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A marca do assassino
(Koroshi no rakuin)
Seijun Suzuki
Japão, 1967, 91 min, 35 mm para DCP

 
Ao voltar para Tóquio de sua lua de mel, Goro Hanada (interpretado por Jo Shishido), o terceiro maior assassino de aluguel do Japão, que possui um fetiche por arroz branco, é contratado para um serviço por uma oculta organização criminosa. Ele executa a operação e no processo se depara com Misako Nakajo (Annu Mari), uma tétrica e atraente colecionadora de borboletas, que o contrata para um novo trabalho. O assassino falha quando uma borboleta pousa na mira de sua arma, e seu erro o condena a morte. A partir daí, trava-se uma caçada e disputa de poder entre Hanada e a organização - cujos membros mais perigosos contam com o malevolente "Número Um" (Koji Nanbara).
 
A marca do assassino é o filme mais cultuado de Seijun Suzuki. Foi o último de mais de 40 que dirigiu para o estúdio Nikkatsu - em sua grande maioria "filmes B" com produções rápidas e de baixos orçamentos - e também aquele que culminou em sua demissão do estúdio em 1968, resultando em uma carreira subsequente como cineasta independente. O filme, em preto e branco, com fortes toques de surrealismo, transitando livremente entre o tempo real e tempo psicológico, realismo urbano e pesadelo psicodélico, foi um fracasso de bilheteria em seu primeiro lançamento e foi taxado por muitos como "incompreensível". Porém, nas décadas seguintes, a crítica reavaliou A marca do assassino como uma grande obra subversiva, inclusive em sua alegoria sobre as relações de poder entre um artista e a indústria cinematográfica. O filme será apresentado no IMS em um novo DCP feito pelo Nikkatsu, após a morte de Suzuki aos 93 anos em fevereiro de 2017.
 

"A marca do assassino como filme noir"
 
O texto a seguir é uma tradução de trechos do ensaio Dark Visions of Film Noir: Seijun Suzuki's Branded to Kill, que foi originalmente escrito em inglês pelo professor de cinema Daisuke Miyao e publicado em 2007 no livro Japanese Cinema: Texts and Contexts, organizado por Alastair Phillips e Julian Stringer . A tradução para português foi realizada com o consentimento do autor. A escolha do autor de apresentar nomes de acordo com a tradição japonesa - sobrenome primeiro e nome depois - foi mantida.
 
O filme de Suzuki Seijun A marca do assassino - a história de um assassino de aluguel sendo demitido por uma organização criminosa - criou uma verdadeira controvérsia quando o Nikkatsu, um dos mais antigos estúdios de cinema no Japão, demitiu Suzuki, um de seus diretores contratados, dez meses após seu lançamento. No dia 25 de abril de 1968, Suzuki estava dirigindo a série de televisão Aisai-kunkonbanwa:aruketto [Boa noite, sr. marido devoto: Um duelo]. Ele recebeu um telefonema da secretária de Hori Kyu, o presidente de Nikkatsu, dizendo que o estúdio não pagaria o seu salário de abril.
 
É claro que A marca do assassino não foi um sucesso, nem de bilheteria nem de crítica. O jornal de cinema Kinema Junpo relatou que o lançamento do filme, em uma sessão dupla com Hana wo ku mushi (Um inseto que come flores, 1967), de Nishimura Shogoro, "resultou em menos de 2.000 espectadores na Asakusa e na Shinjuku e em torno de 500 espectadores na Yurakucho no segundo dia". De fato, Yamatoya Atsushi, um dos roteiristas de A marca, lembra que a sala do Nikkatsu na Shinjuku, onde o filme foi lançado originalmente, ficou meio vazia no dia do lançamento.
 
Mais do que isso, alguns críticos não ficaram nada entusiasmados com o filme. Por exemplo, Iijima Koichi escreveu no Eiga Geijutu, em agosto de 1967, que "a mulher compra um casaco de pele e só pensa em transar. O homem quer matar e sente saudades do cheiro de arroz cozinhando. Nós não podemos evitar de ficar confusos. Não vamos ao cinema para ficar confusos."
 
Mas, embora A marca não tenha tido grande êxito, a demissão de Suzuki do Nikkatsu ainda foi uma grande surpresa. Manifestações em massa acompanharam o processo legal do cineasta contra o estúdio em junho de 1968, de acordo com a clima político de rebelião da época. Diretores como Oshima Nagisa, Shinoda Masahiro, Wakamatsu Koji, Adachi Masao e Fujita Toshiya, junto a cinegrafistas, roteiristas, jornalistas, críticos, cinéfilos e estudantes participaram dos protestos. Suzuki ganhou o processo contra o Nikkatsu em 1971, porém, não foi mais convidado para trabalhar nele ou em qualquer outro estúdio, e nenhum novo projeto do diretor foi lançado até 1977, quando conseguiu dirigir História de melancolia e tristeza (1977). Este incidente infame ficou conhecido como o "Problema Suzuki Seijun".
 
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O estudioso de cinema Yomota Inuhiko escreveu que os assassinos de aluguel em A marca são referências a filmes noir americanos". Um problema imediato com este tipo de observação é a notória dificuldade de definir "filme noir" como um gênero específico. Alguns críticos franceses começaram a usar o termo na década de 1940 para descrever filmes norte-americanos com tendências "sombrias", mas nenhuma categoria discursiva foi usada ou reconhecida na indústria cinematográfica norte-americana da época. Foi apenas após o termo "filme noir" ter sido adotado pelos Estados Unidos no final da década de 1960 que ele se tornou reconhecido pelos estúdios de Hollywood como um gênero comercial, e assim, usado na categorização e promoção de certos filmes. Desde então, o uso do termo proliferou, e agora ele tem que ser considerado como um conceito-chave, tanto abrangente quanto inclusivo, para os estudos da história de cinema norte-americano pós-guerra.
 
Porém, apesar das dificuldades de definir "filme noir" como um gênero, há certas manifestações textuais do estilo noir que podem ser encontradas em filmes realizados dentro e fora dos Estados Unidos. Certamente A marca está repleto de motivos narrativos e visuais que são típicos de "filme noir". Primeiro, o filme de Suzuki utiliza uma cinematografia monocromática claro-escura que enfatiza contrastes fortes entre luz e sombra e que pode ser derivada do trabalho de cineastas do movimento expressionista alemão. Por exemplo, em A marca, um plano de longa distância que mostra um Hanada bêbado e vagando pela rua à noite claramente lembra a atmosfera visual de filmes do expressionismo alemão da década de 1920, como Nosferatu - Uma sinfonia do horror (1922), de F.W. Murnau.
 
As superfícies escuras do filme noir também surgiram como resultado das limitações financeiras que foram impostas sobre "filmes B". Para esconder seus sets de filmagem baratos, a iluminação era escassa ou utilizada com parcimônia. A marca - um "filme B" feito no Japão - foi filmado em preto e branco apesar de ser planejado desde o começo como um filme colorido. Em 1967, a maioria dos filmes feitos nos grandes estúdios japoneses foram produzidos em cores, e o próprio Suzuki era famoso por seu uso único destas, como em Tóquio violento (1966). A decisão de filmar A marca em PB deve, portanto, ser considerada uma decisão financeira e estratégica. De fato, Suzuki admitiu mais tarde que gostava da qualidade visual do filme por sua ênfase no contraste entre luz e sombra.
 
Segundo, filmes noir geralmente contam histórias urbanas, e A marca não é uma exceção, pois sua ação transpassa na Tóquio do final da década de 1960. Suzuki insiste que seus filmes não representam as condições sociais verdadeiras de seus momentos de realização, mas A marca certamente retrata o espírito da época em Tóquio, 1967. Mais especificamente, o filme problematiza a distinção entre o lado iluminado e o lado escuro da cidade após as preparações para as Olimpíadas de Tóquio em 1964 (ele até ensaia imagens positivas e negativas em uma cena - para ser preciso, o momento quando Hanada procura Número Um escondido entre prédios altos - para realçar a atmosfera clara-escura da metrópole).
 
Em abril de 1964, o Ministério de Saúde e Bem-Estar do Japão anunciou dois novos programas interligados: a purificação do país, junto a planos para cursos educativos sobre saúde e educação física. Após este anúncio, o saneamento das áreas urbanas de Tóquio prosseguiu de forma rápida, mas em um nível meramente superficial. Moradores de rua que habitaram passagens subterrâneas por toda a cidade foram deslocados. A grade de horários para "carros a vácuo" (caminhões-tanque com uma bomba de vácuo para coletar lixo a noite) tornou-se restrita. Latas de lixo tornaram-se padronizadas. A publicação de revistas ero-guro (erótico e grotesco) tornou-se mais rigidamente controlada. Muitos dos rios e canais sujos e fedorentos de Tóquio foram cobertos. As leis que regulavam os bares e boates foram revisadas e fortalecidas. Em suma, as coisas sujas, vulgares e obscenas de Tóquio foram cobertas por uma superfície aparentemente limpa. Ainda mais, o alto crescimento econômico do país, que começou no final da década de 1960, apoiou esta distinção entre uma superfície limpa e desenvolvida e o abjeto oculto e isolado.
 
Como se para indicar o status de A marca como uma crítica social de urbanização e comercialização rápida, Hanada lança todos os seus tiros mortais através de objetos simbólicos encontrados na cidade modernizada. Ele lança seu primeiro tiro para uma plataforma de trem da posição de um grande outdoor que mostra um isqueiro, e o segundo para o olho de um doutor através de um cano de água enquanto a vítima lava seu rosto na pia. Após o terceiro assassinato, Hanada salta pela janela de um arranha-céu e cai sobre um balão enorme que serve como ferramenta publicitária para o isqueiro.
 
Terceiro, técnicas cinematográficas como jump cut, inserções de close-ups extremos e movimentos dramáticos de câmera ajudam criar a narrativa quebrada de A marca e realçam sua aparência de pesadelo com toques de filme noir. Por exemplo, uma cena conecta de forma fragmentada o primeiro encontro entre Hanada e Misako e a primeira experiência sexual que vemos entre Hanada e sua nova esposa (Ogawa Mariko). Esta cena é construída como uma montagem de close-ups do rosto e dos olhos de Misako sem emoção, do rosto e dos olhos de Hanada enquanto ele cheira arroz cozinhando e um número de planos panorâmicos do quarto de Hanada.
 
Ao observar tais características estéticas distintas, o crítico Hasumi Shigehiko afirma que A marca não apresenta sua ação em nenhum "tempo e espaço específico". O que Hasumi sugere aqui é que a narrativa e o estilo do filme não contam com uma progressão linear de tempo, nem com uma continuidade de espaços consistentes...
 
Assim, o filme de Suzuki não é elaborado em torno da evolução psicológica linear do seu protagonista, mas ao invés disso, o protagonista parece perdido e desanimado no meio de um mundo fraturado e aterrorizante criado através do uso de técnicas cinematográficas específicas.
 
Quarto, A marca enfatiza a caracterização ambivalente de seu protagonista. O estudioso Robert Sklar afirma que "A marca registrada de filme noir é sua sensação de pessoas aprisionadas - aprisionadas em redes de paranoia e medo, incapazes de distinguir entre culpa e inocência... A sobrevivência do bem segue de forma incomodada e ambígua". Para enfatizar a sensação de aprisionamento, muitos filmes noir utilizam flashbacks e narração em off. A marca não usa narração nem flashback de formas tradicionais, mas Hanada frequentemente fala consigo mesmo em um tom paranoico e às vezes lembra do tempo em que esteve com Misako.
 
Hasumi acrescenta que Hanada é um personagem "tentando se pendurar entre sua busca por ascensão e seu medo de queda". Ele parece ter medo de se tornar incapaz de suportar seu destino ou desejo de cair. Como Hasumi sugere, A marca está - em termos visuais - cheio de motivos que enfatizam o eixo vertical. Durante a sua primeira missão, Hanada dirige seu carro em direção ao topo de uma montanha para escoltar uma figura importante para uma casa de campo. Ele mata Número 2 no caminho. Enquanto ele fisicamente dirige para o topo da montanha, ele também ascende no ranking dos assassinos. Ele ama o cheiro de arroz cozinhando que sai de uma panela. Ele também é obcecado com fogo e com isqueiros que geram fogo. O exemplo mais cômico e marcante é a cena em que Hanada pula sobre um balão publicitário - neste momento, ele literalmente está suspenso no ar.
 
Após Hanada tornar-se obcecado por Misako, ele começa a sofrer com sua vontade de ascensão e seu medo/desejo de queda. Visualmente, Misako quase sempre aparece junto à água caindo (chuva, banho ou uma fonte), em oposição à obsessão de Hanada com o fogo. Ela está completamente conectada às imagens de borboletas pregadas e aves mortas que não podem mais voar. Na cena climática de batalha, Hanada tem que rastejar no chão em baixo de seu carro. Hanada tem que ficar suspenso mesmo após o duelo final. Sua voz grita que ele chegou ao topo enquanto seu corpo cai para fora do ringue de boxe. (O ringue de fato parece ser suspenso no ar por causa da brancura extrema gerada pela forte iluminação de cima.) Como Watanabe Takenobu afirma, "Os heróis dos filmes de ação do Nikkatsu não se dão bem com o mundo ao seu redor até o fim". Hanada tem que manter sua posição ambígua no mundo, mesmo após a conclusão da narrativa. Assim, A marca questiona até o fim o objetivo e ponto de vista deterministas do protagonista.
 
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Antes de sua demissão em 1968, Suzuki nem tinha pensando em se tornar um cineasta independente com liberdade de desenvolver seus próprios projetos, como Imamura Shohei, Oshima Nagisa e Yoshida Kiju já tinham feito. Ele se enxergava como um diretor contratado e achava que não poderia fazer filmes fora do sistema de estúdio até o período em que fez Zigeunerweisen, em 1980. De fato, os filmes que Suzuki realizou antes de 1968 eram produções colaborativas com cinegrafistas como Nagatsuka Kazue e Mine Shigeyoshi, designers de produção como Kimura Takeo e roteiristas, entre outros, de dentro do estável sistema do estúdio Nikkatsu. Mas mesmo assim, sua prática cinematográfica, mais tipicamente projetada em um filme com estilo noir como A marca, compartilhou características visuais e outras tendências estéticas com os movimentos contemporâneos da vanguarda e de cinema independente no Japão.
 
Como se estivesse posando de artista de vanguarda, Suzuki frequentemente afirma que faz filmes simplesmente para "espantar" o espectador, e claro, ele tinha uma reputação no Nikkatsu por fazer filmes únicos e experimentais. Por exemplo, Suzuki Akira, um montador que trabalhou com Suzuki, disse: "Sr. Suzuki Seijun fazia filmes de uma maneira anormalmente elíptica para que outros montadores não pudessem conectar as imagens consistentemente". Suzuki confessou mais tarde, "Por que fazer um filme sobre algo que você já entende completamente? Eu faço filmes sobre coisas que não entendo, mas que quero entender".
 
Com seu uso extenso de jump cuts e montagem elíptica, iluminação expressionista, movimentos rápidos de câmera e close-ups extremos, A marca oferece uma estética notavelmente da vanguarda. Um plano em que um doutor tira o olho artificial de seu paciente em close-up, refere-se diretamente ao clássico surrealista Um cão andaluz (1928), de Salvador Dalí e Luis Buñuel. Uma outra cena faz superimposição entre close-ups de Hanada e aves mortas brancas, borboletas e chuva. Mas o exemplo mais marcante é um filme mudo em 8 mm que mostra Misako sendo torturada por gângsteres, que é projetado como um filme dentro do filme. Este curta-metragem mudo consiste em sete planos:
 
1. Plano médio-longo de Misako nua e amarrada.
2. Plano médio de Misako em silhueta.
3. Plano de baixo para cima de Misako sobre um piso transparente.
4. Plano médio-longo de Misako e uma grande chama de um lança-chamas fora da tela.
5. Plano de baixo para cima de Misako e fogo, filmado por baixo do piso transparente. A câmera se move para uma janela através da qual os gângsteres observam Misako.
6. Close-up de Misako torturada com fogo.
7. Plano de baixo para cima de Misako caindo no piso transparente.
 
Como é uma imagem de tortura com fogo, o sexto plano parece se referir ao uso de close-ups decentralizados frente a um fundo preto em A paixão da Joana d'Arc (1928), de Carl Theodor Dreyer, o qual mistura influências dos movimentos de vanguarda da França, Alemanha e União Soviética. Também deve ser observado que há uma interação entre o filme em 8 mm e Hanada. Após o segundo plano, Hanada puxa a tela para baixo. Quando ele vê o sexto plano, projetado em uma parede, Hanada toca na imagem projetada de Misako e pergunta onde ela está. Ele tenta ler os lábios dela dizendo simplesmente, "Eu te amo". Este tipo de interação entre as imagens na tela e as imagens fora da tela foi uma das práticas do movimento da vanguarda. Por exemplo, Terayama Shuji tentou dissolver a distinção entre a tela e o mundo fora dela no início da década de 1970, como Den'en ni shisu (A morte no campo, 1973) e Rora (Laura, 1974).
 
No final da década de 1960, quando muitos espectadores de cinema aspiravam interpretar ou utilizar o cinema de forma ideológica e política, Suzuki disse que filmes não continham pensamentos. Ele se opunha a incluir princípios ou "ismos". Suzuki queria dizer que os filmes como mídia poderiam ser mais caóticos e inconsistentes do que algo que meramente transmite mensagens lineares e consistentes e significados específicos. Assim, os valores de Suzuki têm muito a ver com os de cineastas independentes e experimentais da época, não importa quão apolítico seus filmes pareçam ser. O crítico Matsuda Masao insistiu que "Os filmes de Seijun Suzuki são os verdadeiros documentários que tentaram capturar o mundo irracional de um estúdio de cinema (em que os capitalistas e os trabalhadores estão intensamente brigando), o que implica a pergunta do assassinato em A marca do assassino: 'Quem é Número 1?'". Neste sentido, seja conscientemente ou não, A marca pode ser contemplado como uma obra modernista e auto-referencial realizada dentro do sistema de estúdio japonês.
 
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