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Figura e máscara:
Nossa voz de terra, memória e futuro + Família nuclear
O efeito produzido pela máscara é principalmente um efeito voltado para o exterior. Ela cria uma figura. A máscara é intocável e interpõe uma distância entre si própria e o observador. Ela pode - numa dança, talvez - chegar mais perto deste último. Mas ele, por si só, tem de permanecer onde está. A rigidez da forma transforma-se numa rigidez de distância também: o fato de ela não se modificar é o que lhe confere seu caráter proibitivo. E isso porque, logo atrás da máscara, começa o segredo. Trecho do livro Massa e poder (1960), de Elias Canetti [1] Entre 1978 e 1981, o casal de cineastas Marta Rodríguez e Jorge Silva trabalhou em um filme que se tornou uma obra crucial do cinema colombiano. No documentário de longa-metragem Nossa voz de terra, memória e futuro (Nuestra voz de tierra, memoria y futuro, 1981), eles investigaram a história de opressão e luta indígena na região de Cauca, no sudoeste da Colômbia, a partir de depoimentos, casos e histórias que foram tanto encenados para o filme quanto documentados, criando uma voz coletiva e heterogênea da cultura local e das pessoas com as quais conviveram. Os próprios relatos dos indígenas inspiraram a criação de episódios com figuras teatralmente grotescas, representando o diabo e invasores estrangeiros, que espreitam as terras como antagonistas perpétuos da existência dos povos locais. No mesmo período, o cineasta norte-americano Travis Wilkerson era uma criança em Butte, no estado de Montana, filho de um pai militar e piloto (condecorado na Guerra de Vietnã) e uma mãe ativista obcecada com a guerra nuclear. Ela levava seus filhos em viagens para protestar diante dos silos nucleares presentes por todo o interior dos Estados Unidos, um hábito familiar que influenciou a obra de Travis, delineando um estilo de cinema ao mesmo tempo pessoal e político. "A destruição da América nativa e a ameaça de destruição do mundo são dedos de duas mãos entrelaçadas", o diretor declarou décadas depois, na narração de seu filme Família nuclear (Nuclear Family, 2021), um documentário feito em parceria com sua esposa, a artista e ativista Erin Wilkerson. O filme abre relembrando os episódios de infância como parte de pesadelos provocados pelas eleições recentes, e serve como uma espécie de tour guiado pelos silos nucleares ativos nos Estados Unidos, muitos deles em terras habitadas no passado por povos indígenas que foram brutalmente assassinados por colonos invasores. A ameaça da destruição nuclear em um filme ecoa a hostilidade de seres mascarados no outro. Ambos mostram, em momentos distintos, dois pares de cineastas recontando as histórias de seus países americanos e buscando compreender e transformar uma trajetória de violência em um vislumbre de um mundo viável. Rodríguez (nascida em 1933) e Silva (1941-1987) se conheceram em 1965, no cineclube da Aliança Francesa em Bogotá. Ela já havia estudado antropologia e cinema na Colômbia e na França, inclusive com o etnólogo Jean Rouch, que articulou de forma inédita uma fusão das duas práticas. Interessou-se pelas condições de vida nos "chircales" - propriedades de produção artesanal de tijolos nos arredores de Bogotá cujos trabalhadores viviam em extrema pobreza dentro de um sistema feudal. Ao procurar colaboradores possíveis para o projeto, ela conheceu Silva, um fotógrafo, cinéfilo e autodidata que topou registrar o cotidiano de uma das famílias. Eles trabalharam no média-metragem Chircales (1971) por seis anos e conceberam um método de criação que continuaria ao longo de suas colaborações. A produção foi escassa, com os codiretores assumindo todas as funções principais. O período de imersão foi longo e atencioso, para melhor conhecer as vidas de seus personagens. A forma final da obra intercalou momentos tradicionalmente observacionais com outros mais poéticos, conduzidos pelos depoimentos e testemunhos das pessoas registradas. O impulso que direcionou os artistas foi político por natureza - o de expor a realidade de uma situação desumana e seu custo humano. Chircales teve uma boa repercussão internacional, e os prêmios que o filme ganhou em festivais ajudaram a financiar outras obras do casal. Eles logo embarcaram no que foi originalmente pensado como uma trilogia de documentários sobre a desigualdade social colombiana. Planas, testimonio de un etnocidio (1971) relata a longa história de ataques a indígenas, com foco no recente massacre do povo Guahíbo por motivos agrários, inclusive com denúncias de sobreviventes e da formação do CRIC (Conselho Regional Indígena de Cauca) como um ato de resistência. Campesinos (1975) mostra a criação de ações sociais por grupos camponeses e indígenas contra donos de terra em Cauca, também trazendo uma contextualização histórica da luta contra a opressão, muitas vezes narrada pelos protagonistas. O terceiro filme adotou uma forma diferente dos anteriores, principalmente porque Silva e Rodríguez perceberam que eles não estavam conseguindo alcançar seu principal público de interesse, os próprios indígenas. Nas palavras de Rodríguez: "Os indígenas possuem um Eu coletivo, eles tomam todas as decisões coletivamente. Quando viram cenas [em Campesinos] em que um único indígena falava ininterruptamente, eles simplesmente disseram: "Aquele índio é louco". Também não gostaram que os líderes exercessem um papel tão importante no filme. [...]Os indígenas nos fizeram perceber que a narrativa de nossos filmes ia contra sua forma de ver a realidade". [2] Eles então trabalharam em parceria com cooperativas locais e montaram comissões de consultoria. O casal mergulhou por um ano no dia a dia da vida dos Coconucos e trabalhou no filme Nossa voz de terra, memória e futuro por quatro anos (inclusive com uma pausa nas filmagens para fazer um curta-metragem, La voz de los sobrevivientes, 1980, em homenagem a um líder assassinado e a pedido do CRIC). A obra resultante contou com elementos sobrenaturais teatralizados e relatos de naturezas distintas. Em Nossa voz de terra, memória e futuro - o primeiro e único longa-metragem realizado por Rodríguez e Silva -, vemos figuras diabólicas se deslocarem de forma sinistra e assustadora, ao mesmo tempo que testemunhamos a força do coletivo na ocupação e no trabalho com a terra. São homens, mulheres e crianças que atravessam arames farpados, estudam uma nova língua e uma forma de organização social para reaver o que lhes pertence. Ao longo do filme, há uma dialética entre o nativo e o invasor, a percepção de mundo indígena e a imposição de uma cultura originalmente europeia, a melodia fluida das flautas andinas e o som dissonante do agressor. A fotografia em preto e branco mostra close-ups de rostos poderosos, cuja força autônoma é inextricavelmente ligada ao valor do coletivo. Nossa voz ganhou diversos prêmios (inclusive no Festival Internacional de Cinema de Berlim e no Primeiro Festival de Cinema de Povos Indígenas, no México) e gerou uma atenção inédita para o trabalho de Rodríguez e Silva. Porém, foi o último filme que os cineastas concluíram juntos. Silva morreu subitamente, em decorrência de uma úlcera duodenal, antes de terminar Nacer de nuevo (1987), um filme-retrato de um casal de idosos vivendo em um assentamento, que Rodríguez finalizou junto a um outro projeto documental dos dois, Amor, mujeres y flores (1989), sobre o impacto de agrotóxicos na saúde de trabalhadoras em plantações de flores. Ela também deu continuidade ao projeto maior de denúncia da violência contra os povos indígenas colombianos e o meio-ambiente. Através da Fundación Cine Documental - produtora que ela e Silva fundaram na época de Chircales [3] -, Rodríguez realizou uma longa série de documentários, em andamento, que retrata a turbulenta história recente da Colômbia, muitas vezes utilizando entrevistas com indígenas para mostrar a grandeza de um povo que batalha para preservar sua terra e cultura. Vários desses filmes incorporam cenas de Nossa voz e outras obras realizadas com Silva, fazendo conexões entre imagens do passado e um contínuo trabalho de construção social. Um dos filmes mais recentes, La sinfónica de los Andes (2018), utiliza como condutor narrativo uma orquestra sinfônica de jovens indígenas de Cauca para relatar a complexidade da interminável guerra entre o governo, os paramilitares, as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e até movimentos militares indígenas organizados pelo CRIC. Essa guerra civil foi em grande parte financiada pelos Estados Unidos, fazendo da Colômbia o país sul-americano que mais recebe ajuda militar norte-americana. A obra de Travis Wilkerson (nascido em 1969) é uma das mais políticas do cinema de autor atual de seu país. O cineasta lida com questões de origem, seja a história sangrenta dos Estados Unidos ou a participação de sua própria família nela, discutindo o éthos norte-americano e seu reflexo no mundo, para desmascarar o enaltecimento ao poder em histórias de desbravamento e conquista e mostrar as consequências nocivas atuais sobre uma sociedade que perece. Seu trabalho foi inspirado no Nuevo Cine Latinoamericano (inclusive com a realização de um filme-retrato em 1999 do documentarista cubano Santiago Álvarez), principalmente na busca de uma linguagem cinematográfica engajada, rigorosa e lírica, que tenha simultaneamente valor pedagógico e artístico. Diversos de seus filmes são estruturados como densas investigações de um passado enterrado, com o diretor atuando como narrador ou protagonista, e intercalando momentos didáticos com outros mais impressionistas. Por exemplo, An Injury to One (2002) combina paisagens atuais e registros históricos ao narrar o legado da opressão sobre movimentos trabalhistas de mineradores em Butte desde o século XIX até o presente e as consequências ambientais e econômicas para a região. Distinguished Flying Cross (2011) consiste majoritariamente em cenas de uma conversa entre ele, seu irmão mais jovem e seu pai sobre a realidade da Guerra do Vietnã. Você já se perguntou quem atirou? (Did You Wonder Who Fired the Gun?, 2017) adota o tom de um thriller na busca pessoal para resolver o caso em aberto do assassinato de um homem negro pelo bisavô racista do diretor no estado do Alabama. Tanto Você já se perguntou e Família nuclear são road movies. Porém, enquanto a primeira viagem é feita pelo cineasta sozinho, na segunda ele vem acompanhado de sua esposa e coautora, Erin Wilkerson (nascida em 1982). Erin é uma artista visual que expressa inquietações similares às de Travis por meio de mídias diversas, como instalações, performances, desenhos, pinturas e colagens. Seu olhar volta-se para a representação tradicional de paisagens naturais, subvertendo imagens romantizadas de sociedades destruidoras. Duas séries de colagens digitais são representativas de seu trabalho, inclusive na forma em que remetem à sua estética cinematográfica: Em American Landscapes, pinturas de paisagens clássicas norte-americanas são invadidas por imagens midiáticas, mostrando a violência policial do Estado contra imigrantes. E, em Objective Decay, figuras humanas de pinturas europeias importantes são inseridas em fotografias de desastres ambientais. [4] Em Família nuclear, Erin evidencia mais a discussão sobre o impacto humano na paisagem natural ao retratar a presença de espécimes estrangeiras de flores que podem ser devastadoras para o ecossistema local. Enquanto Travis explora velhos campos de batalha (inclusive um que foi previamente filmado por ele, para um curta-metragem relembrando um massacre de indígenas Cheyenne e Arapaho no século XIX, no então território do Colorado) [5] , observamos Erin fotografar flores com uma máquina polaroide, e subsequentemente vemos as fotos na tela enquanto nos é dito se determinada espécie é nativa ou invasora. De maneiras distintas, os dois cineastas refletem sobre o impacto que eles exercem naquelas paisagens silenciosas e aparentemente imutáveis, que mascaram um rápido avanço da humanidade para a decadência. Outros momentos do filme trazem polaroides de cânions, mísseis e veículos militares transformados em monumentos para visita pública. Algumas das cenas mais perturbadoras de Família nuclear são justamente as das visitas feitas explicitamente em família às diversas locações do filme - o casal, com suas duas crianças pequenas e a filha adolescente de Travis. Eles encenam um teatro irônico no qual a imagem arquetípica de uma unidade feliz e estável (a família nuclear norte-americana) é contaminada por um perigo eminente. Travis, usando o gravador de som, parece às vezes estar segurando um detector de metais; as crianças com seus pais brincam de mortos, com um tom desconfortável dado pelo contexto atual. As imagens da família caminhando, mesmo em vastos campos com céus abertos, são embutidas de uma atmosfera de melancolia e pavor frente ao passado e ao futuro, estimulada pelos traços e pelas lembranças de violência que existem em todo lugar onde pisam. Os filmes dos Wilkersons e de Rodríguez e Silva oferecem ferramentas para uma tomada de consciência de seus espectadores diante da realidade que os circunda. Eles mostram algumas das complexidades na formação de grupos, que podem se proteger da violência ou perpetuá-la, às vezes em um mesmo gesto. Escolher um inimigo - nos filmes e historicamente - pode também ser uma escolha das máscaras que serão vestidas. O escritor búlgaro Elias Canetti continua sua reflexão sobre a máscara: "Quanto mais nítida ela for, tanto mais obscuro será aquilo que está por trás". Ninguém sabe o que poderia surgir dali. A tensão entre a rigidez da máscara e o segredo que ela oculta pode atingir proporções gigantescas. Essa tensão é a verdadeira razão de seu caráter ameaçador. "Eu sou exatamente o que você está vendo", diz a máscara, "e, por trás disso, tudo o que você teme."
[1] Tradução de Sergio Tellaroli, publicada no Brasil pela Companhia das Letras em 1995 e Companhia de Bolso em 2019 (p. 473).
[2] De uma entrevista com os cineastas na revista Cuadernos de Cine Colombiano, publicada pela Cinemateca de Bogotá em outubro de 1982. O texto integral pode ser lido em espanhol através do link Idartes se muda a tu. [3] Mais informações sobre a Fundación podem ser encontradas em seu website, martarodriguez.com.co [4] Estes e outros trabalhos de Erin Wilkerson, inclusive obras realizadas na preparação de Família nuclear, podem ser conferidos no site de Creative Agitation, a produtora que ela e Travis Wilkerson cofundaram em 2009: creativeagitation.com. [5] O curta-metragem For the 150th Anniversary of the Sand Creek Massacre (2014) pode ser visto no canal de Vimeo de Travis Wilkerson, através do link vimeo.com/114665191. A Sessão Mutual Films de novembro de 2022 é dedicada às memórias dos cineastas independentes Luis Ospina (1949-2019) e William Klein (1926-2022). SINOPSES DOS FILMES Nossa voz de terra, memória e futuro Família nuclear ENTREVISTA Nossa voz de terra, memória e futuro Entrevista com Marta Rodríguez e Jorge Silva APRESENTAÇÃO DOS DIRETORES Família nuclear Diretores Erin Wilkerson e Travis Wilkerson FIGURA E MÁSCARA - TRAILER Web site IMS - Sessão Mutual Films - Informações e ingressos - Rio de Janeiro e São Paulo |
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