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“A Campos o que é de Campos”
O texto a seguir sobre a obra cinematográfica de António Campos foi escrito em 2022 pelo crítico português de cinema Francisco Ferreira e comissionado pelo festival espanhol de cinema Play-Doc , na ocasião da primeira retrospectiva das cópias remasterizadas pela Cinemateca Portuguesa dos filmes do cineasta. O texto foi publicado pelo festival em espanhol, galego e inglês, e, aparece aqui em sua versão portuguesa original pela primeira vez online. Agradecimentos vão a Ferreira e a Sara García Villanueva (co-fundadora e diretora artística de Play-Doc) pela permissão de postar o texto. Além dos nomes de Jean Rouch e Vittorio De Seta, já citados por Ferreira, os organizadores da Mutual Films gostariam de citar o cineasta brasileiro Alexandre Robatto Filho (1908-1981) como um contemporâneo de Campos entre os progenitores do agora chamado cinema etnográfico por seus estudos documentais de tradições e modos de vida na Bahia. A obra cinematográfica de António Campos (Leiria, 1922-1999) chega ao ano do centenário do nascimento do autor ainda assombrada por uma injusta falta de reconhecimento. É uma ilha à parte na ilha que é o cinema português. Nunca se filiou em associações e movimentos. Nunca partilhou lutas e trincheiras, apesar dos seus filmes terem sido por eles próprios um combate. Começou por dedicar-se em Leiria ao teatro amador e “cineasta amador” se tornou, com uma câmera de 8 mm comprada a prestações. Na sua obra, bastante mais extensa do que muitos crêem (realizou quase 50 filmes, muitos deles encomendas institucionais), foi a filmar a vida do campo e o povo que Campos construiu o seu caminho artístico. E construiu-o praticamente sozinho, afastado dos centros urbanos e suas modas, arredado de apoios financeiros do Estado, dos quais só beneficiaria numa fase já avançada do seu trabalho. Os cineastas portugueses activos no final dos anos 50 desconheciam o que Campos estava a fazer em Leiria com poucos ou nenhuns meios, num sistema de autoprodução. Salvou-se a admiração pelos seus primeiros filmes mostrada de imediato por Manoel de Oliveira e o entusiasmado apoio – que a uma dada altura se tornaria decisivo – do então ainda estudante de cinema Paulo Rocha. À falta de melhor, acabou a obra de Campos por ser arrumada na prateleira do documentário etnográfico, o que, não sendo mentira – ele é um dos poucos cineastas a debruçar-se nos costumes e modos de vida centenários dos portugueses – não corresponde inteiramente à verdade. Cineasta sem “escola”, Campos inventou a sua. Não há nesta obra nem no seu modus operandi evidentes ligações, sequer, com uma prática do documentário português vanguardista na viragem dos anos 20 para os anos 30. São, aliás, ficções – ao contrário do que dizem os dicionários desleixados – duas das primeiras quatro obras de Campos, Um tesoiro e O Senhor, ambas adaptadas de contos, a primeira de Loureiro Botas, escritor de Vieira de Leiria, a segunda de Miguel Torga, também este um autor dedicado aos valores ancestrais da terra e ao trabalho rural. Rodado com atores amadores, leirienses, do Teatro do Grupo Miguel Leitão, em 8 mm e sem som, O Senhor é um caso extremo da perseverança e do talento inato, inexplicável, de António Campos. A história desse filme é muito simples: prestes a dar à luz, a mulher de um moleiro contorce-se com dores, levando o marido a procurar ajuda na aldeia mais próxima, onde é auxiliado pelo padre, dada a ausência do médico. E, contudo, são quinze minutos de cinema rigorosamente planeados e enquadrados. A montagem está próxima da força do cinema soviético, em especial dos primeiros filmes de Aleksandr Dovjenko. transformando o sofrimento do parto, o nascimento iminente do bebé e a corrida contra o relógio do moleiro numa experiência de suspense angustiante. Campos consegue ainda rechaçar qualquer indício de ruralismo folclórico que era então norma vigente no cinema português dos anos 50. A sua abordagem é temerária, anti-naturalista, dramaticamente consistente. E tal como escreveu Manuela Penafria na monografia O paradigma do documentário: António Campos, cineasta, há aqui “um enfoque no universo feminino e o mesmo enraizamento na vida das gentes do povo (…), a mulher-mãe como personagem central e aglutinadora de toda a acção.” Essa figura feminina acompanharia Campos até aos seus derradeiros filmes, Terra fria e A tremonha de cristal. É preciso sublinhar também a originalidade de A invenção do amor, baseado num poema homónimo de Daniel Filipe. O filme acompanha dois amantes acossados que, por causa da invenção do título, são perseguidos por uma sociedade opressora numa cidade de arquitectura modernista nunca nomeada. A banda sonora recorre à música concreta e electrónica, algo que já seduzira Oliveira em seu curta-metragem , A caça (1963). A invenção do amor é uma alegoria do Estado Novo e da ditadura sem qualquer paralelo no cinema português – tanto assim é que o cineasta, para se proteger de perseguições políticas, decidiu travar a sua exibição. Elogiado por Paulo Rocha, que nele viu o “único filme surrealista português”, é a prova de que a filmografia de Campos nunca deixou de sonhar com a ficção. António Campos não possui o lirismo de um Vittorio de Seta, nem o delírio transbordante de um Jean Rouch, seus contemporâneos. Mas o respeito ético e a integridade intelectual do seu trabalho, o facto de ter sabido colocar-se à exacta altura das pessoas que filma, o seu olhar minucioso, atentíssimo a cada gesto e a cada detalhe, fizeram dele um cineasta maior. Colocou sempre o instinto à frente da teoria. Homem modesto, habituado a trabalhar sozinho, manteve a sua “assinatura de autor” em segundo plano. Esta não foi a menor das suas qualidades. Nada cultivou que pudesse parecer-se a uma “imagem de marca”. Não se vendia, nem sabia vender-se. Tudo isto contribuiu também para o seu afastamento de um cinema oficial e honorífico, assim como de certos círculos de influências artísticas que o ignoraram. Mas Campos contornou com humildade e bravura esse esquecimento quando deixou finalmente o Rio Lis da sua infância e se fez à estrada: não era Lisboa nem o Porto que lhe interessavam, mas sim o norte rural ou o sul piscatório, o oeste atlântico ou o nordeste montanhoso. Os seus filmes eram exibidos com timidez em Portugal, quase sempre em sessões pontuais. E só em 1994, quase quatro décadas após o seu primeiro filme, foi esta obra homenageada com a consideração devida, no Festival de La Rochelle, por intervenção do crítico francês Jean-Loup Passek, seguindo-se a retrospectiva da Cinemateca Portuguesa, em 2000, um ano após a morte do cineasta. É inestimável o valor de A almadraba atuneira, um dos grandes filmes portugueses da sua década. Liga umbilicalmente Campos à prática do documentário que lhe firmou o nome, e, não menos importante, liga-o a uma ruralidade em vias de extinção que o cineasta continuaria a perseguir. Já na altura de Um tesoiro fixara Campos uma comunidade piscatória que desaparecia pouco depois por intempéries várias, naturais e sociais. O mesmo iria suceder com A almadraba atuneira, que regista para a posteridade, no verão de 1961, na então chamada Ilha da Abóbora (actual Ilha de Cabanas), frente a Conceição de Tavira, no Algarve, aquela que seria a última companha de pesca ao atum no arraial que o mar iria destruir no inverno seguinte. Foi o primeiro filme de Campos rodado em 16 mm, com uma câmera emprestada, e é um portento cinematográfico, ambientando-nos com um rasgo de elevação e de melancolia à vida dos pescadores, aos rituais da faina, até à matança final, expoente da dramatização acompanhado por A sagração da primavera, de Stravinsky. Vilarinho das Furnas, rodado no concelho minhoto de Terras de Bouro, é um filme muito mais complexo a nível de produção, rodagem, duração e também a nível político, cravando em definitivo o cinema de Campos a uma ideia de cinema de salvaguarda. É Paulo Rocha quem sugere a Campos filmar os dias que restam de uma aldeia com morte anunciada, condenada ao desaparecimento sob as águas de uma nova barragem em construção. E é sem impôr qualquer ponto de vista doutrinal, recusando também a facilidade do comentário ou do oráculo, que Campos parte para Vilarinho em busca de uma cumplicidade total com os seus habitantes, disposto a filmar um presente que tem os dias contados. O cineasta impõe-se então a regra de querer viver, comportar-se e até de falar com os modos dos habitantes da aldeia. Enfrenta a desconfiança generalizada da população, que o vê como um provável espião da empresa expropriadora (Hidro Eléctrica do Cávado). Forçado a trabalhar com cautela e a filmar à distância, à medida que a confiança se ganhava ou se perdia dia após dia, Campos vai passar 18 meses na aldeia, numa “imersão” devota e talvez só comparável ao trabalho do documentarista japonês Shinsuke Ogawa no colectivo Ogawa Pro. Campos chega a Vilarinho a meio de um embate político de David contra Golias. Os habitantes são pobres, vão perder as suas casas e uma vida de trabalho, batem-se contra as indemnizações miseráveis do poder político e económico, simbolizado pela visita à aldeia de um Governador que vem distribuir promessas. E se a imagem fixa o presente, é pela banda-sonora que o filme “viaja no tempo”, pela voz off do aldeão a que Campos confere o papel de narrador do filme, isto é: a história de um lugar, de uma comunidade, seguida da ameaça da sua extinção. Vilarinho das Furnas cartografa exaustivamente aquele espaço e aquele tempo, enquadra-os no problema social que está em jogo, até se associar implicitamente ao destino daquele povo e à sua impotência. Não fala apenas daquela, mas de todas as aldeias do mundo que chegaram ao mesmo beco sem saída. António Campos faria mais um documentário de longa-metragem antes da Revolução de Abril de 1974, Falamos de Rio de Onor, rodado ente 1972 e 1973, mas só exibido após o fim da ditadura. O método de trabalho e a abordagem cinematográfica não diferem muito do que já tinha sido visto em Vilarinho das Furnas. Há um maior sincronismo, em determinados momentos (a homilia do padre da aldeia, por exemplo), entre banda-imagem e banda-som, embora estas continuem a funcionar como pistas independentes em grande parte da obra. Se a imagem se centra em gestos do quotidiano e em descrições pictóricas, é pelo som que a narrativa avança uma vez mais, ora dando a palavra aos habitantes de Rio de Onor, ora reproduzindo textos extraídos do livro Rio de Onor: Comunitarismo agropastoril (1953), do etnólogo Jorge Dias. Sente-se, contudo, que Campos teve aqui uma tranquilidade que não encontrou no filme anterior, e que lhe permitiu alternar momentos de observação com outros de contemplação, passando com frequência do plano geral ao plano aproximado (a fabulosa sequência do nascimento do bezerro e o olhar espantado do miúdo), num conjunto mais telúrico, com rasgos de lirismo evidentes. Este aspeto é também salientado pela presença da cor na película 16 mm de Falamos de Rio de Onor. Campos já havia experimentado a cor nos dez minutos do curta-metragem mudo Retratos dos das margens do Rio Lis (1965), encomendo da Comissão de Turismo de Leiria. Não tinha era contado ainda com a colaboração preciosa do grande diretor de fotografia português Acácio de Almeida, que a partir de Falamos de Rio de Onor vai estar presente (inclusive como o produtor de Terra fria) em praticamente todos os filmes seguintes de Campos. Falamos de Rio de Onor não é uma obra menos pessimista que as anteriores, nem menos assombrada pela morte. O filme começa, aliás, com um toque de finados e uma ida ao cemitério (“Estão presentes as famílias dos mortos e as viúvas dos vivos...”). Também aqui se fala de um passado ameaçado pelo futuro, perante a ambiguidade do discurso do padre, que apela a um retorno às tradições, e o poder da Igreja que ele representa. Conta-se que os homens partiram, ficaram as mulheres e as crianças. E o problema é vasto, pois percebe-se que aquela aldeia isolada, colada à fronteira espanhola, está ameaçada pela questão da emigração, assunto a que Campos voltará no longa-metragem seguinte. Falamos de Rio de Onor é também o filme em que o próprio Campos se expõe (no genérico final), pela primeira vez, cara a cara, com a sua audiência. E o filme termina com o freeze-frame de uma criança que, pela sua expressão, parece lançar ao espectador todas as perguntas, recordando a criança que também fechava o filme dos retratos do Lis e que arrancava as folhas de um ramo de oliveira. O ciclo dos filmes de Campos no Play-Doc conclui-se com o sublime Gente da Praia da Vieira, que tem uma relação directa com o curta-metragem A festa (1975), do mesmo ano. São os primeiros filmes de Campos no Portugal democrático. E pela primeira vez consegue o realizador um subsídio estatal do Instituto Português de Cinema. Com 53 anos de idade, Campos sente a necessidade de fazer um balanço do seu invulgar caminho, olhando para esse espelho retrovisor com a frontalidade de sempre. Campos sabe que está a filmar um Portugal novo. Mas o seu país cinematográfico permanece o mesmo, em harmonia com os movimentos de um mundo que ele conhece por dentro. Gente da Praia da Vieira é um filme de afinidades e de reencontros com lugares (Vieira de Leiria e Escaroupim), pessoas e filmes passados. Documenta e ficciona em simultâneo aquela praia da infância e as dificuldades de sobrevivência das pessoas que ele elegeu como protagonistas. E é, uma vez mais, um filme de confronto com o presente e as suas contradições, isento das cartilhas de uma militância política que, por razões compreensíveis, se tornara em 1975 na regra dominante do cinema português. Acontece que Campos, antes da revolução e antes da militância, já estava onde sempre esteve e de onde nunca quis sair: no campo, ao lado dos desfavorecidos, no Portugal profundo que as cooperativas cinematográficas do período revolucionário agora procuravam. Gente da Praia da Vieira tem uma assombrosa liberdade de movimentos, comenta o seu processo de fabrico, comentando ao mesmo tempo toda uma obra. Antecipa em décadas algumas práticas recentes do cinema contemporâneo que desejaram ser tomadas como novidade quando, em boa verdade, há muito tinham sido inventadas. O cinema de António Campos foi um privilégio para happy few durante demasiado tempo. Continuou infelizmente a sê-lo nos mais de vinte anos que passaram sobre a sua morte. Com os restauros concluídos em 2022 pela Cinemateca Portuguesa, será agora dado a ver em todo o seu esplendor, como nunca antes foi visto. Chegou o momento de partilhar este legado. * “Sobre as novas cópias dos filmes de António Campos” O texto a seguir sobre as novas cópias remasterizadas dos filmes de António Campos foi escrito em um e-mail de março de 2025 pelo preservacionista português Tiago Baptista, que atualmente trabalha como Diretor do Departamento ANIM (Arquivo Nacional de Imagens em Movimento), da Cinemateca Portuguesa. Ele aparece aqui com a permissão do autor. O nosso trabalho sobre o cinema português assenta, em primeiro lugar, na conservação das matrizes e cópias em película de cada filme, com o objetivo de poder continuar a disfrutar das obras nos mesmos formatos em que foram originalmente produzidas e distribuídas. A digitalização é, para nós, acima de tudo uma questão de acesso e de divulgação dos filmes num contexto histórico marcado agora pela predominância quase exclusiva da projeção digital. Assim, damos particular importância à conservação e à preservação analógica dos filmes, através do nosso laboratório de restauro fotoquímico, uma vez que acreditamos que são os formatos em película que permitem não só uma experiência do espectador mais aproximada às cópias tal como foram pensadas pelos seus criadores, mas também uma maior probabilidade de sobrevivência a longo prazo. Tendo em conta esta estratégia de preservação, mas também questões práticas relacionadas com os limites do nosso orçamento de funcionamento, não fazemos restauros digitais para todos os filmes que digitalizamos. A cópia digital de Vilarinho das Furnas, por exemplo, não é um restauro digital, mas sim uma digitalização dos elementos intermédios em película que produzimos no nosso laboratório quando fizemos a preservação fotoquímica deste filme em 2000. O investimento de tempo e trabalho nessa preservação analógica facilitou enormemente o trabalho de digitalização de 2021. Já no caso de A almadraba atuneira, cuja digitalização também partiu de uma boa preservação fotoquímica feita por nós, achávamos que existiam problemas de imagem (resultado do desgaste das matrizes originais) e uma importância da obra que justificavam um restauro digital de imagem completo. Nos dois casos, e como muitos outros filmes cujas digitalizações fizemos, demos particular importância à escolha de cópias contemporâneas da estreia de cada filme para servirem como referência para os trabalhos de correção de cor e também de restauro digital de imagem e de som. O nosso objetivo foi o de criar cópias digitais que mantêm uma forte relação com os originais em película, diagnosticando muito bem entre o que são, de um lado, “características” da tecnologia cinematográfica, e do outro lado, o que são “defeitos” ou “degradações” intrínsecas não só à passagem do tempo e ao desgaste das matrizes fílmicas, mas também ao próprio processo de trabalho de António Campos. Não podemos esquecer nunca que Campos trabalhou (quase) sempre à margem do cinema profissional e que a natureza “amadora” dos seus filmes acarreta várias “imperfeições” que devem ser integralmente respeitadas em qualquer trabalho de preservação e restauro. Esperamos, assim, que estas cópias digitais, mostradas sempre que não for possível projetar as cópias 35 mm que continuaremos a conservar, possam fazer justiça à obra de António Campos e contribuam para que este autor continue a ser redescoberto. |
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