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“Comentários sobre as origens de Techqua Ikachi – Terra, minha vida
 
Os depoimentos a seguir dos cineastas Anka Schmid, Agnes Barmettler e James Danaqyumptewa foram originalmente publicados em inglês em 1989 e podem ser encontrados nas suas versões originais na página sobre o filme Techqua Ikachi – Terra, minha vida que se encontra no site da Mano Film , produtora de Schmid. Eles foram traduzidos para português com a permissão de Schmid e de Barmettler. Agradecimentos adicionais vão a Gesa Knolle, do Arsenal – Institut für Film und Videokunst e.V.
 
Apresentação de Agnes Barmettler e Anka Schmid:
 
O filme Techqua Ikachi – Terra, minha vida contém apenas depoimentos de mulheres e homens da aldeia Hopi de Hotevilla. Trata-se da representação da cultura e história do povo Hopi, a partir da perspetiva do Ancião tradicional. O porta-voz deles, Danaqyumptewa, organizou a seleção, a ordem e a tradução das conversas. Ele também criou os documentos sonoros e em Super-8 de cerimônias e eventos políticos na aldeia. Atendendo ao desejo do Ancião, nós o ajudamos a criar este documento por e para os Hopis, e a torná-lo acessível a um público mais amplo.
 
Fizemos o filme em território Hopi em 1988, levando em consideração a situação politicamente tensa que afeta quase todas as famílias.
 
Nosso conhecimento insuficiente da língua Hopi representou uma grande dificuldade para as filmagens. Os Anciãos falaram nos depoimentos por horas sem interrupção. A seleção e a tradução do conteúdo ocorreram semanas após as gravações das entrevistas, pois, além do seu trabalho no filme, Danaqyumptewa teve que cumprir suas obrigações no campo, nas cerimônias e com a família. As filmagens começaram na primavera e continuaram até a primeira neve. Assim, estabelecemos um relacionamento próximo com a terra e a vida dos Hopis, e o filme pôde ser concluído em uma atmosfera de confiança mútua em 1989.
 
O filme segue os ritmos de quem está falando com métodos estilísticos simples e deixa transparecer as múltiplas camadas de sua complexa visão de mundo. Dispensamos explicações ilustrativas. Como estrangeiros, observamos a terra, as pessoas e seus objetos com um distanciamento consciente, mas não sem envolvimento e proximidade pessoal.
 
Não era a intenção dos Hopis oferecer uma visão completa do seu estilo de vida e da sua cultura. Eles queriam, acima de tudo, mostrar a história de suas aldeias aos seus próprios descendentes e amigos Hopi, tendo como pano de fundo sua vida materialmente modesta, mas espiritual e intelectualmente rica. O filme se limita a mostrar a vida Hopi no trabalho de agricultores autossuficientes em estreita relação com a terra e os ciclos da natureza. Experimentamos o ciclo de um ano com alguns insights sobre as cerimônias das respetivas estações.
 
Os Anciãos queriam que a história de sua resistência fosse compreendida à luz de suas tradições e profecias. Eles são a base para a compreensão do modo de vida Hopi e de sua relação com a terra e toda a vida sobre a terra, que se expressa em seu nome “Hopi”, que significa bom, pacífico, pacificador...
Como se diz no filme:
 
“A vida é boa quando ninguém oprime os outros.
Pessoas de um só coração serão reconhecidas como Hopi.
Se formos guiados por motivos egoístas,
perderemos a terra e também a nossa vida,
então não seremos Hopi.”
 
Apresentação de James Danaqyumptewa:
 
Após muitas tentativas, este filme nos dá a possibilidade, pela primeira vez, de contar aos nossos descendentes e ao público em geral a história do nosso povo, do ponto de vista dos Anciãos da nossa aldeia Hotevilla, e de documentá-la através deste meio [cinematográfico].
 
Esperamos que alguns entendam por que defendemos nossa terra e nosso direito à autodeterminação e por que continuaremos a nos engajar em nossa vida simples no estilo Hopi.
 
Com base em profecias e no conhecimento Hopi tradicional, alguns dos sábios da nossa aldeia contam a história do nosso povo, desde as raízes do passado distante até o presente, com um olhar sobre os avisos de eventos futuros. As próprias experiências de quem fala são o foco do filme. São experiências de pessoas que foram governadas pela imposição e de uma luta pela sobrevivência por cerca de cem anos.
 
Desde o século passado, nós, o povo Hopi, sofremos crescente pressão externa do governo dos Estados Unidos da América. Esse domínio estrangeiro começou com uma tutela paternalista. Como todos os povos nativos deste continente, sem nos pedir, eles nos colocaram sob sua jurisdição legal e nos “deram” um pequeno pedaço de terra como “reserva”, embora nós, Hopis, nunca tenhamos cedido o título de nossas terras até hoje, nem voluntariamente em contratos, nem como resultado de derrota em guerra. Hopis não travam guerras.
 
Após o estabelecimento de uma “Agência Indígena” (Gabinete de Assuntos Indígenas), eles começaram deliberadamente a nos educar e a nos conformar às suas próprias necessidades e ideias. Impuseram-nos suas escolas, suas instituições e os equipamentos da civilização moderna. Decretaram uma “constituição tribal” e um sistema de governo de acordo com sua ideia de democracia. Com esse chamado “Conselho Tribal”, criaram um instrumento para minar nossa soberania internamente, a fim de obter “legalmente” nossa terra e seus tesouros naturais. Além da pressão externa, há uma crescente pressão interna vinda das fileiras do nosso próprio povo. Nossa resistência, pelo resgate de nossa terra e do modo de vida Hopi, é hoje dirigida contra as manobras e negociações do chamado "Conselho Tribal Hopi". De acordo com a tradição Hopi, cada uma das comunidades aldeãs é autônoma e tem sua própria liderança, os Anciãos. O respeito mútuo por essa soberania é a base da paz social e torna desnecessário um governo tribal. A tradição Hopi não tem “chefes”.
 
Queremos permanecer Hopi e continuar a viver na nossa terra, de forma independente e autossuficiente. Se tivermos boa sorte, alguns ouvirão e entenderão estas palavras.
 
Junto a todos os povos, protegemos a terra e a vida e mantemos o mundo em equilíbrio.
 
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“Uma existência pacífica e comunal”
 
Os breves comentários de Barmettler, Danaqyumptewa e Schmid a seguir foram originalmente publicados em inglês e em alemão no site do Arsenal , na ocasião da estreia da versão restaurada de Techqua Ikachi – Terra, minha vida no Festival Internacional de Cinema em Berlim em 2024. Eles foram traduzidos para português e postados aqui com o consentimento de Barmettler e Schmid e da equipe do Arsenal.
 
Barmettler e Schmid:
 
Filmar é proibido em Hotevilla, mas na década de 1960, nosso co-diretor Hopi, James Danaqyumptewa, foi chamado pelos anciãos da aldeia para registrar de forma audiovisual suas cerimônias, sabendo que algumas delas logo deixariam de ser realizadas. Os anciãos esperavam criar documentos para as gerações futuras. De fato, algumas das cerimônias que documentamos foram logo abandonadas e o conhecimento espiritual que elas continham se perdeu. Nesse sentido, as filmagens (silenciosas) em super-8 e as gravações sonoras correspondentes constituem um importante patrimônio cultural que pudemos integrar em Techqua Ikachi.
 
A maioria das cerimônias Hopi acontece em kivas [vastos espaços subterrâneos que são utilizados pelos Hopis para ceremonias e encontros]. Uma kiva tem uma parte superior visível com uma escada e uma pequena entrada no telhado, de onde uma escada leva a uma sala subterrânea com uma lareira. As filmagens em super-8 mostram apenas as partes que ocorreram na aldeia. Como as partes das cerimônias nas kivas escuras nunca foram filmadas, mas a sequência de eventos precisava ser reproduzida corretamente, imagens da noite e da lua foram adicionadas nesses momentos às gravações sonoras originais.
 
Comentários de Danaqyumptewa (originalmente publicados no newsletter Techqua Ikachi).
 
As cerimônias Hopi estão conectadas às leis da natureza no universo e aos ciclos da vida na Terra: nascer – crescer – florescer – amadurecer – morrer – nascer de novo. Todos os rituais nos lembram, repetidamente, que nós, seres humanos, somos parte da natureza e vivemos juntos com e de outros seres.
 
O curso do sol, da lua e das estrelas marca as estações do ano e determina o momento das cerimônias. O ano inteiro está conectado espiritualmente com a criação do mundo e com as leis divinas do gênese. Em nossa jornada pela vida, nós, seres humanos, precisamos de indicadores confiáveis, pois somos falhos e limitados. Essas leis também são essenciais na vida cotidiana. Elas podem nos mostrar o caminho para uma existência comunitária e pacífica.
 

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