por sua vez, o próprio trabalho de Ray jamais seria capaz de capturar a crueldade e esterilidade de espírito que um esquartejamento da memória cultural provoca. Para encontrar um reflexo dessa tragédia no cinema, as pessoas teriam que retornar aos filmes de Ghatak – nos quais o futuro estava, surpreendentemente, previsto.
 
Os filmes bengalis dos anos oitenta padeciam da pobreza intelectual do ambiente de onde eles vieram. Os novos farsantes produziam filmes com regularidade, mas nada emergia de suas câmeras que pudesse rivalizar com o melhor de Ray ou Ghatak. Por fora, esses “jovens turcos” de meia idade assumiam posturas radicais, mas a essência e o espírito estavam ausentes.
 
Politicamente, Ray sempre foi considerado um liberal moderado. Seus filmes raramente faziam afirmações abertamente políticas e, quando faziam, elas eram aguadas e extremamente ingênuas. Ghatak tinha rompido com o Partido Comunista nos anos cinquenta e o establishment esquerdista continuava incomodado com seu legado. Seus ataques ferozes contra qualquer impostura, viesse ela da Direita ou de seus velhos camaradas de Esquerda, continuavam a ser, para muitos, difíceis de perdoar ou esquecer.
 
Os "jovens turcos” dos anos oitenta se mostrariam muito mais palatáveis para o governo. Eles aderiam na íntegra ao jargão exigido dos realizadores de esquerda comprometidos, mas não havia nada realmente perturbador ou desafiador nem na forma, nem no conteúdo de seus filmes mornamente concebidos. O establishment de esquerda não tinha objeções a fazer. A Direita, expandindo seu poder pelo país, tampouco se sentia particularmente incomodada por eles.
 
Nos idos de 1977, Ray, como De Gaulle, já não era de direita, nem de esquerda. Ele estava “acima” – às voltas carregando o bebê da fama. Enquanto Ghatak tinha passado os anos entre seus filmes ensinando jovens realizadores, Ray era conhecido por manter distância de outros diretores. Ele os considerava como estando abaixo dele ou como competidores, frequentemente ambas as coisas. E quando quer que ele imaginasse qualquer risco às suas ambições ele também tinha o poder de dar uma pausa nas carreiras dos outros.
 
Anos mais tarde, numa festa, eu entrei numa conversa com um diretor bem conhecido que não era de Calcutá. Eu sabia que ele tinha tido dificuldades durante os anos setenta a despeito de seu considerável talento. Além do talento, eu conhecia esse homem por sua formidável erudição – ele normalmente andava com um grande porrete intelectual, mas falava com suavidade[15]. Estávamos falando sobre Tagore, Ray e a insularidade bengali em geral quando, com súbitas lágrimas nos olhos, ele se voltou contra mim: “Você sabia que o seu Sr. Ray me impediu de conseguir qualquer dinheiro para o meu filme por sete longos anos? Tudo que ele precisava ter feito era ficar quieto, não fazer nenhuma objeção. Mas, porque eu era um discípulo de Ritwik, porque como estudante eu uma vez critiquei Ray por escrito, ele fazia correr a ideia de que eu não sabia fazer filmes. E pronto. Todas as portas se fechavam, no que diz respeito a financiamento do governo. Esse foi o seu grande Sr. Ray.”
 
Ele não era o meu Sr. Ray e era uma alegação completamente crível. Ao longo dos anos, conforme eu me envolvia mais e mais com cinema, eu ia ouvindo tanto sobre este lado de Ray que eu não conseguia rejeitar muito do que ouvia atribuindo tais relatos à simples inveja. Mas no meu primeiro dia dentro dos estúdios Indrapuri eu não sabia nada disso – eu estava entrando no circo mágico da realização cinematográfica e eu não tinha noção da sujeira e tristeza que jaziam atrás da tenda iluminada.
 
Dentro do estúdio, mesmo num dia quente, o impacto do calor adicional das luzes era um choque. A tinta dos biombos do escritório do General Outram recendia um cheiro que lembrava os pandais[16] do Durga Puja. De fato, a coisa toda tinha um aspecto não tanto de um circo, mas de uma cerimônia religiosa.
 
Tinha alguns deuses menores – Richard Attenborough com um chapéu de pluma, os igualmente belos Victor Banerjee e Tom Alter, suas belezas reverberando uma à outra como um rally entre Sampras e Agassi, a presença invisível de Shabana Azmi, Sanjeev Kumar e Amjad Khan emanando dos camarins. Mas minha maior memória é de que apenas uma pessoa importava naquele set.
 
Não importa onde você estivesse, não importa quão lotado estivesse o recinto, você sempre podia se situar buscando aquela cabeça aristocrática flutuando como um pico do Himalaia sobre nuvens tempestuosas. O caos controlado se revolvia em torno do homem que eles chamavam de Chhawphut – “Sixfoot”[17]. Ray se elevava vinte centímetros acima de qualquer um no set e a loucura reinante nunca parecia passar da altura de seus ombros. Ele era o ponto de apoio no qual o astral do lugar se equilibrava.
 
Se ele estivesse quieto todo mundo falava suavemente. Se ele desse um comando, grupos de homens suados corriam às ordens, movendo a câmera, estendendo trilhos, posicionando as luzes. O próprio Ray oscilava entre a calmaria e uma energia contundente. Era folclórico, no estúdio, que ele fazia tudo sozinho, e dava pra ver que fazia mesmo. Ele se agachava junto a Attenborough e checava se estava tudo bem, ele se alçava acima de Alter e Banerjee, dois homens altos, e lhes dava instruções, ele gritava para um iluminador mudar o facho de luz numa parede, voltava e movia um peso de papel na mesa de Attenborough dois centímetros. Então ele se esgueirava agilmente entre duas cadeiras e ia para a câmera. Ele se sentava, se enrolava em volta do velho monstro inflado, e colava seus olhos no visor.
 
“Estou pronto”, anunciou, numa voz feita para comandar, não demasiado alta, mas nítida o suficiente para atravessar o burburinho. Era como se ele gentilmente empurrasse uma peça de dominó. Uma série de assistentes passava a palavra desde o centro do universo até bem pra lá das portas do ambiente sonoro.
 
“Okay. Gravando. Silêncio por favor.” Outra onda de “silêncio”, a palavra se transformando do inglês lacônico de Ray pela hierarquia abaixo, acabando num subalterno “SAAILAINSH!” sob o sol a pino do complexo, congelando samosas na boca entreaberta dos extras, copos de chá escaldando os lábios dos técnicos no meio do gole.
 

5. A sala de cinema de arte
 
O dia em que Ray morreu foi um típico dia de abril em Calcutá. Quente, luz difusa vindo de um céu levemente nublado, abafado. O tipo de dia no qual as pessoas detestam filmar.
 
O corpo tinha sido levado para o cinema de Nandan e colocado sob uma shamiana[18] erigida na área descoberta, na entrada.
 
A sala de cinema é a peça central do complexo de filmes de arte construído pelo governo comunista. Concluído em 1984, foi batizado por Ray e a logo também foi desenhada por ele. Quando foi visto a primeira vez, Nandan foi memorável e precisamente descrita por um engraçadinho como um “espartilho stalinista-vitoriano”. Embora não tão hostil quanto alguns dos prédios erguidos pelo governo da Frente de Esquerda, o formato indigesto de Nandan segue sendo um símbolo apropriado para a política cultural oficial – pomposa por fora, precária e vazia por dentro, e tudo mortalmente sem imaginação, de modo geral.
 
Na época em que a sala foi construída, Ray, inobstante sua “superioridade”, tinha se tornado um mascote do governo. Em 1955, ele tinha conseguido terminar A canção da estrada por causa de uma intervenção de B. C. Roy, na época Primeiro-Ministro de Estado pelo Congresso[19]. Roy tinha determinado ao Departamento de Propaganda Doméstica que financiasse o filme depois de ver algumas sequencias. O Congresso tentou explorar isso ao máximo. O Partido Comunista da Índia (Marxista), então líder da oposição, foi um crítico feroz deste diretor “burguês” e seu humanismo liberal “reacionário”.
 
Mas aqueles dias foram rapidamente esquecidos assim que o CPI(M) chegou ao poder em 1977. O Cinema era a arte revolucionário e Ray ainda era o único indiano com lugar entre os 10 maiores diretores do mundo, próximo a nomes como Welles e Renoir. O CPI(M) não deixaria este rubi, esta joia, cair de sua coroa cultural. Ray não apenas criou a logo para a sala de cinema de arte, ele também a inaugurou.
 
Vendo Nandan àquele dia, não pude evitar sentir que o prédio tinha sido concebido não para o “cinema de arte”, mas especificamente para esse grande velório público.
 
A cena certamente não era de um dos filmes de Ray. Uma longa cobra de pessoas se enfileiravam para passar pelas grades de bambu que tinham surgido da noite pro dia. Às oito da manhã as filas já se estendiam, esturricadas por meia milha em ambas as direções a partir dos portões. O trânsito já sofria de hemorragia – mesmo para os padrões de Calcutá, uma completa bagunça.
 
Nandan era um lugar transformado. Os cantos do Corset normalmente eram reservados a jovens amantes para seus encontros furtivos. Naquele dia, cada canto e fresta estava abarrotado de policiais. O corrimão junto ao fosso, normalmente adornado por críticos de cinema geriátricos, rangiam àquela manhã sob o peso de donas de casa e grupos escolares.
 
Eu conseguia perceber uma mudança gradual na expressão facial dependendo de onde você estivesse na fila. Mais pra trás, havia resignação e tédio. As pessoas tinham o aspecto de quando estão em fila para votar na época de eleições, como se estivessem ali para cumprir um dever inevitável. Conforme a fila se aproximava do corpo, havia uma mistura de perplexidade e assombro no esticar dos pescoços. Alguém eventualmente juntava as mãos numa namaskar, alguém erguia uma criança para que ela testemunhasse um fragmento da História, aqui e ali alguém enxugava uma lágrima.
 
Na fila que se afastava do corpo havia uma sensação de alívio, quase de triunfo. É uma expressão da qual eu logo me lembrei, dos meus dias de escola, quando nos levaram para ver um pedaço de rocha lunar trazido pelos astronautas da Apollo. Na saída, eu lembro de ter ganhado um broche que dizia EU VI A ROCHA LUNAR.
 

6. A cama da Charulata
 
Um conhecido, um designer de Harianá não muito dado a sentimentalismos, formulou de maneira sucinta poucas semanas antes da morte. “Satyajit Ray”, ele disse, “é uma cidade em torno da qual os bengaleses construíram sua favela intelectual”.
 
Talvez. Satyajitnagar[20], uma nova e, a princípio, menor cidade irmã de Tagorenagar, rapidamente superando a cidade mais velha em crescimento, miséria e planejamento desastroso é uma imagem triste, mas que faz sentido.
 
Ray saiu de Calcutá em 1940 com dezenove anos para entrar na universidade de Tagore, em Santiniketan. Aproximadamente um ano depois, Tagore faleceu. Na época, a morte de Rabindranath foi considerada como o ponto final de um grande período “dourado”, o fim do reinado cultural bengali sobre o resto da Índia que começou em meados do século XIX, com o que se chamou de “Renascimento bengali”.
 
Calcutá também parou quando Tagore morreu. O cortejo fúnebre se estendeu por várias milhas e o luto pela passagem deste velho homem alcançou muitos diferentes cantos do país. Mesmo fora das elegias, havia um senso real de ter perdido alguém que nunca poderia ser substituído, especialmente em Bengala.
 
Mas, após uns vinte anos desta morte impactante, algo estranho aconteceria na mentalidade coletiva. Uma sociedade obcecada com sua própria cultura precisaria de outro ícone e o manto de Tagore seria retirado do museu da memória. No curso de uma década, ele seria posto sobre um par de ombros relutantes. Os ombros pertenciam não a um escritor, nem a um poeta ou a um pintor, mas a um cineasta.
 
Os melhores filmes de Ray vieram ou de romances e contos de Tagore, ou estavam fortemente informados pela visão de mundo que Tagore representava. Havia poucas figuras que podiam inspirar humildade em Ray. Havia Beethoven e Mozart, havia um punhado de pintores renascentistas italianos, mas o primeiro, o único indiano e a única figura de tempos recentes, era Rabindranath. Aparentemente, quando quer que alguém fosse tolo o suficiente para compará-lo ao seu herói, Ray mostrava profunda irritação. Mas longe do alcance de sua audição, a cultura bengali continuava a tratá-lo como o sucessor de Tagore.
 
Em algum momento no começo dos anos sessenta Satyajit Ray começou a cumprir uma pena que foi inicialmente imposta pela aclamação da crítica internacional e então aplicada pela adulação local. Ele cumpriu esta pena até o dia de sua morte e ainda por muito tempo depois. Numa parte diferente da mesma cela de celuloide, cumprindo simultaneamente um tipo bem diferente de pena, estava Ritwik Ghatak.
 
Entre estas duas sentenças repousa a história da morte de uma cultura.
 
O menino de Calceta, Equador, aparece de novo. “Quem era esse outro cara? O que ele era do Presidente? Por que você fica trazendo-o ao assunto?”
 
Eles eram ambos contadores de histórias. Um ficou famoso porque contava histórias de um jeito simples. O outro sabia que as histórias da sua terra não eram simples. Ele tentou descobrir outros jeitos de contá-las, e às vezes conseguiu.
 
Aquele que ficou mundialmente famoso construiu imagens nítidas de histórias de outras pessoas – ele era um grande ilustrador. O outro, cujas histórias poucas pessoas entendiam, a princípio, era diferente. Ele fez imagens para as quais era necessário olhar de novo e de novo, antes de compreender a história. Você tinha que ser paciente e as pessoas não eram pacientes – elas tinham criado um apreço por campeões mundiais. Elas estavam entediadas com o lar, elas queriam o mundo. Elas não estavam dispostas a dar maior atenção a alguém que não conseguiu mostrar suas histórias mundo afora, em Veneza, em Berlim, em resorts de praia no Sul da França. Elas se esqueceram que seu primeiro campeão, o poeta, ficou mundialmente famoso porque ele não se importava com o mundo.
 
A história é que ambos os narradores perderam suas histórias. Ambos morreram de insuficiência cardíaca. Um porque já não encontrava as histórias simples para mover seu coração. O outro porque seu coração se movia muito e ninguém queria escutar esse movimento – era muito doloroso e complicado.
 
“O que?”, diz o garoto, mas vamos deixá-lo por um instante porque há uma outra história.
 
Sentado no Olympia, alguns dias depois da morte, um amigo, um cineasta trabalhando em Tollygunj[21], me fez uma pergunta.
 
“Você se lembra da cama em A esposa solitária?”
 
Baseado num romance de Tagore, A esposa solitária é, para muitos, o melhor filme de Ray. Passado em 1879 ele é, numa camada, a história de um triângulo amoroso entre um intelectual abastado, sua jovem esposa e seu primo. Em outra camada, é uma complexa peça de câmara, um retrato em miniatura de um período de grandes rupturas. É também um filme incrível pela forma como cada elemento da arte cinematográfica é reunido para compor um trabalho sobre o tempo, que desafia o melhor da música.
 
Ray estava trabalhando no auge absoluto dos seus poderes, assim como os outros dois homens que tinham feito com ele a jornada de serem iniciantes até se tornarem mestres. Subrata Mitra filmava o que viria a ser seu penúltimo filme para Ray antes deles romperem relações. Sua contribuição foi de extrema bravura e Ray nunca mais conseguiria esta sofisticada dança entre a câmera e seus atores. Bansi Chandragupta, o diretor de arte, também se superou em capturar os detalhes do período.
 
Alguns dos melhores momentos do filme têm lugar entre a cama, a atriz Madhabi Mukherjee (como a jovem esposa Charulata) e a câmera de Subrata Mitra fazendo travelling. A própria cama é o tipo de pequeno porta aviões em torno da qual todos exceto os mais pobres bengalis constroem suas vidas até hoje. Claro que eu me lembrava da cama.
 
“Você sabia que aquela cama ainda está em uso em Tollygunje?”
 
“Sério?”
 
“Sim, toda cena de estupro em cada filme B ou novela é filmada naquela cama. Não estou brincando. Chega o dia de filmar a cena e o diretor grita: ‘Aluguem a cama da Charulata!’ Se outra equipe estiver fazendo seu estupro nela, eles adiam e filmam outra coisa.”
 
Era exatamente o tipo de ironia que Ritwik Ghatak teria apreciado. Para mim, a cama simbolizava o fato de que Ray tinha morrido num mundo que você ainda podia reconhecer nos filmes de Ghatak de trinta anos atrás. Um mundo a galáxias de distância do pequeno universo de Ray.
 

7. Gulliver
 
Em Nandan, o próprio corpo parecia que tinha vindo de outro planeta. Era um corpo comprido, com um metro e noventa e três centímetros, para ser preciso, e parecia amarrado por todas as flores e guirlandas. Não pude evitar pensar em Gulliver trazido à praia, com um enxame de minúsculos liliputianos cochichando malevolamente em torno dele.
 
A um lado do corpo estava uma pirâmide de fotógrafos, em número ainda maior do que na noite anterior. Eles escalavam e se amontoavam uns sobre os outros, sucumbindo por alguns instantes, e irrompendo de novo numa horda faminta e barulhenta quando outra celebridade aparecia com uma coroa de flores. Na ponta dos pés sobre cadeiras, pendurados nos suportes da shamiana, acotovelando as lentes uns dos outros, seus rostos ambiciosos pareciam ter saídos de um filme de Fellini.
 
Do outro lado estavam parentes e pessoas de sua equipe de filmagem tentando lidar com o dilúvio de flores, repondo o gelo sob o corpo, recompondo-se na sala VIP. Tinha mais políticos ali do que você encontraria num desfile do Dia da Independência. E mais policiais do que num clássico no Eden Gardens[22]. Independente do tipo de polícia, quanto mais alta a patente, mais perto do corpo eles estavam. Eles pareciam oficiosos e em alerta. “Para quê?”, eu pensei. “Tarde demais, meu caro Lestrade!”[23]
 
Os policiais estavam tentando ser gentis e eficientes, mas tudo o que estavam conseguindo era criar a sensação de que era, na verdade, um de seus próprios comissários que estava sendo velado com honras e você estava ali apenas por um genuíno luto.
 
Fora desse tipo de ocasião, a polícia em Bengala tinha uma tarefa difícil e nem sempre a cumpria bem.
 
Desde que o CPI(M) tinha chegado ao poder, bandidos até então associados ao partido do Congresso tinham desertado, inchando seus outrora disciplinados quadros. A Frente de Esquerda não se importou. Era melhor ter os bagunceiros incomodando em casa do que o contrário. Além disso, eles eram úteis, não apenas para manter a lealdade no período eleitoral, como no dia a dia. No começo essa política funcionou.
 
Ao longo dos anos oitenta, “clubes de meninos” se tornaram uma alternativa à polícia, um outro braço, através do qual a Frente de Esquerda conseguia manter o controle local. De cada cidadezinha em Bengala, de cada favela nos recônditos de Calcutá, brotavam pequenos casebres com teto de zinco. Estes casebres viraram centros onde tudo, de conflitos conjugais a campanhas para levantar fundos para os rituais do Puja, era decidido. A polícia tinha ordens de fazer vista grossa, de só intervir nos crimes mais sérios cometidos pelos meninos do Partido. "Se houver qualquer problema, nós os puniremos”, era a frase. Mas já em 1992 uma geração nova de meninos tinha crescido nessa “cultura de clubes” e eles não eram fáceis de controlar.
 
Não eram os naxalitas idealistas usando a violência para a revolução. E nem eram os valentões locais dos anos setenta, que geriam cineclubes e barzinhos lado a lado, que tinham a reputação de apreciar os aspectos mais refinados dos filmes de Polanski e do futebol de Pelé. Esses eram jovens que podiam estuprar, matar e mutilar por força do hábito. Eles representavam uma outra Bengala, uma Bengala que não estava nem aí para Tagore ou para um certo Satyajit Ray.
 
Esta nova Bengala também prestaria condolências mais tarde, naquele dia, mas em Nandan naquela manhã, os últimos ritos para a velha Bengala estavam firmemente nas mãos das autoridades.
 
Eu comecei um jogo na minha cabeça. Comecei a tentar encontrar sequências de diferentes cineastas na multidão ao meu redor.
 
Khaki e Khadi[24], marrom e límpido branco, misturando-se, juntando-se e apartando-se numa valsa constante ao redor do corpo. Coloque uma fumaça, uma fuga de Chopin, acrescente um cavalo branco e um senhor varrendo garrafas quebradas, e você terá uma cena de Cinzas e diamantes (Popiól i diament, 1958), de Wajda.
 
No vestiário, atrás da shamiana, o ritmo era mais lento, mas não menos febril. Atores, diretores, burocratas do cinema, mais parentes e políticos. Havia algumas câmeras de vídeo e gravadores com “grandes nomes” se revezando em frente aos microfones. Alguns estavam genuinamente relutantes, alguns estavam articulando com dificuldade por causa do luto, mas muitos estavam bastante entusiasmados.
 
Um jovem jornalista estava num canto imitando as várias celebridades.
 
Um conhecido diretor –
 
“Goutambabu, diga algo, por favor!”
 
Ki aar bolbo. Ekta Adhyay Shesh.
 
“Em inglês, por favor, Goutambabu, é para a rede de televisão nacional!”
 
“Oh. O que posso dizer? É o Fim de Uma Era”.
 
Um velho e famoso ator –
 
“Por favor, acredite, a esta altura eu não tenho nada a dizer, as palavras me escapam…”
 
Meia hora depois, quando ele termina é só porque a fita acabou.
 
Outro diretor famoso –
 
“Uma vez eu e Manikbabu estávamos juntos em Berlim e o filho dele entrou no meu taxi…”
 
Um tracking de um para o outro. O discreto charme da comunidade cinematográfica, de Luis Buñuel.
 
Um tracking saindo da entrada lateral do cinema até a ponte sobre o brilhante fosso azul. Um líder do Congresso com expressão desafiadora passando apressado, Conde Drácula num alinhado dhoti-kurta, seu séquito de vampiros menores vindo atrás, cada um carregando coroas de flores com slogans. Buddhadeb Bhattacharya, o Ministro da Informação e Cultura do governo da Frente de Esquerda, assiste a oposição ocupar a fila. Há um ar de gênio em sua bela face – um Marlon Brando suavizado. Ele saúda os líderes do Congresso e lhes faz uma oferta que eles não podem recusar. Suavemente, com candura, ele diz: “Estamos planejando prosseguir para a cremação às seis da tarde – e amanhã a reunião de condolências, todos nós juntos…”
 
De volta lá pra fora, uma cena saída diretamente de um filme de Ghatak: Dois zeladores de Nandan observam as filas a perder de vista em todas as direções. Um deles diz: “Pena que somos tão burros. Se tivéssemos pensado nisso ontem. Algumas centenas de rupias em flores… Já pensou o dinheiro que faríamos?”
 

8. O fim
 
Atrás de Nandan, os caminhões estavam sendo preparados. Aquele que carregaria o corpo ao crematório tinha seu focinho de Tata-Mercedes[25] coberto por um escudo de flores brancas. Um homem enfileirava guirlandas amarelas no para-brisa. Parecia uma noiva vaidosa escondida atrás dos enfeites antes de seu casamento.
 
Na lateral do caminhão um emblema pendurado, letras brancas sobre preto, duas palavras em bengali, que poderiam ser traduzidas como “Satyajit é Para Sempre” ou “Satyajit pertence à Eternidade”. De qualquer forma, parecia uma tabuleta anunciando apólices de seguro, ou talvez diamantes.
 
Uma estátua de Tagore voltou as costas aos caminhões e mirou o pôr-do-sol a oeste. Eu me perguntei o que ele teria pensado de Ray e do circo da sua morte.
 
Como eu não podia perguntar a ele, perguntei a mim mesmo – o que se havia perdido com a passagem deste homem?
 
Para mim havia um sentimento de perder uma bonita e familiar caligrafia, a perda de um jeito de formar as letras, palavras, passagens e, a despeito de tudo, do senso de gentileza, da graça que o movimento daquela mão representava. Eu nunca tinha querido imitar aquela caligrafia, mas minha caneta estava livre para encontrar sua própria dança, em parte porque alguém, este homem, marcou o papel da maneira como o fez. Por isto eu era grato.
 
Alguns dias depois um venerável crítico de Bombaim terminaria sua elogia dizendo “Obrigado, Mestre, por tudo.” Eu poderia apenas dizer: “Obrigado, por seu melhor.”
 
Um escritor, começando a ser reconhecido por seus romances em inglês, tinha dito a amigos que “Ray me deixa orgulhoso de ser um bengali. Ele me deixa orgulhoso de ser um indiano.” Como eu não sou um bengali, então a primeira não era uma cruz que eu precisava carregar. Quanto a ser um calcutaense, ou um indiano, a memória de Ray nunca seria proteção contra o desconforto que eu sentia por minha cidade e minha pátria. Até o final de 1992 ambas seriam subjugadas por bandidos de rua durante algumas semanas. O primeiro indireto e hilário presságio disso estaria nas primeiras páginas de jornais no dia seguinte.
 
Daqui a pouco o corpo de Satyajit Ray seria posto no caminhão. A polícia entraria em ação abrindo um caminho entre as pessoas que agora se espalhavam pelas ruas. O cortejo sairia da Nandan e rumaria ao sul, para o crematório de Keoratolla, perto de Kalighat. As multidões de pessoas seguiriam os veículos oficiais, cantando canções de Tagore, canções dos filmes de Ray, orações.
 
Quando o corpo de Tagore foi levado ao ghat[26] de cremação de Nimtolla, as pessoas tentaram arrancar um pelo de sua barba para guardar como relíquia. Um jovem estudante, vindo de Santiniketan para prestar sua última homenagem, tinha tido sua carteira roubada. Ray contou como ele teve que andar todo o caminho até a casa de sua mãe porque o ladrão tinha sumido com o dinheiro da passagem.
 
Tagore morreu em tempos mais gentis. Aquela noite no crematório, um bandido bêbado chamado Sridhar abriria caminho através do cordão policial para ficar junto do corpo de Ray. Quando pediram pra ele sair, ele empurrou Buddhadeb Bhattacharya, Ministro da Cultura e segundo no comando do governo. Bhattacharya gritou para que os policiais fizessem algo. Enquanto Sridhar era arrastado, ele gritou “Saha-da! Saha-da!”, apelando para que o comissário de polícia de Calcutá B. K. Saha o ajudasse. Depois se descobriria que Sridhar era próximo do alto oficialato policial da cidade. O comissário de polícia foi exonerado.
 
Eu não vi isso acontecer, eu só li a respeito no jornal no dia seguinte.
 
Enquanto se faziam as preparações para mover o corpo de Nandan, eu fui embora. Eu sabia que o que quer que acontecesse, Ray iria ficar arrepiado se ele visse o filme B que seu funeral tinha se tornado. E se ele encontrasse Ritwik Ghatak, ele não o evitaria, eu sei que ele preferiria a companhia de Ritwik do que voltar pra isso.
 
Eu rumei norte para Park Street e o Olympia. O garoto de Calceta me seguiu, fazendo perguntas. Eu o levei comigo. Eu não tinha escrúpulos quanto a levar crianças pro bar.
 

Ruchir Joshi, dezembro de 1996.
 

 
[1] O cineclubista provavelmente está se referindo às obras de Ghatak que hoje são chamadas da “Trilogia de Partição”: Meghe Dhaka Tara (A estrela encoberta de nuvens, 1960), Komal Gandhar (Uma nota suave em uma escala aguda, 1961) e Subarnarekha (A linha dourada, finalizado em 1962 e lançado em 1965). Os filmes são interligados tematicamente em suas tentativas de lidar com o trauma da Partição da Índia do Paquistão em 1947, realizada como uma condição do governo do Reino Unido ao conceder a independência da Índia no mesmo ano.
 
[2] Destilado feito à base de sorgo e trigo e consumido em Bengala Ocidental.
 
[3] O autor provavelmente faz referência ao período de seis meses em 1950 durante o qual Ray morou em Londres e assistiu diversos clássicos do cinema mundial, o mais impactante para ele sendo o clássico do neorrealismo italiano Ladrões de bicicleta (Ladri di biciclette, 1948), de Vittorio De Sica. Isso foi um ano após Ray ter ajudado o grande diretor francês Jean Renoir em sua busca para locações nos arredores de Calcutá para seu filme O rio sagrado (The River, 1951).
 
[4] A referência em inglês (“A cidade da noite pavorosa”, em tradução livre) é o nome de um conto de 1885, ambientado em Calcutá, do escritor inglês Rudyard Kipling, que nasceu na Índia Britânica em 1865. O conto pode ser lido no inglês original, junto a outros contos de Kipling, através do link: The Project Gutenberg eBook of The City of Dreadful Night
 
[5] Rabindranath Tagore (1861-1941) foi um renomado escritor, artista e reformador cultural de Calcutá e o primeiro não europeu a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1913.
 
[6] Plural de boxwallah, usualmente também grafado boxwallahs, que em Bengali, especificamente em Calcutá, adquire dois sentidos bastante diversos. Em tempos pré-coloniais boxwallah era como se denominavam os mascates, vendedores ambulantes; no tempo pós-colonial passa a designar, não sem ironia, uma nova elite indiana composta por executivos a serviço das companhias britânicas. O autor os nomeia “rajás” porque estes constituem uma classe efetivamente privilegiada, criadora de uma cultura opulenta, distinta da identidade bengali em sua arquitetura, moda e linguagem. Rudyard Kipling, em sua obra, registra o termo em seu sentido pré-colonial; mas Satyajit Ray faz no filme Company Limited (Seemabaddha, 1971) um retrato da elite pós-colonial que ele mesmo irá considerar “o filme definitivo sobre os boxwallahs”.
 
[7] Conjunto de calças de caimento solto (dhoti) sobrepostas por uma longa bata (kurta).
 
[8] Uma saudação respeitosa na tradição hindu.
 
[9] Na língua bengali, “Vai, vai, saia daqui!”
 
[10] Os três filmes da Trilogia de Apu (personagem principal da série, que o segue de infância até maturidade) são A canção da estrada, O invencível (Aparajito, 1956) e O mundo de Apu (Apur sansar, 1959). Além das obras citadas por Joshi, os filmes notáveis de Ray de sua primeira década como cineasta incluem A sala de música (Jalsaghar, 1958) e A grande cidade (Mahanagar, 1963).
 
[11] O autor usa, em inglês, “labourers”, referindo-se aos trabalhadores sem qualificação específica que são contratados e pagos pelas diárias de trabalho.
 
[12] A filmografia completa de Ghatak conta com oito longas-metragens, porém, alguns não foram lançados durante sua vida.
 
[13] Optamos por não traduzir a expressão, nesta segunda ocorrência, porque na primeira ocorrência ela está se referindo ao movimento, e nesta segunda ocorrência a referência mais imediata é à uma leva de filmes, embora a expressão seja usada evocando também o nome que se deu ao movimento, o que explica o uso de aspas também no original.
 
[14] "Partido Comunista da Índia (Marxista)” O nome oficial do partido inclui a designação “Marxista”, entre parênteses.
 
[15] O autor se refere à expressão do presidente estadunidense Theodore Roosevelt, remetendo-se a um provérbio da África Ocidental: “Fale com suavidade, mas carregue um grande porrete; você vai longe”. Essa frase se tornou sinônimo de uma determinada postura política de relações internacionais e domésticas.
 
[16] Estrutura provisória ou eventualmente permanente destinada a rituais religiosos.
 
[17] A expressão, no sistema imperial de medidas, corresponde no sistema métrico a 1,82 metros, mas é usada para se referir a qualquer pessoa que supere esta estatura.
 
[18] Tenda utilizada para cerimônias e festividades.
 
[19] O Congresso Nacional Indiano, também conhecido como Partido do Congresso ou simplesmente Congresso, é a mais antiga das organizações políticas ativas na Índia.
 
[20] O sufixo -nagar é utilizado para cidades ou vilas, do Sânscrito nagara.
 
[21] O texto original alterna as formas Tollygunj e Tollygunje.
 
[22] Estádio internacional de críquete em Calcutá. Inaugurado em 1854, é o mais antigo e segundo maior estádio de críquete da Índia.
 
[23] Uma referência ao Inspetor Lestrade, personagem policial de Arthur Conan Doyle que sempre pede a ajuda de Sherlock Holmes na resolução de casos criminais.
 
[24] Khaki é a cor do uniforme da polícia indiana. Khadi é uma vestimenta de algodão tecida manualmente, cujo uso e fabricação pelos indianos foi emblema do boicote aos produtos ingleses, promovido por Mahatma Gandhi. Tornou-se uma peça de indumentária de forte valor simbólico e de uso cerimonial.
 
[25] Tata Motors é uma tradicional fabricante de automóveis indiana que durante décadas produziu automóveis em parceria com a subsidiária da Mercedes-Benz na Índia.
 
[26] Lance de escadas que leva até a margem de um rio.
 

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