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O retrato da escuridão
The Picture From Darkness Takashi Makino | Japão | 2016, 38', DCP Na escuridão a percepção é gradualmente invadida por frequências sonoras que se mantêm em um ritmo suave e constante. A sonoridade hipnotizante antecede o cardume ou a revoada de pontos luminosos que seduzem o olhar, convidando-o para uma dança sideral. O espectador gradualmente mergulha em um espaço cósmico pujante criado a partir de fragmentos de imagens que se projetam como galáxias azuis, pretas, cor de laranja, multicoloridas, antes de sucumbir novamente à escuridão. Em O retrato da escuridão, o prolífico cineasta e artista Takashi Makino (nascido em Tóquio em 1978) sobrepõe imagens captadas em Super 8, 16 mm e 4K, ao ponto de torná-las abstrações, através das quais a imaginação cria novas formas possíveis. Makino, que frequentemente colabora com músicos estrangeiros em seus filmes e performances de cinema expandido, foi convidado pelo músico Simon Fisher Turner para criar uma obra inspirada no filme Azul (1994), de Derek Jarman - com quem Turner trabalhou durante anos. Tomando como ponto de partida a cegueira progressiva de Jarman no final de sua vida e que o levou a explorar a luz e a cor de forma poética e filosófica em um livro chamado Chroma (1995), Makino constrói seu próprio universo onírico de luzes e cores, o contrapondo à experiência da escuridão. O retrato da escuridão estreou no BFI London Film Festival em 2016, na sala IMAX do British Film Institute. A trilha sonora foi originalmente tocada ao vivo, e posteriormente incorporada ao filme. "A imagem dos sonhos e da imaginação" O material a seguir foi extraído de três textos, todos originalmente publicados em inglês: Um curto depoimento de Takashi Makino sobre a realização de O retrato da escuridão para o site kaskcinema.be ; uma entrevista com Makino realizada por Nicole Remy e José Sarmiento Hinojosa para o site Desistfilm; e um depoimento do artista publicado em seu site makinotakashi.net. Takashi Makino: Em 2015, Simon [Fisher Turner] me perguntou sobre a possibilidade de uma colaboração de imagem e música. Simon veio ao Japão em 2016, e o UPLINK organizou nossa exibição. O retrato da escuridão foi feito em homenagem ao filme Azul, de Derek Jarman. Eu fotografei o céu noturno e tentei expandir a cor do azul profundo usando imagens da natureza. Durante a realização do filme, imaginei o que eu poderia ver depois de perder a visão. Uma nova imaginação de luz aparece da escuridão. Semelhante ao poder da própria vida, ou simplesmente a corrente sanguínea do universo. * Desistfilm: Quem e quais foram as principais influências por trás de sua visão do cinema e de suas próprias criações? TM: Antes de começar a assistir filmes eu tive uma experiência crucial de som e imagem. Com cinco anos de idade eu tive um acidente de carro. Eu estava andando na estrada, um carro surgiu do nada e eu acabei embaixo dele. Meu crânio e minhas pernas ficaram despedaçados. Eu estava meio morto, perdi a consciência... mas me lembro de ter tido um sonho muito longo... tipo voando na escuridão, onde havia uma paisagem de horizonte verde e um sol muito forte... No sonho, no final da viagem, encontrei três grandes sóis. Era muito estranho, uma luz muito forte. E quando abri meus olhos, percebi que eram as luzes do hospital. Também, já com meus olhos abertos, vi meu sinal de batimento cardíaco, que era verde. Meu sonho daquele dia e minha realidade estavam fortemente ligados. E percebi minha audição presente quando eu estava inconsciente, porque lembro do som do hospital, na ambulância, com meus pais conversando. Essa experiência influenciou muito meu interesse por filmes. Quando eu tinha 7 ou 8 anos, fiquei realmente interessado em assisti-los. Você sabe como, nos anos 80, muitos filmes de terror usavam efeitos especiais de maneira estranha, com animação e paisagens estranhas sobrepostas? Eu criei gosto por esses filmes de ficção científica. Depois de um tempo, comecei a assistir filmes "normais". Comecei a organizar exibições aos 8 anos de idade, porque tínhamos uma loja Blockbuster perto de nosso apartamento.Ia lá muitas vezes, alugava vídeos e convidava meus amigos. Minha primeira exibição foi de Nascido para matar(1987), de Stanley Kubrick, todo mundo saiu durante o filme. Com 15 anos, meu interesse se deslocou para música e arte, de modo que minha perspectiva de assistir filmes mudou completamente. Ia ao cinema e via muitos filmes de arte, por exemplo, os primeiros filmes de Derek Jarman, como In theShadow of the Sun (Na sombra do sol, 1981). Seus primeiros filmes em Super 8 eram tão bonitos e eu não conhecia esse tipo de filme, então tive isso como uma primeira forte influência. E também vi muitos filmes russos: Tarkovsky, Sokurov e muitos outros filmes europeus. Depois, Tony Conrad mostrou The Flicker (1966) e todos os seus filmes em 16 mm. Essa foi uma experiência muito forte para mim. Eu também tinha um forte interesse pela arte, especialmente Surrealismo. Antes de começar a fazer filmes, fiz muitos trabalhos de colagem usando papel e tesoura e criando novas imagens. Eu fui muito influenciado por Max Ernst. O livro dele sobre colagem é muito importante para mim. Sua idéia era usar vários objetos ou materiais e não destruí-los, mas reuni-los em um espaço e criar uma nova imagem. Então fiz muitas colagens assim. Desistfilm: Suas imagens são compostas por sobreposições e múltiplas exposições que criam uma abstração comovente ao retratar como o universo e o cosmos funcionam. Como você encontrou seu caminho para esse método específico, especialmente em seus trabalhos do início dos anos 2000? TM: A primeira idéia veio da teoria da colagem. Na verdade, estou escondendo muitos filmes experimentais em Super 8 que fiz dos 17 aos 21 anos. Em quatro anos, fiz muitos experimentos usando apenas o Super 8. Depois, tentei fazer filmes usando exposição múltipla, filmando e rebobinando e filmando novamente. Isso veio da mesma idéia, através da colagem. Ainda assim, além da minha imaginação, às vezes, fico surpreendido com o que acontece na mesma filmagem, porque não consigo voltar a essas imagens: se eu fotografar, rebobinar, fotografar e cometer um erro, eu mato a filmagem. Então esse foi realmente um bom treinamento para desenvolver minha técnica. Depois de me formar, tive uma idéia mais clara de como fazer filmes usando a técnica de sobreposição. Então fiz um primeiro filme muito curto, Eve (2002), que editei na câmera, fotografando e rebobinando com dupla exposição. A primeira exposição foi de um arame de metal muito duro e, a segunda, foi de água. Dois materiais bem diferentes, um artificial e o outro muito flexível. Tentei fundir cada um no filme e criar uma nova imagem com esse atrito de materiais. Depois disso, fiz muitos filmes, mas todos usando a técnica de sobreposição. Em cada filme eu tenho um conceito diferente.Como em Memento Stella (2018), onde filmei apenas água. Então, minhas ideias vieram da teoria de colagem e da mistura de camadas. Não tenho muito interesse em fotografar algo claramente e mostrá-lo na tela. Estou pensando na imaginação em nosso cérebro: dizemos que temos memória e imagens, mas não acredito que as imagens que temos em nossa imaginação e em nosso cérebro sejam tão claras, é algo muito, muito complicado... como poeira, que às vezes se parece com uma imagem, mas na verdade não é. Tenho um interesse muito grande pela imagem dos sonhos e pela própria imaginação. Eu acho que temos um conjunto muito complicado de imagens bonitas em nosso cérebro. Estou tentando abordar esse tipo de imagem. Eu faço muitas camadas, mas cada camada ainda sobrevive como uma memória, e quando assistimos a imagem podemos selecionar como assisti-la de acordo com nossa própria imaginação, nosso próprio relacionamento entre o filme e nosso cérebro. É por isso que uso a técnica de sobreposição e imagens abstratas. Desistfilm: Como é que o som afeta ou molda a imagem em seu trabalho? TM: Sou sempre cuidadoso quando crio o som sozinho. Tento fazer uma trilha sonora imaginativa, sem explicações. Às vezes vem da mesma idéia do trabalho de colagem. Se eu mostrar uma imagem abstrata muito forte e um som muito diferente do esperado, como a voz de crianças ou o som das árvores, podemos imaginar algo diferente, tentar descobrir o que acontece quando acessamos nossas memórias. Não penso na trilha sonora como música de fundo. Ela não explica a situação, apenas expande a imaginação. Isso é algo muito difícil para alguns músicos que realmente seguem a imagem, pois quando a imagem é forte, o som fica forte também. Eu não gosto disso. Às vezes, sinto que posso fazer o som para um filme, como fiz em 2012 (2013), mas quando sinto que não posso, convido um músico. E eu sempre dou liberdade para ele. Eu não explico como tocar. Me preocupo muito com a colaboração entre a imagem e o som. A coisa mais importante é como manter viva a abstração da imaginação. Desistfilm: No cinema experimental, há sempre uma busca pelo que está por trás dos estratos da própria imagem. No seu caso, em particular, essa busca vem da evocação do que o acúmulo de imagens pode criar. Quando você passou do analógico para o digital, qual foi a principal diferença encontrada por trás dessa busca nesses dois formatos? TM: Usei película como material de filmagem até 2015. Fiz isso em razão da técnica de sobreposição. Com o vídeo, o resultado é muito diferente, as imagens não se derretem umas nas outras (como camadas), cada forma tem uma borda muito clara, então eu não podia fazer um filme da mesma maneira que fazia com a película. Depois, porém, decidi não depender apenas da película porque no Japão, e acho que em todo lugar, o uso da película está ficando mais difícil e caro. Levei muito tempo para chegar no vídeo, mas em meu filme Sobre geração e corrupção (On Generation and Corruption, 2017) eu usei apenas imagens digitais. Memento Stella também é 100% digital. Percebi a diferença e a importância que as lentes da câmera tinham ao fotografar em digital. Quando tentei fazer meu primeiro filme em vídeo não gostei do resultado, porque dava para ver todos os detalhes. A imagem não era bonita. Então, selecionei lentes diferentes, da Bolex à câmera de vídeo, e com isso pude criar imagens muito profundas e bonitas no âmbito das imagens digitais. Em Memento Stella, o centro da imagem é muito claro e nítido, mas o que a circunda está desfocado, derretendo sobre outras imagens. A película é sensível à luz e a câmera digital possui um sensor, mas com esses sensores a sensibilidade não é tão diferente. Eles são apenas sensores, então eu não ligo. Parei de me preocupar com o formato e comecei a prestar mais atenção às lentes. Acredito que podemos criar imagens cinematográficas mais ricas e bonitas, mesmo se usarmos digital. Desistfilm: Essa capacidade da câmera digital de renderizar esse tipo de material plástico que é muito rico em informações, enquanto o analógico, da mesma forma que capta materiais nobres como pele, mar ou terra, tem uma textura mais sutil… você está tentando evocar esse tipo de textura com o digital usando lentes de câmera analógica, para não depender apenas do filme? TM: Sim. É fácil. E o resultado é muito diferente. A imagem digital focal tem muita informação e é muito diferente do que vemos na realidade. Tenho muito interesse no que cada espectador cria a partir do movimento das imagens. Sei que isso acontece quando assistimos o chiado da TV. Quando eu tinha cinco ou seis anos, ligava a TV e, se eu tentasse mergulhar na imagem, poderia enxergar o que imaginava. Era como decidir em que direção a imagem estava se movendo, mesmo que fosse puro ruído visual. Eu acho que esse tipo de coisa acontece nos meus filmes, e tento produzir esse tipo de efeito, que é uma colaboração muito interessante da tela e da imagem, porque podemos abordá-la e, às vezes, as imagens respondem. Eu amo esse tipo de conversa entre meus filmes e os espectadores. Realmente não quero fazer imagens de propaganda, uma imagem/uma resposta/uma direção. Eu quero fazer a coisa oposta, com cada pessoa imaginando coisas e histórias diferentes. Essa é uma situação linda. Desistfilm: Você falou antes que está interessado em ter uma conversa e "des-conversa" com seus colaboradores. TM: Isso é muito importante para mim. Não posso colaborar com um tipo de artista completamente diferente de mim, ou com alguém que conheci pela primeira vez, sem respeito um pelo outro. Não gosto desse tipo de colaboração. Isso não é colaboração, é mais uma batalha. É triste. Eu gosto de fazer sons e imagens que podem se ajudar, colaborar uns com os outros... Desistfilm: Aprimorar as experiências um do outro, de uma forma mútua. TM: Sim, gosto disso. [Minha parceira] Rei Hayama, um cineasta e artista de Barcelona chamado Luis Macías e eu estamos fazendo uma colaboração em San Sebastián na terça-feira. Será completamente improvisado, mas antes trocaremos imagens e planos por e-mail. Nós nos comunicaremos durante a preparação. * TM: Na história, o cinema foi considerado uma entidade separada das outras artes, principalmente devido às suas conexões com o comércio. Minha abordagem vai contra isso, pois considero que o cinema tem um lugar entre as artes. Entretanto, ele tem qualidades únicas, particularmente no que diz respeito ao tratamento do tempo e à relação com o público. O tempo que um visitante de galeria passa olhando para uma pintura ou escultura depende dele, enquanto um espectador de cinema tem o compromisso com a duração do filme. O público, porém, é livre para explorar sua própria imaginação enquanto experimenta a exibição visual e sonora do filme. O que mais me fascina na expressão fílmica é o potencial de colisão entre o que é apresentado e a paisagem emocional de cada espectador individualmente, a partir disso uma nova "imagem" pode ser criada na mente do espectador. Como noticiários do Japão em tempos de guerra, filmes com histórias ou uma estrutura definida lançam para uma audiência imagens com seus significados já intactos. Ao invés de fazer filmes com minha própria estrutura imposta, meu método é abandonar completamente a estrutura ou, em outras palavras, sobrepor imagens que antes continham um significado até tornarem-se ininteligíveis. Meu objetivo é que a imagem resultante seja como um ser animado sem nome, com uma capacidade ilimitada de significados, para que meus filmes se tornem gatilhos para que o público se aventure em sua própria imaginação. Esse desejo está incorporado no título de meu filme Generator [Gerador], de 2011. Nos filmes comerciais, as técnicas de superposição e exposição múltipla são significantes cansados que indicam uma transição entre cenas ou um mergulho em um estado de sonho. Entretanto, vejo novos potenciais nessas técnicas. Eu desenvolvi uma técnica alternativa para exposição múltipla que usa os princípios de colagem criados pelos Surrealistas em Paris na década de 1920. Acredito que as pessoas não inventam coisas do nada, mas combinam coisas diferentes ao seu bel-prazer para chegar a algo novo - colagens e exposição múltipla como técnicas, para mim, lidam artisticamente com essa mesma noção. Através do processo de criar camadas a partir da matéria existente, eu levo imagens a um território que não posso prever e possibilito que elas floresçam em seu novo ambiente. De maneira similar, minha abordagem sonora rejeita a sincronização em favor da inserção de áudio e música aparentemente não relacionados às imagens. Minhas colaborações com músicos estrangeiros têm sido, em certo sentido, uma maneira de encenar encontros imprevisíveis. |
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