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Ghashiram Kotwal
Cooperativa Cinematográfica Yukt Índia, 1976, 107 min, 35 mm para DCP O filme Ghashiram Kotwal é baseado na peça teatral de mesmo nome, escrita por Vijay Tendulkar em 1972 e adaptada para o cinema pelo próprio dramaturgo. A história detalha a decadência do Império Marata – único administrado por líderes religiosos hindus, chamados brâmanes – na Índia Ocidental no final do século XVIII. Se concentra nos personagens de Nana Phadnavis (interpretado por Mohan Agashe), um ministro culto, porém impiedoso do império, e Ghashiram (interpretado pelo astro de Bollywood Om Puri, em seu primeiro papel para o cinema), um pobre brâmane designado por Nana como o “Kotwal”, ou chefe da polícia, que assume o dever de espionar e reprimir sua classe social. A história é contada de forma lúdica e autor-referencial, a partir de uma mistura de narração, encenação dramática, canção e dança, contemplando tanto o momento histórico, como o momento das filmagens. A obra alegórica foi produzida por uma cooperativa de 16 jovens cineastas e técnicos indianos durante o período da Emergência, quando a então primeira-ministra Indira Gandhi declarou estado de sítio no país, promovendo uma onda de repressão e violência. A Cooperativa Cinematográfica Yukt foi formada por alunos do Instituto de Cinema e Televisão da Índia (FTII), mais o cineasta veterano Mani Kaul. Embora Ghashiram Kotwal tenha sido o único filme assinado pela Cooperativa, Kaul e os outros três diretores do filme, K. Hariharan, Kamal Swaroop e Saeed Akhtar Mirza, se tornaram figuras importantes do movimento de Cinema Paralelo em seu país. Ghashiram Kotwal passou no Festival de Berlim em 1978 em uma cópia em 35 mm legendada em alemão para a ocasião. Décadas depois, essa cópia tornou-se a única remanescente, a partir da qual foi realizada a versão digital em alta resolução que estreia no Brasil. “Ghashiram Kotwal: Tornando o Impossível Real” A entrevista a seguir foi conduzida pela curadora e cineasta Shai Heredia com K. Hariharan, um dos codiretores de Ghashiram Kotwal e presidente da Sociedade da Cooperativa Cinematográfica Yukt Ltd. Foi publicada originalmente em uma versão maior em inglês no folheto do DVD do filme lançado em 2014 pela distribuidora Arsenal – Institut für film und videokunst e.V. . Esta versão em português segue com a permissão da Arsenal. Versão original da entrevista em inglês no formato PDF (11 páginas) Shai Heredia: Como surgiu a Cooperativa Cinematográfica Yukt? K. Hariharan: A Sociedade da Cooperativa Cinematográfica Yukt tinha 16 membros – Mani Kaul, Saeed Akhtar Mirza, Kamal Swaroop, Rajesh Joshi, Virendra Saini, Manmohan Singh, Binod Pradhan, Jethu Mandal, Ravi Gupta, Ashok Tyagi, A.M. Padmanabhan, Vinay Srivastava, C.G. Jain, Hitendra Ghosh e eu. Mani Kaul e Vinay Srivastava já faleceram, e os outros todos continuam bem-sucedidos em suas carreiras independentes. Mas as memórias de sua primeira aventura continuarão a ser sua âncora forte no grande oceano do cinema indiano. Era meados de julho de 1976. A Índia estava no meio de um estado de emergência imposto pela Primeira Ministra Indira Gandhi. Lamentavelmente, a cidadania de uma democracia com 26 anos de idade chamada Índia não tinha a menor ideia de quais seriam as repercussões de uma ditadura e negação de direitos humanos, e, ainda mais importante, o que constituiria a liberdade de expressão. Ao usar o Artigo 352 da constituição indiana, Indira Gandhi se deu poderes assustadores para fazer um grande ataque contra liberdades civis e toda classe política dissidente. Para poder parar as notícias, ela cortou a eletricidade em todos os escritórios dos jornais no dia em que declarou o estado de emergência, em junho de 1975. O governo utilizou forças policiais ao redor do país para colocar milhares de manifestantes e líderes grevistas sob detenção preventiva. Na época, eu estava entrando no ano final do meu curso de direção cinematográfica no Instituto de Cinema e Televisão da Índia (FTII), em Pune, onde cada ano o governo treinava alguns alunos sérios para alimentar uma enorme indústria cinematográfica em 16 idiomas diferentes. Fora da escola, o público assistia com alegria uma estrela de cinema chamada Amitabh Bachchan e filmes como Sholay (1975), que ficou em cartaz por 50 semanas nos cinemas ao redor do país. Bachchan fazia em todos os filmes o papel do jovem revoltado, e de uma maneira especial, ele ajudou a superar os medos e tensões de milhões de pessoas ao simplesmente aniquilar as forças do mal na tela! Enquanto os espectadores voltavam para casa cada noite se sentindo como Bachchan, um pequeno grupo de alunos no FTII percebeu que o escapismo não era uma solução viável e que os cineastas tinham que assumir algumas responsabilidades sérias em um país como a Índia, viciado em cinema. Junto comigo, o primeiro grupo de marxistas amadores consistiu em Saeed Mirza, Jethu Mandal, A.M. Padmanabhan, Ashok Tyagi e Virendra Saini. Nossa sede de encontrar soluções às políticas infelizes do estado de emergência na Índia naturalmente era saciada ao beber o álcool mais barato providenciado pelo governo estatal! E foi durante estas conversas inebriadas e enraivadas que chegamos à várias conclusões. No topo da lista estava nossa firme crença de que uma mudança na indústria cinematográfica não poderia se dar simplesmente ao filmar novos tipos de histórias revolucionárias. A mudança tinha que se dar primeiro no modo de produção. O cinema era uma forma de arte industrial, e nós, os cineastas, tínhamos que dar as mãos igualmente e seriamente para realizar um filme. Toda hierarquia capitalista preexistente dentro de uma equipe tinha que ser destruída para que evoluísse um cinema orgânico capaz de providenciar soluções industriais para levar a classe trabalhadora progressista para frente. O cinema era uma arte cooperativa, e a narrativa dentro e fora da tela tinha que emergir através da cooperação ativa de todos os membros da equipe, independentemente de suas disciplinas professionais! O autor individualista tinha que morrer! Nós queríamos estar lá fora lutando em batalhas políticas contra o estado de emergência, mas havia um currículo no Instituto que felizmente era liderado por um diretor simpático chamado N.V.K. Murthy que tinha conexões saudáveis com o Partido Comunista da Índia. Foi em uma das conversas com ele que a ideia de formar uma cooperativa cinematográfica tomou forma. SH: Como Mani Kaul, um cineasta já bem estabelecido na década de 1970, se envolveu com a Yukt? KH: Enquanto estávamos completando os registros para fundar a cooperativa, o lendário diretor de cinema indiano da vanguarda Mani Kaul visitou o campus da FTII. Ele estava com um humor efervescente, trabalhando com uma bolsa para estudar as várias conexões sintáticas entre a mitologia indiana e as artes cénicas. Ele viu alguns de nossos filmes estudantis e no final da noite discutimos o papel do cineasta como um artista dentro de um sério estado de emergência que tinha estrangulado a nação. Após dois dias, ele nos perguntou, “Posso fazer parte de sua cooperativa cinematográfica?” Este pedido veio como um choque e funcionou como magia. Os filmes de Mani Kaul, como Uski Roti (Pão cotidiano, 1969), Ashaad Ka Ek Din (Um dia em Ashaad, 1971) e Duvidha (Indecisão, 1973), foram experimentos com estruturas visuais complexas e buscaram definir o âmago semiótico da experiência fílmica. Ao contrário de outros cineastas como Shyam Benegal ou Satyajit Ray, ele se interessou mais na busca da linguagem do cinema formal, ao invés de imitar o mundo literário das histórias, com atores operando de uma maneira chamada naturalista. Enfim, ele era completamente contra o modo “realístico” de narração e preferia a técnica mais “estilizada” de Eisenstein, Dovzhenko e Bresson. E isso se adequou perfeitamente ao nosso temperamento! Enquanto salas indianas não se atreviam a mostrar seus filmes, Mani Kaul era muito popular em festivais internacionais como Berlim, Veneza e Chicago. Ele era, de fato, uma celebridade, mas não assumiu nenhuma pretensão quando chegou para trabalhar na adaptação para o cinema de nossa peça teatral favorita, Ghashiram Kotwal. SH: Como foi que vocês decidiram que Ghashiram Kotwal, uma peça radical maratha, seria a primeira produção de Yukt? KH: Nós fomos assistir a peça Ghashiram Kotwal, dirigida por Jabbar Patel, em um teatro perto do Instituto. A escala de produção, com mais de 40 atores cantando e dançando no palco, e as camadas complexas de significados comunicadas pelo dramaturgo Vijay Tendulkar (porém de uma maneira muito divertida), tiveram um forte impacto sobre cada um de nós. De fato, nós estávamos testemunhando uma espécie de revolução narrativa na linha das peças famosas de Bertolt Brecht. Nós vimos potencial nela, mas éramos incapazes de encontrar as soluções adequadas para unir este fenômeno com o que podíamos fazer como cineastas. E somando-se ao nosso dilema havia a necessidade de concluirmos o trabalho como alunos, de acordo com as várias disciplinas de uma escola de cinema. Nenhum de nós falava marata, a língua original da peça, então o dramaturgo Vijay Tendulkar teve a gentileza de reescrever sua própria peça para o cinema com o nosso feedback. Em essência, ele também se tornou um membro da cooperativa. Por coincidência, isso ocorreu em uma época em que o FTII recebeu muitos filmes de países do leste europeu, com os quais o governo indiano tinha desenvolvido relações econômicas bilaterais. E neste pacote haviam os filmes de Miklós Jancsó, cujos extraordinários usos da música, do teatro folclórico e de tomadas longas em vastas paisagens nos inspiraram enormemente. Nós também nos demos conta de que não havia sentido em desenvolver um roteiro sem o apoio financeiro necessário. Felizmente, as formalidades da cooperativa estavam sendo concluídas, e Mani Kaul a batizou com o nome de “Yukt”, significando “unido” ou “juntado”. Então a “Sociedade da Cooperativa Cinematográfica Yukt” foi registrada com 15 alunos e uma celebridade mais velha – Mani Kaul! E, como estávamos registrados como uma cooperativa industrial, podíamos ter acesso a fundos públicos de bancos ou de outras instituições financeiras. Mani Kaul era um bom amigo de Dr. Haridas Swali, o presidente de um banco proeminente em Bombaim. Ele concordou em nos dar um valor generoso de 160.000 rupias (2.000 Euros hoje em dia!) para fazer um longa-metragem inteiro, do início ao fim! SH: Você pode nos contar mais um pouco sobre a peça original, e por que ela era considerada controversa? Foi um processo complicado transforma-la em um roteiro? KH: Embora ela se passasse em um período específico da história indiana, o dramaturgo Vijay Tendulkar obviamente tomou várias liberdades para transcriar seu tema e sua preocupação primária em um modelo teatral jamais visto em um palco indiano. Um dos elementos mais importantes que percebemos foi que as políticas de ditaduras sempre pareceram muito atraentes, quase sensuais, enquanto elas escondiam de forma inteligente todo o ódio e intriga que era, de fato, seu poder de condução. Para nós, o personagem de Nana Phadnavis possuía um poder político similar ao de Indira Gandhi – extremamente brilhante, mas desonesta na essência. Foi esta força política que sempre quis usar a simpatia do povo enquanto preparava seus cães cruéis para te caçar e destruir sua independência. Estas foram as pessoas que escolheram criar imagens espelhadas de si mesmas, deixando-as soltas no meio social, vestidas como policiais, advogados e burocratas. Elas garantiam que você odiasse essas imagens espelhadas e gastasse suas energias emocionais nestes alvos. Essa foi a premissa com a qual queríamos desenvolver o personagem de Ghashiram Kotwal, um inspetor de polícia comum que leva seu chefe mais a sério do que a si próprio. De fato, muitos indianos ao redor da nação admiraram Indira Gandhi na época pela “disciplina” e “honestidade” que ela conseguiu impor sobre oficiais do governo. Os tipos mais apolíticos até comparam o regime dela com os bons e velhos tempos do Raj britânico! Ao longo desse roteiro, nós queríamos apresentar um símbolo dos dias do estado de emergência que estávamos vivendo. A emergência, como o maior desafio ao compromisso que a Índia tinha com a democracia, acabou sendo vulnerável à manipulação de líderes poderosos e jogos de números tortos que dominaram a formação do Parlamento. A peça focava na natureza atraente e sensual das políticas de uma ditadura ao localizar Nana e sua nobreza no mundo burlesco de canções obscenas, dançarinas, promiscuidades e intrigas noturnas. Nana tirou vantagem de seus colegas brâmanes ao satisfazê-los com este mundo fantasioso, enquanto seu chefe de polícia os espionava e identificava a variedade de conspiradores que entrecruzavam as últimas décadas do Império Marata. Queríamos que Vijay Tendulkar mudasse a ênfase para as políticas de intriga frente à ameaça iminente de uma variedade de poderes coloniais que devastavam a paisagem, em um país governado por uma variedade de líderes, de nobres mesquinhos a imperadores. Queríamos ver o quão habilmente as primeiras forças da modernidade poderiam deslocar os donos de terra indianos e eventualmente torná-los incapazes de oferecer qualquer forma de resistência. Nessa corrida, os poderes coloniais estavam um passo a frente de Nana e o pegaram de surpresa. Com armas, sistemas avançados de comunicação e ferramentas de medição exata, eles poderiam simplesmente comprar a maioria dos aliados de Nana. Em essência, o filme explorava percepções conflitantes de tempo. E ao usar uma forma teatral folclórica, nós também estávamos lidando com dois tipos de tempo, um histórico e o outro mítico. SH: Combinar história, mitologia, teatro e cinema não é exatamente uma tarefa fácil. Como foi que vocês criaram um estilo visual? KH: Fizemos algumas pesquisas sobre os aspetos históricos do período e usamos intertítulos, no estilo do cinema mudo, para contextualizar o plano histórico do filme. Em nossos estudos, encontramos mais alguns detalhes sobre Ghashiram Savaldas como um imigrante de Kanauj, no Norte da Índia. Nós percebemos a importância que administradores astutos dão ao uso de estrangeiros como “frentes” seguras para atacar seu próprio povo. E então decidimos encenar, dentro de uma velha casa tradicional cheia de espelhos, uma das cenas mais memoráveis do filme, na qual Mohan Agashe, no papel de Nana Phadnavis, transfere seus poderes punitivos para Om Puri no papel de Ghashiram, ao transforma-lo em sua amada imagem espelhada. Nós tentamos várias cenas em tomadas únicas, nas quais poderíamos delinear frente, fundo e meio-espaço como diferentes zonas temporais de ação/inação política ou de opressão/resistência. Aprendemos em nossos estudos que muitos movimentos importantes de resistência, como os poemas de protesto dos santos-poetas medievais ao redor da Índia, eram frequentemente apropriados por instituições religiosas, e assim, perdiam sua força. No final, cabe à sociedade devolver, ou não, o poder potencial desses poemas/movimentos. Para entender a precisa relação dialética entre história e mito, chegamos a um método interessante para escrever o roteiro. Nós compramos um rolo de papel utilizado na época para os teleimpressores e o dividimos em “um pé para cada minuto”. Neste rolo, desenhamos as paisagens e as ações das cenas. Ao usar cores diferentes, nós conseguimos ver a história e os mitos dos anos entre 1750-1800 se configurando de formas distintas. Às vezes eles coincidiam, e às vezes eles eram contrapontísticos. A ideia de rolagem foi mais uma meta de produção para garantir que poderíamos fazer o timing correto dos planos e contar uma história complexa dentro de 100 minutos. Após refletir mais, eu frequentemente me perguntava como, sendo cidadãos de uma nação pós-colonial, poderíamos esquecer tão facilmente os princípios de exatidão que os ingleses deixaram para nós. Enquanto nós estávamos escrevendo o roteiro em setembro de 1976, o Supremo Tribunal da Índia permitiu que todos os governos dos estados detivessem um cidadão sem ter de informa-lo sobre os motivos de seu encarceramento, ou suspender suas liberdades pessoais, ou tirar dele o direito de viver de uma maneira absoluta. Isso estava se tornando aterrorizante. Era o filme seguindo a política da Índia, ou o Estado se comportando como nosso roteiro? A resistência estava surgindo aos poucos ao redor do país, e esta ideia se manifestou no filme com o congelamento da ação, freeze-frame, em muitas sequências. Em uma pose escultural, o personagem real emerge do ator para indicar que a não participação ou abstinência é tão revolucionária como é a ação agressiva. De certa maneira, este também foi o tipo de protesto que Mahatma Gandhi usou contra os ingleses. Ele o chamou de “desobediência civil” e “Satyagraha” [a Força da Verdade]. SH: Buscar a verdade foi uma espécie de motivo existencial para muitos cineastas das Novas Ondas após a Segunda Guerra Mundial. Como foi que o Yukt contextualizou tal luta? KH: O cinema pode contar a verdade apenas quando ele se torna transparente para poder se revelar como uma linguagem e como uma ferramenta ao mesmo tempo. Como os espectadores têm a capacidade de “consumir” todos os elementos na imagem (atores, objetos de cena, locações) de forma relativamente rápida, o plano longo faz com que eles percebam a pura fisicalidade da imagem ou a pura existência de alguém. Depois de um certo tempo, os espectadores estão essencialmente olhando para a imagem por si só, sem ter expectativas ou motivo, como é o caso de uma nota musical pura ou com as longas paredes estendidas de um templo indiano. Nós queríamos buscar um espaço e tempo que fosse sua própria forma e seu próprio conteúdo. Através dessa forma e conteúdo, nós queríamos provocar a necessidade do espectador de sair do padrão da história mítica de heróis e vilões e entrar no domínio maior da história real. |
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