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Encontros solitários:
Vilarinho das Furnas + Techqua Ikachi – Terra, minha vida

 
IMS PAULISTA
 
10/06/2025 (terça)
19h
Techqua Ikachi - Terra, minha vida
seguido por um debate com Rita Carelli, Aaron Cutler e Mariana Shellard
 
11/06/2025 (quarta)
19h30
A almadraba atuneira + Vilarinho das Furnas
sessão apresentada por João Fernandes (Diretor Artístico do IMS) e Mutual Films
 
21/06/2025 (sábado)
15h40
A almadraba atuneira + Vilarinho das Furnas

 
28/06/2025 (sábado)
17h50
Techqua Ikachi - Terra, minha vida

 
O momento havia chegado, pois já havia muitos Hopis educados, e as profecias previam que um dia as crianças Hopi com cabelos curtos ou cabeças calvas seriam os ouvidos e a boca dos anciãos, e, com o tempo, se tornariam os líderes.
 
- Trecho da newsletter Hopi Techqua Ikachi: Land and Life [1]
 
Em 1968, a pedido do ancião e líder comunitário Hopi Dan Kachongwa, um integrante da tribo chamado James Danaqyumptewa começou a registrar com uma câmera super-8 e um gravador de áudio cerimônias e eventos políticos de seu vilarejo de Hotevilla, localizado no estado norte-americano do Arizona e hoje com cerca de 1.000 habitantes. O propósito de Danaqyumptewa e Kachongwa (este com mais de 100 anos de idade na época) era oferecer às futuras gerações do povo Hopi um vislumbre de sua tradição e seu modo de vida, que rapidamente se perdiam. Em 1969, no distrito português de Braga, a comunidade pastoril centenária de Vilarinho das Furnas recebeu a visita do cineasta António Campos, natural da cidade de Leiria. A missão de Campos era registrar os últimos momentos de vida da aldeia, com cerca de 300 habitantes, que existia há séculos praticamente isolada do restante do país, antes de Vilarinho ser submersa pelas águas do reservatório de uma barragem hidroelétrica que estava sendo construída na região. Os filmes que resultaram dos trabalhos feitos nos Estados Unidos e na Europa retratam comunidades muito distintas que se assemelharam em sua luta por manter sua autossuficiência diante da ameaça do Estado.
 
Danaqyumptewa (“aura”, na língua Hopi) nasceu em 1916, com o nome de James Kootshongsie, em Hotevilla, que foi fundada em 1906 numa tentativa de estabelecer um santuário para os que queriam seguir uma vida tribal tradicional, sem a interferência do governo norte-americano. Mesmo assim, aos cinco anos de idade, ele foi levado à revelia de sua família, junto com centenas de outras crianças Hopi, para a escola do Gabinete de Assuntos Indígenas, onde viveu e recebeu uma educação de uma cultura que não era sua. Cinco anos depois, ele retornou para Hotevilla, mas deixou novamente seu vilarejo quando foi escalado para lutar na Segunda Guerra Mundial no Pacífico. Ao retornar, liderou a luta contra a desapropriação de suas terras para a exploração de petróleo e carvão, orquestrada por empresas privadas em conluio com o governo invasor. Manifestou seu ativismo a favor dos direitos humanos e civis dos Hopis de diversas formas. Por exemplo, filmou em super-8 durante mais de 20 anos (inclusive por mais de uma década após a morte de Kachongwa, em 1972) e editou um jornal comunitário para relatar as divergências e os conflitos entre diferentes grupos Hopi com o Estado norte-americano. Essa newsletter, que teve 44 edições publicadas entre 1975 e 1986, se chamava Techqua Ikachi: Land and Life (Techqua Ikachi, terra e vida) e inspirou o nome do filme que Danaqyumptewa depois realizou em parceria com outras duas cineastas. [2]
 
Uma delas foi a pintora suíça Agnes Barmettler (nascida em 1945), que teve seu primeiro contato com a cultura Hopi em 1977, em uma exposição em Los Angeles sobre a tribo que a deixou impressionada. Barmettler cresceu no mosteiro de uma pequena vila em Obwalden, no centro da Suíça, onde seu pai administrava a queijaria local. Ela estudou em um internato de freiras, onde aprendeu a desenhar e pôde posteriormente ingressar na escola de artes. Após visitar Hotevilla, Barmettler passou a desenhar as paisagens norte-americanas incorporando símbolos Hopi, e, em 1979, foi convidada a viver no vilarejo, período durante o qual ela aprendeu a falar a língua local.
 
Em 1986, Barmettler acompanhou Danaqyumptewa em uma viagem para Genebra, onde o indígena foi encarregado de defender a existência legal de seu povo como uma nação em um evento da ONU. Ele trouxe consigo meia hora de material em super-8 e pediu a recomendação de Barmettler de alguém que pudesse ajudar a condensá-lo para 10 minutos. A artista então o apresentou a Anka Schmid (nascida em 1961), uma estudante suíça de cinema baseada em Berlim, cuja mãe era colega de Barmettler como artista, curadora e ativista política. Embora o pedido de reconhecimento internacional da nação Hopi tenha sido negado, Danaqyumptewa teve uma experiência positiva ao trabalhar com Schmid, cujo comportamento neutro e aberto diante do material se diferenciou da atitude de outros cineastas estrangeiros com quem ele havia colaborado e que sempre buscaram impor sua própria visão.
 
Danaqyumptewa engajou então Barmettler e Schmid na criação de um documentário de longa-metragem sobre a história e a cultura Hopi. Foi estabelecido um acordo entre os três, no qual, segundo Schmid, “os Hopi determinariam o conteúdo de 100% do filme, com Danaqyumptewa conduzindo todas as entrevistas e decidindo quais trechos e em que ordem seriam usados. Eu e Agnes teríamos a mão livre para a implementação criativa. Como cineasta, minha tarefa era escrever um argumento baseado no que ele me contava.” [3] Para evitar lidar com produtores que também poderiam criar interferências, Schmid escalou sua própria irmã e alguns colegas europeus para cuidar da produção.
 
Levou dois anos para Schmid levantar a verba suficiente para a realização do filme Techqua Ikachi – Terra, minha vida (Techqua Ikachi, Land – mein Leiben, 1989). Ela então se mudou para os Estados Unidos, onde acompanhou e filmou com sua câmera 16 mm durante um ano um modo de vida baseado nas estações do ano e no plantio. Como não havia eletricidade em Hotevilla, ela e Barmettler montaram uma sala de edição e residência temporária na cidade próxima de Flagstaff. E, devido à proibição de filmagens feitas por visitantes não indígenas no vilarejo, a presença da equipe restringia-se a algumas casas e aos campos de plantações, onde filmaram Danaqyumptewa cuidando das suas tarefas cotidianas com a lavoura de milho, feijão e outros alimentos no deserto. O período de entressafra foi usado para a edição do material, e, quando o plantio começou a dar frutos, a equipe retornou a Hotevilla.
 
Durante seis semanas, a equipe de filmagem também gravou os depoimentos dos anciãos de Hotevilla que escolheram participar na produção (principalmente homens, embora a sociedade fosse matriarcal). Eles falaram por horas na língua Hopi sobre a fundação da aldeia e a importância de gerações mais jovens valorizarem suas tradições. Barmettler não apenas traduziu as falas junto a Danaqyumptewa mas também foi encarregada de pintar as representações das histórias que não tinham registros visuais (como imagens do presente ou fotos e filmes de acervos, como os da Smithsonian Institution e da Universidade do Norte do Arizona). Schmid voltou a Berlim para concluir o filme após apresentar um corte aos anciãos e receber sua aprovação.
 
Techqua Ikachi teve sua estreia mundial em 1989 em Berlim, na presença dos cineastas. Isso foi sete anos após o sucesso estrondoso do longa-metragem experimental Koyaanisqatsi (1982, dirigido pelo norte-americano Godfrey Reggio) – cujo título veio das palavras Hopi para “uma vida fora de balanço” – e cinco anos após o primeiro longa-metragem falado integralmente na língua Hopi, o documentário Itam Hakim, Hopiit [Nós, o Hopi] (realizado em vídeo em 1984 pelo nativo de Hotevilla Victor Masayesva, Jr.) ter sido produzido com o apoio da emissora alemã ZDF. O filme também passou em festivais europeus, como Cinéma du Réel e Visions du Réel, porém teve sua estreia norte-americana apenas em 1992, na competição do Festival Sundance de Cinema.
 
Danaqyumptewa morreu em 1996, com um único título na sua filmografia como diretor. (Barmettler dirigiu apenas mais um curta, e embora Schmid tenha realizado diversas produções para cinema e televisão, Techqua Ikachi permaneceu sua única colaboração com o povo Hopi.) As filmagens em super-8 de Danaqyumptewa aparecem em Techqua Ikachi principalmente em duas longas sequências. Na primeira, um grupo Hopi enfrenta firmemente os esforços ilegais do Bahanna [homem branco] de levar eletricidade para suas terras. E, na segunda, uma série de danças Hopi tradicionais (algumas já não mais realizadas) são apresentadas com suas respectivas músicas e sem comentários adicionais. As imagens de destruição e violação cedem lugar para a criação e a preservação.
 
Vilarinho das Furnas deu seu último respiro em 1971, dois anos após António Campos ter começado sua crônica do ciclo de vida e morte da aldeia. Campos iniciou suas filmagens a partir de uma sugestão do cineasta português Paulo Rocha, que disse para ele visitar o vilarejo destinado à extinção devido à construção de uma barragem hidroelétrica pela empresa Hica (Hidroelétrica do Cavado). Campos então dirigiu até o distrito de Braga, onde a aldeia comunitária e medieval se localizava, encrustada em um vale entre a serra Amarela e a serra do Gerês. Ao ouvir sobre o cotidiano em Vilarinho, resolveu ficar e filmar, com sua câmera 16 mm, do jeito que vinha fazendo há mais de uma década: no mesmo nível das pessoas cujas histórias ele queria documentar.
 
António Maria Pereira Campos nasceu em 1922 em Leiria, no centro de Portugal, e, embora tenha passado uma boa parte dos seus anos formativos com parentes na cidade de Aveiro, voltou para sua cidade nativa aos 22 anos. Quando jovem, gostava de matar aula para observar os operários de uma fábrica, no interesse de desenvolver o que chamou mais tarde de “a atração que sentia pelo sortilégio daquele mundo do trabalho e da criação”. [4] Foi pego pelo mundo da representação artística ao ver uma reprodução de um quadro de São Francisco de Assis feito a lápis na parede de uma sapataria.
 
Cursou brevemente artes plásticas, mas abandonou os estudos e assumiu uma posição administrativa em um liceu em Leiria. Adentrou o cinema como curioso e passou os anos seguintes estudando as técnicas e histórias do meio em livros, segundo ele, sem a inspiração de nenhum filme ou cineasta específico. Isso foi numa época em que o cinema português circulava pouco dentro de Portugal – em parte pelo baixo número de produções locais realizadas anualmente, em parte por causa da censura do Estado Novo governado pelo ditador António Salazar desde 1933 (sete anos após o começo da ditadura portuguesa, em 1926).
 
Campos – que também se aliou a um grupo amador de teatro em Leiria – sonhava em fazer filmes de ficção, e seu primeiro foi o curta-metragem Um tesoiro (1958), feito com uma câmera 8 mm recém-comprada. O elenco do filme silencioso foi composto por uma comunidade de pescadores em Vieira de Leiria, e, apesar da obra ser baseada em um conto do escritor português Loureiro Botas, o que domina na tela, acima de qualquer narrativa, são as imagens documentais das pessoas – como as mulheres correndo com bacias na cabeça para colher areia na praia, os vendedores na feira de rua ou um grupo de meninos brincando. Isso também vale para o curta de Campos em 8 mm O Senhor (1959), no qual a história do conto original do escritor português Miguel Torga cede lugar para imagens imponentes e sombrias de um parto que ocorre dentro de um moinho de pedra e da comunidade rural esperando ao redor.
 
Campos sabia que mesmo as suas ficções seriam regadas pela realidade concreta de seu tempo. Tanto os filmes de ficção quanto seus documentários faziam parte de uma ambição de imortalizar um tempo que rapidamente esvaía-se. Em 1961, Campos foi empregado para registrar em película as exposições de arte e as atividades realizadas na Fundação Caloueste Gulbenkian, um importante centro cultural que abriu em 1956 em Lisboa. No mesmo ano, ele filmou a última campanha de pesca ao atum em uma pequena aldeia no Algarve, ao longo de uma temporada (de março a setembro). Campos fez sua primeira obra em 16 mm, o curta-metragem A almadraba atuneira (1961/1974), em homenagem ao trabalho artesanal dos homens envolvidos na pesca. Montou o material como se todo o processo, que se iniciava com a preparação das redes e embarcações e era concluído com a venda dos peixes no mercado, ocorresse ao longo de um dia. E finalizou com uma cartela observando que, no ano seguinte, o mar tomou conta da aldeia, e a pesca local cessou.
 
O autodenominado “etnocinema” de Campos fez sucesso primeiro em um festival de cinema amador em Carcassone, na França, e depois passou principalmente em universidades e cineclubes em Portugal, inclusive no Cine Clube do Porto, onde foi celebrado por frequentadores como o cineasta Manoel de Oliveira (então diretor de apenas um longa-metragem e alguns curtas e médias). Apesar de Campos nunca ter se interessado por política, seus filmes foram vistos como políticos, especialmente em relação à ditadura. O governo de Salazar – ele mesmo nascido em uma aldeia com menos de 1.000 habitantes – exaltava de forma propagandística o trabalhador rural como o nobre coração de Portugal, porém artistas como Campos revelaram com franqueza uma vida dura e sob ameaça de extinção.
 
O curta-metragem de ficção de Campos A invenção do amor (1965), inspirado em um poema do escritor de Cabo Verde Daniel Filipe, critica o regime ao contar a história de um homem e uma mulher que são perseguidos e mortos pela polícia por inventarem o amor. Enquanto correm, as paisagens de fundo ganham destaque, e um país inteiro parece se envolver na fuga do casal. Esse e outros filmes de Campos ganharam um forte apoiador na figura de Paulo Rocha, que descobriu o cinema de Campos enquanto aluno universitário em Paris e continuou a brigar a favor dele após ele próprio se tornar um importante cineasta nacional. Rocha reconheceu que as qualidades em Campos de ousadia e independência de qualquer corrente cinematográfica causaram estranhamento em muitos no meio. “Nunca foi uma relação simples, porque as pessoas ficavam desarmadas, ele cheirava a campo”, disse Rocha sobre Campos mais tarde. “Nunca soube adotar a linguagem, a roupa, o bigode, ao que estava na moda”. [5]
 
Fez sentido então para Campos embarcar nas filmagens do seu primeiro longa-metragem documental, Vilarinho das Furnas (1971), de forma mais uma vez solitária e essencialmente autofinanciada (desta vez, contando também com um pequeno apoio da Gulbenkian). E foi com uma certa ironia que ele foi recebido por muitos dos habitantes como um intruso, e até mesmo um espião da hidroelétrica que os deixaria despossuídos. Encontrou um aliado em um camponês de meia-idade que se chamava Aníbal Pereira Gonçalves, que se tornou o narrador do filme. Aníbal se apresenta para a câmera no início de Vilarinho das Furnas para contar um pouco da história da aldeia, o olhar de Campos retorna periodicamente à figura do camponês, enquanto sua voz guia o espectador de uma parte de Vilarinho para outra.
 
A fala de Aníbal sobre as reuniões regulares dos membros da aldeia (que Campos foi proibido de filmar) é acompanhada por cenas de um ano na vida em Vilarinho, inclusive dos períodos da colheita do milho e da Festa de Nossa Senhora de Conceição. A rigorosa montagem do filme evoca vez após vez os ciclos de vida e morte que o vilarejo experiencia de forma natural ou imposta. Uma imagem de um homem construindo uma roda se torna uma roda descartada com o abandono da aldeia, e uma cena das águas correndo livremente pelas pedras se torna uma imagem final da água presa por detrás da barragem.
 
Vilarinho das Furnas inicialmente teve uma circulação tímida em Portugal, mas, mesmo assim, participou do Festival de Cannes em 1972, entre outros festivais, melhorando as oportunidades do cineasta para produção. Enquanto seus filmes autorais até Vilarinho foram realizados em preto e branco e com ele mesmo como cinegrafista, os filmes subsequentes foram realizados em cores e com o trabalho de câmera feito por Acácio de Almeida, que já tinha começado sua trajetória como o mais importante diretor de fotografia do cinema português. Eles incluíram o documentário de longa-metragem Falamos de Rio de Onor (1974), que trata da dissolução dos modos de vida na pequena aldeia do título com uma grande beleza visual e uma abordagem lírica e poética. E, também, o documentário Gente da Praia da Vieira (1975), um retrato de uma aldeia de pescadores, filmado logo após o fim da ditadura de Portugal, em 1974, que mistura diversos registros (inclusive cenas de teatro e trechos de filmes anteriores de Campos) para sugerir uma diversidade de possibilidades para a vida no “novo” Portugal.
 
Em 1974, Campos conseguiu uma verba da Gulbenkian para sonorizar A almadraba atuneira (que costumava passar sem trilha), em uma mistura de discretos sons locais com A sagração da primavera (Le Sacre du printemps, 1913), de Stravinsky, que enfatizou a natureza hercúlea dos esforços dos pescadores. Saiu do seu trabalho na fundação alguns anos depois para fazer, com apoio estatal, seu primeiro longa-metragem de ficção, Histórias selvagens (1978), adaptado de dois contos de António Passos e ambientado na aldeia histórica de Montemor-o-Velho. Fez mais um longa de ficção, Terra fria (1992), a partir de um romance de Ferreira de Castro. O impulso de fazer as adaptações literárias de obras de autores portugueses foi mais um aspecto da cultura local que Campos buscou retratar ao longo de sua vida.
 
O cineasta morreu em 1999, após receber sua primeira grande retrospectiva em La Rochelle (em 1994) e deixar todo seu espólio para a Cinemateca Portuguesa. Em seu último filme, o curta-metragem de ficção A tremonha de cristal (1993), Campos retornou para a cidade onde cresceu, Aveiro, e flertou com o fim por meio da história de um velho que convence seu neto a visitá-lo ao enviar um telegrama dizendo estar morrendo, sem antecipar que a morte, de fato, lhe aguardava.
 
Quando começou a filmar sua própria vila, James Danaqyumptewa era um importante escultor de kachinas – bonecas que representam os espíritos de mesmo nome que são corporificados durante os rituais Hopi. Junto com outros artistas de kachinas locais, ele ajudou a reviver essa tradição das bonecas, que costumavam ser presenteadas às crianças e jovens mulheres da aldeia para que fossem usadas como objetos de estudo das entidades que seriam materializadas durante os rituais. De certa forma, era um gesto similar ao da criação de Techqua Ikachi – Terra, minha vida. Nos 35 anos após a realização dessa produção suíço-alemã, surgiram novas gerações de cineastas Hopi e de outros povos indígenas que utilizaram o audiovisual para expor, refletir e preservar sua própria cultura.
 
Com as pedras de uma das casas de Vilarinho das Furnas, a comunidade criou um museu sobre o vilarejo, onde todo ano seus membros se reencontram para relembrar da época em que viveram juntos. O legado de António Campos hoje reside não apenas em seus filmes-retratos, como Vilarinho das Furnas, mas também na influência que o cineasta marginal teve sobre gerações de artistas do cinema português moderno. A lista de diretores portugueses que fizeram crônicas docuficcionais sobre a preservação de tradições frente à passagem do tempo nos anos após Campos começar a filmar vão de Manoel de Oliveira e Paulo Rocha a Fernando Lopes e João César Monteiro, até os projetos de António Reis e Margarida Cordeiro em Trás-os-Montes e Pedro Costa em Fontainhas. A cineasta Rita Azevedo Gomes trabalhava na Cinemateca Portuguesa em diversas funções na época em que Campos doou seu acervo para a instituição e, em um e-mail de março de 2025, ela lembrou:
 
“Eu conheci vagamente o António Campos – sempre muito vagaroso e silencioso; tinha umas mãos finas. No seu espólio, havia caixas e caixas cheias de documentação, muitos pequenos utensílios e acessórios por ele fabricados e que usava na fotografia dos seus filmes – filtros, máscaras, tudo meticulosamente e religiosamente catalogado e identificado com a sua letra, por vezes a lápis. Sente-se essa finura e delicadeza nos seus filmes e no tempo que dá a cada plano. Homem do tempo, cineasta de contemplação amorosa.”

 
A Sessão Mutual Films de junho de 2025 é dedicada às memórias do crítico e programador cultural português Augusto M. Seabra (1955-2024), da artista visual e curadora indígena norte-americana Jaune Quick-to-See Smith (1940-2025) e de Rosmarie Schmid (1935-2025) – uma artista e ativista suíça, mãe de Anka Schmid, que criou em 1991 a organização Labyrinth International, tomando com Agnes Barmettler a referência da ideia Hopi do labirinto como um local para estimular o autoconhecimento.

 

[1] A citação original se encontra em inglês através do link Techqua Ikachi .
 
[2] Todas as edições do newsletter podem ser encontradas em inglês através do link Hopi Pole Star .
 
[3] O depoimento de Schmid sobre a realização de Techqua Ikachi - Terra, minha vida, dado em 2024, pode ser encontrado em inglês e em alemão no site da distribuidora alemã Arsenal .
 
[4] A fala de Campos se encontra em uma longa entrevista que ele deu a Manuel Costa e Silva e António Loja Neves em 1997, perto do fim de sua vida: Cinemateca.pt . Mais entrevistas com Campos e depoimentos dele podem ser encontrados no livro O paradigma do documentário: António Campos, cineasta (2009) , de Manuela Penafria.
 
[5] O depoimento de Rocha pode ser encontrado no amplo presskit preparado em 2022 pela Cinemateca Portuguesa dos filmes digitalizados de António Campos: Antonio Campos Press Kit .

 

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