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Salmo vermelho
Még kér a nép
Miklós Jancsó
Hungria, 1972, 85 min , 35 mm restaurado para DCP

 
Salmo vermelho foi o 11º longa-metragem dirigido para o cinema pelo cineasta húngaro Miklós Jancsó (1921-2014), realizado após sucessos internacionais, como Os sem-esperança (1966) e Vermelhos e brancos (1967). Ganhou o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes, e hoje é considerado um de seus filmes mais icônicos, a consolidação de um estilo autoral radical e marcante no cinema mundial. O filme, realizado durante o período da ocupação soviética na Hungria, tem sido interpretado como uma alegoria dos movimentos de resistência contra forças opressoras, tema que transcorre toda a obra do diretor.
 
O título original de Salmo vermelho vem de um poema de Sándor Petöfi – figura importante do movimento anti-imperial húngaro do século XIX –, e pode ser traduzido como “O povo ainda quer mais”. Ambientado em 1898, durante o período tardio do Império Austro-Húngaro, o filme descreve a perpétua batalha de camponeses por uma divisão igualitária dos bens da terra. A obra conta com menos de 30 planos e foi filmada em uma pradaria, inteiramente ao ar livre, no formato de um musical, com um grande elenco que, junto com a câmera, se movimenta constantemente. Os atores nos papéis dos camponeses cantam e declamam uma variedade de hinos e canções folclóricas que foram adaptadas no século XIX para o contexto da luta de classes. A narrativa do filme procede de maneira circular ao acompanhar a crescente tensão entre os grupos antagonistas (camponeses e soldados), que culmina em uma retração, a partir da qual se reinicia um novo conflito.
 
Salmo vermelho foi restaurado digitalmente em 2011 pelo Arquivo Cinematográfico Nacional da Hungria, sob a supervisão do próprio Jancsó.
 

 
“Salmo vermelho”
 
O texto a seguir foi originalmente escrito por Peter Hames e publicado em inglês, em uma versão maior, para acompanhar o lançamento em DVD do filme Salmo vermelho pela empresa inglesa Second Run DVD em 2011. Ele foi traduzido para o português com a permissão de Hames e de Chris Barwick, da Second Run DVD. Uma entrevista tardia com Miklós Jancsó, na qual ele comenta sua formação e sua obra, também pode ser encontrada em inglês no site da PPM Film
 
O filme Salmo vermelho se baseia em uma série de revoltas camponesas que ocorreram entre 1890 e 1910, após a fundação do Partido Socialista Democrata na Hungria. Miklós Jancsó e o roteirista Gyula Hernádi também foram influenciados pelos escritos do historiador Deszö Nagy, que pesquisou a influência de canções, danças e folclore popular nas revoltas. É importante lembrar aqui das afiliações de Jancsó com o então suprimido Partido Nacionalista Camponês durante a Segunda Guerra Mundial e seu envolvimento pós-guerra com o grupo da Nova Arte Folclórica. Hernádi também tinha descoberto um livro de “Salmos socialistas” que ironizou e reescreveu salmos e orações cristãs tradicionais. O título original do filme se traduz como “O povo ainda quer mais” e vem de uma frase de um poema de Sándor Petöfi. O poeta (que nasceu em 1823 e faleceu em 1849) promoveu a ideia de que a classe camponesa era a parte mais significante da nação, chamou atenção às condições de servidão e propôs uma cultura baseada no folclore.
 
Devido a dominância dos aspectos formais na estrutura do filme, vale a pena considerar os usos de câmera, atores e música independentemente. Embora trilhas extensivas tenham sido organizadas para a câmera antes das filmagens, os próprios planos foram elaborados in loco, o que pode parecer estranho ao considerar as preparações detalhadas que foram necessárias para executar as longas tomadas. Em uma sequência complexa, a organização poderia ocupar a maior parte do dia. Como o som foi pós-sincronizado, Jancsó dava instruções para os atores enquanto a câmera rodava.
 
Ideologicamente, Jancsó se juntou às tradições do “cinema revolucionário” ao rejeitar o tradicional filme narrativo. “Uma história, se o filme é bom, leva embora o espectador em suas asas, é uma evasão”, disse ele. Os filmes de Jancsó, ao contrário, encorajam um engajamento ativo. “Enquanto o filme está sendo projetado, o espectador faz um esforço para tentar ordenar as coisas que ele está vendo, ele entende que tem obrigação de fazer isso, fica ativo”. O cineasta também entendeu seu estilo como sendo especialmente sintonizado com o “movimento de ideias”.
 
Como Graham Petrie observa em sua monografia sobre Salmo vermelho, Jancsó não se interessa em analisar seus personagens em termos de motivação ou caráter individual. Ao invés disso, eles são definidos de acordo com a sua participação em um grupo ou em uma classe social. Mas enquanto o grupo pode ser muito geral, também existem subgrupos. Por exemplo, os camponeses são subdivididos em homens e mulheres, jovens e velhos, todos com funções distintas. Os opressores (donos de terra, militares, pastores) constituem a autoridade, mas também há indivíduos (o jovem soldado, o desertor) que mudam de lado.
 
Grupos de homens e mulheres são tipicamente organizados para representar solidariedade de classe, com braços dados em marcha. Nudez, uma característica de vários dos filmes de Jancsó, foi utilizado previamente para simbolizar vulnerabilidade e humilhação. Mas aqui, as mulheres optam por tirar suas roupas para demostrar solidariedade e humanidade, assim como para distrair os soldados de seu trabalho. Mari Kuttna escreve que aqui a nudez representa “libertação, liberdade e alegria”. Petrie sugere que “a nudez, assim como a música, a dança, o movimento coreografado e a cor, introduz um elemento sensual que nos alinha com os camponeses como sendo mais atraentes e de espírito mais livre do que seus opositores.” Aqui, como na pintura de Delacroix, A Liberdade guiando o povo (1830), é uma mulher (e mulheres) que assume o papel simbólico de representar a Liberdade e de vingar os seus homens. Os personagens costumam não ter nomes, e, quando eles têm nomes, servem para fins puramente simbólicos.
 
As canções utilizadas no filme formam uma parte essencial da ação, frequentemente substituindo a função de diálogos. Uma pergunta frequentemente encontra sua resposta nas letras de uma canção ou através da sua associação. Muitas têm conexões diretas com o tema da revolução, particularmente “La Marseillaise” e “La Carmagnole”, associadas com a Revolução Francesa, e “Johnny is My Darling” (também conhecida como “Charlie is My Darling”), associada com a Guerra Civil Americana e posteriormente adotada pelo movimento dos sindicatos nos Estados Unidos. Aqui, a música evoca unidade e ação coletiva, mas também, a possibilidade de violência. Outras canções lidam com os direitos dos trabalhadores e a luta para liberdade.
 
O primeiro verso da canção trabalhista principal se repete três vezes – em resposta à sequência de abertura, após o “batismo” do desertor do exército e novamente no final do filme:
 
Nós não somos mais que operários privados da liberdade
A sorte não é para nós, levamos nas costas o infortúnio
O que vai fazer? O que vai fazer?
Que viva o operário!
Que viva o direito do operário!
E que viva o mundo operário!

 
Há um grupo final de canções folclóricas tradicionais comoventes e revigorantes que frequentemente aparecem em episódios de dança. Aqui, Jancsó utiliza um grupo de dançarinos folclóricos, e suas danças – com chicotes, cajados e flâmulas – se mesclam perfeitamente com a coreografia geral do plano. É dado à experiência camponesa e ao tão desejado futuro expressão vital, e, como argumenta Petrie, a natureza do meio fílmico, através de suas ênfases em movimento e ritmo, “nos estimulam a nos identificar com aqueles que encorparam estes atributos às custas dos seus adversários”.
 
Mari Kuttna sugere que Jancsó não empresta símbolos de tradições folclóricas, mas inventa seus próprios símbolos. O crucifixo com as pombas foi inventado por ele, e o uso da cor branca como um símbolo de luto é um costume chinês, não húngaro. Enquanto os uniformes militares têm um caráter universal, os capacetes com penas são associados com a polícia rural, temida e desprezada. A cor vermelha é adotada sem ambiguidade como a cor da revolução, do martírio e da esperança. Roupas e panos brancos marcam as vítimas, o luto tem a cor branca e as mãos dos cadetes militares são vestidas por luvas brancas.
 
Diálogos são raros no sentido convencional, mas as conversas estilizadas contam com vários discursos políticos. Por exemplo, em uma cena inicial do filme, um dos camponeses lê em voz alta uma carta de Friedrich Engels discutindo a situação política na Hungria, enfatizando a importância do capitalismo na progressão necessária para a mudança. Em uma discussão com o intendente, um dos camponeses entrega um discurso formal, cheio de números e dados, que deixa claro que ele precisa da permissão do dono da terra para se sustentar e sustentar sua família. A chegada do parcialmente compreensível barão resulta em um outro debate político no qual as “leis” de oferta e procura são justapostas com a necessidade dos trabalhadores e camponeses de organizarem sua defesa. Petrie sugere que os discursos, assim como as canções, são desenhados “para inspirar, ensinar, analisar e prognosticar, e são direcionados tanto ao público quanto aos personagens no filme”.
 
Devido ao compromisso contínuo de Jancsó com a ideia de socialismo, parece lógico entender Salmo vermelho como uma reinvenção ou continuação de tradições prévias. A abordagem formalista e simbólica de Jancsó tem raízes claras na vanguarda soviética da década de 1920. Os elementos de martírio e de “agressão triunfalista” são compartilhados com Eisenstein, Pudovkin, Dovzhenko, entre outros. A massa como herói claramente se conecta aos filmes de Eisenstein como A Greve (1925) e O Encouraçado Potemkin (1925). Mas enquanto alguns ingredientes são compartilhados, suas certezas não são, e o público de Jancsó tem que pesar contradições no balanço.
 
Mais precisamente, Jancsó parece trabalhar em uma tradição brechtiana. Descontinuidade narrativa e contradição, olhares para a câmera e debates políticos perturbam o envolvimento do público, mas sem produzir uma análise inequívoca. Junto com o compromisso de Jancsó com um ideal igualitário, existe um conhecimento das realidades complexas que seguiram o período em que o filme passa: a Primeira Guerra Mundial, a República Comunista de Béla Kun, as desigualdades e injustiças do regime de Miklós Horthy, a Segunda Guerra Mundial, a traição dos ideais comunistas pela regime de Mátyás Rákosi, a Revolução Húngara de 1956 e os compromissos do regime de Janós Kádár na época em que o filme foi realizado. Em Salmo vermelho, a revolução pode parecer desejável e até inevitável, mas as contradições que a seguiram são conhecimento comum.
 
As autoridades comunistas condenaram o longa de estreia de Jancsó, Sinos ter ido a Roma (1958), por ser insuficientemente socialista, e também condenaram Os sem-esperança (1966) por seu formalismo. Salmo vermelho, apesar de sua conformidade aparente, sofreu ataques por seu “formalismo anárquico”, “uso cínico de nudez” e “pessimismo pequeno-burguês”. O filme recebeu avaliações negativas na Checoslováquia, na República Democrática Alemã e na União Soviética, onde ele não foi lançado. Mesmo assim, ele pode ser enxergado como parte do espírito de mudança que Jancsó sentiu que estava emanando de 1968.
 
Mas embora Salmo vermelho agora pareça, em alguns aspectos, um filme de outra época, um período quando cada um dos dois lados na Guerra Fria tinha alguma visão de uma sociedade justa, a relevância da obra não desapareceu. O triunfo atual do neoliberalismo e de laissez-faire econômico, no qual classes e nações estão à mercê de especulações no mercado internacional, no qual corporações internacionais têm mais lucro do que países, criou uma nova forma de opressão. Ao comentar a transição do Comunismo pós-1989 em 2011, Jancsó notou o sentido de rejuvenescimento depois da saída dos russos – mas também, e talvez de forma surpreendente, que a “grandeza” da transição residiu no fato de que ela “nos mostrou o mundo como ele realmente é. Oitenta por cento da humanidade vive abaixo do nível de pobreza, e o restante, vinte por cento, possui e controla tudo. Sob o regime anterior, nós não tivemos a oportunidade de experimentar isso em sua brutalidade”. Perto do fim de Salmo vermelho, um dos personagens diz “Eu sei que nós não podemos atingir as nossas metas”. Mesmo assim, pode ser dito que as esperanças, sonhos e sacrifícios continuam a oferecer o prospecto de mudança.
 
Ao contrário de muitos exemplos de cinema revolucionário, Salmo vermelho oferece uma experiência estética positiva. O filme é atraente em um nível superficial em que muitos dos homens e (especialmente) mulheres são jovens e bonitos, as cores aparecem com clareza e pureza e as danças e canções são consistentemente e revigorantes, não importa os temas. A coreografia ambulante apresenta uma variedade de formas dramáticas – a geometria de círculos e quadros, as conexões e movimentos de indivíduos entre grupos. O movimento das pessoas combina com o movimento de câmera e o movimento aparente da lente zoom. Jansco disse, “Me parece que a vida está em movimento contínuo...É físico, e também filosófico. A contradição se baseia em movimento, o movimento das ideias, o movimento das massas...Um homem também está sempre cercado, ameaçado por opressão. Os movimentos de câmera que eu crio sugere isso também”. E Yvette Biró, que trabalhou como dramaturga no filme, observou sobre Salmo vermelho, “O estilo pictórico de Jancsó pode ser caracterizado como caligráfico, implicando uma tensão profunda entre identificação e distanciamento estético. Um culto de beleza, uma consciência formal domina as imagens. Mas a beleza é sempre contrastada com a destruição e a morte...Quanto mais a beleza e harmonia se tornam realidades poderosas, mais sua ruína dói”.
 

Poema que inspirou o nome original de Salmo vermelho:
Tradução: Yvette K. Centeno, do livro POETAS HÚNGAROS. Organização, Prefácio e Notas de Zoltán Rózsa. Editora Limiar, s/data, Lisboa. Agradecimentos adicionais ao József Balázs e o Consulado-Geral da Hungria, São Paulo.
 
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