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“A dramaturgia do luto: um breve olhar sobre o papel da morte na obra de Judit Elek”
 
O texto a seguir foi originalmente escrito pela cineasta húngara Gyöngyi Fazekas e publicado em inglês no livro de 2023  Judit Elek – The Lady from Budapest, que foi publicado pelo Festival Internacional de Cinema de Roterdã na ocasião de uma retrospectiva dos filmes de Elek e organizado por Fazekas, Barbara Wurm e Olaf Möller. Agradecimentos vão à autora e à Anne Wabeke (diretora de comunicações do festival) pela permissão de postar a tradução para o português.
 
Existe uma espécie de manto invisível entre o mundo e eu.
- O autor inglês C. S. Lewis, no livro
A anatomia de uma dor (A Grief Observed, 1961)
 
No mesmo ano em que C. S. Lewis publicou seu livro sobre o luto, Judit Elek se formou na Academia de Drama e Cinema de Budapeste e iniciou sua carreira cinematográfica, cuja essência não se afasta muito do sentimento acima mencionado. Em 2023, ao relembrar as últimas seis décadas de sua vida profissional, as questões da solidão, do isolamento e da herança judaica foram discutidas inúmeras vezes em resenhas e painéis de discussão. No entanto, uma questão permanece não apenas sem resposta, mas também sem ser levantada, silenciosamente pairando nas profundezas da filmografia de Elek.
 
Elek nasceu em 1937 e testemunhou alguns dos momentos mais sombrios da história da humanidade. “Minha primeira memória da vida é o cadáver de uma velha coberto de jornal, no qual tropecei na Grand Boulevard”, ela escreveu na sinopse do seu romance autobiográfico, Despertar (Ébredés, 1964). Quando, mais tarde, ela deu vida à história na tela grande, incluiu essa primeira lembrança, um catalisador silencioso que apagou tudo o que lhe aconteceu antes dos sete anos de idade. Mas, em suas próprias palavras, ela falhou. O momento parecia “não filmável”. Embora o encontro da jovem Judit com o cadáver possa permanecer para sempre privado, o que cresceu a partir dele é uma obra de histórias repletas de personagens movidos, ou mais precisamente, controlados por sua relação com os mortos.
 
A filmografia da diretora começa com Encontro, um curta-metragem que retrata o encontro entre um homem e uma mulher de meia-idade. Ele cuida dos seus pais idosos, e ela, retida pela lembrança do falecido parceiro, se dedica ao trabalho.
 
ENFERMEIRA: Por obra do destino, não conseguimos viver da forma que planejamos, porque essa pessoa faleceu. E depois...Não tive interesse por mais ninguém. Então passei a viver sozinha. Vivendo pelo trabalho, pelos pacientes. No início eu estava bem, nutrindo a memória dele. O trabalho me mantinha ocupada. Mas ultimamente...Comecei a sentir falta de algo em minha vida, pelo fato de não ter alguém. Quero dizer, na minha vida pessoal. Então sinto que minha vida não está completa. E...
HOMEM: Como poderia ficar completa?
ENFERMEIRA: Não se pode apenas lamentar as memórias do passado.
HOMEM: De forma alguma.
ENFERMEIRA: A vida também não se resume apenas aos pacientes. Quando volto do trabalho para casa, preciso de alguém para conversar sobre meu dia.
HOMEM: Bem, sim. Isso pode ser visto como um elemento básico da vida.

 
Então, ainda com quase 30 anos, Elek apresenta os habitantes de cinco castelos antigos em Habitantes de castelos na Hungria. No primeiro castelo, encontramos um casal de idosos, um conde e uma condessa, enquanto no último vemos uma escola primária repleta de crianças cantarolando enquanto estudam o mapa da Europa. Quando Elek questiona os alunos sobre os condes que moravam no edifício anteriormente, as crianças inventam contos de fadas como se esses ex-moradores fossem fantasmas misteriosos.
 
Judit Elek: Você acha que ainda há condes vivos na Hungria?
Criança 1: Não acho que ainda haja condes vivos, mas talvez suas esposas estejam.
Criança 2: Acho que ainda há alguns.
Judit Elek: Você acha?
Criança 2: Sim. Talvez haja alguns morando na América.
Criança 3: Eles foram expulsos da Hungria.
Criança 4: Eles morreram.
Criança 5: Eles foram executados.
Criança 6: Há muito tempo.
Judit Elek: Há quantos anos você acha que isso aconteceu?
Criança 6: (pausa) Cerca de cem anos atrás.

 
Naturalmente, não se pode esperar que os pequenos se lembrem daqueles que nunca conheceram, especialmente se já morreram. Mas com essa estrutura clara e rigorosa, Elek nos oferece um momento para refletir: estamos destinados a ser esquecidos? É necessário que os vivos esqueçam aqueles que vieram antes? Ou temos a obrigação de fazer o oposto, de lembrar? De encontrar a saída desse labirinto de esquecimento que aprisionou a humanidade na repetição? Podemos imaginar a jovem artista, uma sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, buscando respostas para essas perguntas e, em seguida, encontrando um castelo funcionando como um lar para idosos, cheio de pessoas que sobreviveram às duas guerras mundiais e não estão dispostas a esquecer.
 
Velha moradora: Vinte e sete parentes meus morreram, incluindo meu irmão. E...o que posso dizer? Foi horrível. Você sabe muito bem, centenas de milhares de pessoas morreram. Um era culpado de ser comunista, o outro de ser judeu... Mas havia ciganos, escritores e quem sabe o que mais. Foi uma coincidência milagrosa se alguns deles sobreviveram. É quase difícil de acreditar. Nunca esquecerei e...tenho ódio no coração. Posso lhe dizer isso. Não se pode simplesmente esquecer isso.
 
O fascínio de Elek pela morte e pela memória continua em sua próxima obra, o filme em duas partes, Por quanto tempo dura o homem?, que desenvolve ainda mais o enquadramento visto em Habitantes de castelos na Hungria. A primeira parte, intitulada O velho, é seguida por uma segunda intitulada O jovem. Uma registra o último dia de trabalho de um torneiro na fábrica antes da aposentadoria, a outra apresenta o dia em que um jovem deixa sua aldeia para começar a treinar para se tornar torneiro. Embora a mensagem socialista de que o trabalho dá sentido à vida seja óbvia, a cineasta nos surpreende ao entrar na metade do filme para levantar uma questão:
 
Judit Elek: O que você sabe sobre o tio Pista?
Ex-colega 1: Nada. Não o vejo desde que...eles pagavam a participação nos lucros.
Ex-colega 2: Não sabemos muito sobre ele. Jeno Kiss mora a algumas casas da dele, mas também nunca fala sobre ele.
Ex-colega 3: Não o vejo desde que ele saiu da oficina.
Ex-colega 4: Temos um novo homem, embora fosse bom conversar com ele às vezes, mas...nos acostumamos com a ausência dele.
Judit Elek: É possível se acostumar com a ausência de um homem?

 
A conversa evoca o final do seu curta anterior. No entanto, a empatia que se pode sentir ao ver as crianças desconhecerem a história dos mortos é questionada quando os adultos rapidamente esquecem a perda de um colega. A segunda parte de Por quanto tempo dura o homem? se dedica pouco aos sonhos e esperanças do menino para o futuro; em vez disso, aprendemos sobre a comunidade que ele deixou para trás, talvez para sempre. Podemos nos permitir seguir em frente? Como Elek coloca: “Podemos nos acostumar com a ausência de um homem?” À luz da morte de seu pai em 1966, essa pergunta é de partir o coração.
 
Então, de repente, enquanto ainda trabalhava em documentários, Elek se volta para a ficção e filma seu primeiro longa-metragem, A dama de Constantinopla. A história do filme é a de uma senhora idosa, cujo único consolo é a lembrança do falecido pai. Vivendo em um apartamento de cortiço, cercada por seus pertences familiares, ela se vê literalmente incapaz de encontrar seu lugar no mundo, enquanto luta para encontrar um novo lar. Seu único conforto, além de suas relíquias de família, é sua coleção de discos antigos (cujas músicas glorificam outros lugares do mundo) e as notícias. O título original do filme, Sziget a szárazföldön, significa “Ilha em terra firme” e foi traduzido com bastante liberdade para o público internacional. Para o estrangeiro, a combinação poética é substituída por um deleite intelectual. Seria este mais um exemplo de distribuição mundial que exige uma colher de açúcar, ou a perda do significado na tradução sugere que esse tipo de solidão não pode ser expresso em nenhuma outra língua além do húngaro? Como se essa solidão fosse de uma nação inteira — como se a própria Hungria fosse uma ilha no continente europeu, lamentando silenciosamente seus mortos, incapaz de seguir em frente e se conectar com seus vizinhos como a personagem da dama.
 
Aonde quer que a velha senhora de Elek vá, ela é enganada, encontra pessoas materialistas, astutas e que se aproveitam dela. É apenas com aqueles que estão morrendo, ou que sofreram perdas, que ela consegue ter um momento de honestidade, como quando está no mercado de apartamentos. Quando o Sr. Molnár, seu vizinho, cujas repetidas batidas na parede só eram ouvidas por ela, falece, e a comunidade caminha até o topo do prédio para o funeral, a seguinte conversa acontece:
 
Vizinho 1: O filho dele chegou?
Vizinho 2: Ele não tem filhos.
Vizinho 3: Tem sim. Chegou do exterior faz pouco tempo.
Vizinho 4: Ele está com o padre?
Vizinho 5: Não tem padre.
Vizinho 6: Claro que tem. Um protestante.
Vizinho 7: O Sr. Molnár era protestante?
Vizinho 8: Bem, se um padre protestante veio...
Vizinho 9: É verdade que a senhora quer trocar seu apartamento?

 
Mais uma vez, somos lembrados de cenas nos filmes de Elek onde as pessoas provam não ter lembranças dos mortos, apenas palpites vagos, como as crianças inventando histórias de fantasmas sobre os condes falecidos. E a dama não quer pertencer a um grupo tão esquecido e desrespeitoso. Em uma cena, ela é mostrada sentada em um banco ao lado de um homem, um estranho que poderia ser um eventual companheiro. No entanto, eles não conversam, nem tentam fazer contato visual. Sentam-se em silêncio, olhando para o nada. Já neste ponto inicial da filmografia, o espectador pode recorrer a Encontro para obter uma resposta. Parece essencial ter em mente que a diretora ainda está na casa dos 30 anos.
 
Nos dois documentários que Elek filmou na aldeia sem saída (com tráfego de mão única) de Istenmezeje, ela coloca em foco as jovens e os limites de suas vidas estabelecidos pela comunidade. Em No campo de Deus em 1972-73 e Uma história comum, as esperanças e os sonhos da nova geração são mais destacados do que em Por quanto tempo dura o homem? e, no entanto, a lealdade e as memórias que ligam as meninas ao seu local de nascimento parecem formar uma corrente inquebrável. Durante a cena da formatura, as jovens recém-amadurecidas caminham pela vila para se apresentarem – como um passeio de debutante – e há uma sensação de luto e medo de abandono nos olhos dos idosos e da comunidade que as ajudou a chegar àquele ponto. Infelizmente, mas sem surpresa, a morte do pai por suicídio é revelada, o que a partir daquele ponto cria um padrão familiar assustador e paira sobre as protagonistas como um exemplo horrível de como escapar.
 
Mãe de Marika (lendo): Quando você lê esta carta, eu não estarei mais viva. Não mais incomodarei ninguém, nem causarei sofrimento. Algumas pessoas ficarão felizes por eu ter que morrer, por outro lado, estou um pouco assustada, mas ninguém me amou neste mundo, e espero que seja melhor para mim assim. Não chore se encontrar esta carta, se a ler, porque tenho que lhe contar tudo o que penso. Minha querida mãe e irmã, eu lhes deixo saber, sei que estou causando dor com a minha morte, mas não se preocupe, vocês vão superar isso. Por um lado, estou feliz, por outro lado, dói nos separarmos assim para sempre. Se eu não conseguir morrer, e vocês perceberem antes que não estou lá, tentarei novamente de qualquer maneira, e um dia conseguirei. Não fiquem bravas comigo por mantê-las por tanto tempo, mas quero morrer com a consciência limpa.
 
Nesta cena de Uma história comum, enquanto a carta da jovem mulher Marika é lida em voz alta por sua mãe, imagens da Natureza são mostradas. As imagens são as mesmas do primeiro documentário, ambientado na aldeia, quando a história da morte do pai de Marika é contada por sua mãe. Aqui, a importância e o peso da herança de cada um são comunicados com sensibilidade, mas não sentimentalismo. Como ser leal aos seus entes queridos e encontrar seu caminho ao mesmo tempo? Especialmente em uma comunidade tão pequena como Istenmezeje, os padrões parecem inescapáveis, e a liberdade só é prometida pelo amor ou pela educação – se é que se pode escolher entre eles.
 
Eu faço uma observação pessoal para enfatizar aqui que o que Judit Elek realiza tanto em No campo de Deus em 1972-73, quanto em Uma história comum, é algo de extrema raridade no cinema húngaro. Nasci no interior da Hungria e vi em primeira mão quantas gerações uma mudança pode levar. Estou acostumada a ver apenas uma representação romantizada ou condescendente de um agricultor. Os filmes de Elek, no entanto, são feitos com empatia e um sentimento de camaradagem. Temos uma palavra em húngaro, “sorstárs”, que significa um parceiro no destino. Por trás de cada plano, essa é a emoção dominante e uma atitude que nos faltou não apenas na história do cinema, mas ao longo da história. Isso é considerado uma expectativa profissional? Talvez seja simplesmente uma expectativa humana.
 
Depois, no filme Talvez amanhã (Majd holnap, 1980) Elek explora com profundidade os efeitos da herança de uma pessoa no presente e se o amor pode ou não oferecer uma fuga. Na tela, vemos como padrões familiares, porém tóxicos, podem destruir relacionamentos – um relacionamento romântico, para ser mais exato – e como as pessoas parecem incapazes de falar abertamente sobre seu desejo mais profundo de se libertar de tudo. Em uma cena em que os personagens examinam a casa que acabaram de herdar, uma mulher diz com a voz cheia de esperança:
 
Zsuzsika: Tia Márta, por favor, venha aqui! Isso aqui é fungo...claro. Que surpresa! Pois bem, é tudo em vão...Este cheiro também vai ficar para sempre. Deveria demolir tudo e construir uma nova. Mas não aqui!
Tia Márta: Calma.
Mulher: Vai se infiltrar em tudo.
Tia Márta: Tudo bem.
Zsuzsika: Quem construir uma casa neste terreno vai feder. Até os filhos dele vão nascer fedendo. Vamos embora daqui!

 
É claro que o desejo de nos livrarmos de nossa herança e cortarmos nossas raízes como cortamos um cordão umbilical após o nascimento é um tabu absoluto. Pode ser considerado o primeiro estágio do luto no modelo Kübler-Ross – negação, seguida de raiva, barganha, depressão e, finalmente, aceitação. A sanidade da personagem que admite isso será imediatamente questionada pelo próprio marido após o desabafo, felizmente, porém, não pelo filme.
 
Se vemos Talvez amanhã como um experiência sobre se o amor pode triunfar sobre o legado, então O dia de Maria (Maria-nap, 1984) é a tentativa da educação ou do intelecto de fazer o mesmo. A musa e agora viúva do famoso poeta Sándor Petofi é estranhamente parecida com as garotas vistas em Istenmezeje e certamente não mais malsucedida do que elas nessa batalha.
 
Entretanto, O processo de Martinovics e dos jacobinos húngaros expõe a questão do patrimônio não apenas a nível pessoal, mas a nível nacional. Isso é então fortalecido e elevado ainda mais nas próximas etapas da filmografia, trazendo a questão para um nível religioso em Memórias de um rio (Tutajosok, 1989) e mais tarde em Os mortos cantam no final de tudo... (És a halottak újra énekelnek…, 2018). Finalmente, é elevado a um nível igualmente pessoal, nacional, religioso e internacional em Dizer o indizível – a mensagem de Elie Wiesel (Mondani a mondhatatlant – Elie Wiesel üzenete, 1996) e em Um homem livre – a vida de Ernö Fisch (Egy szabad ember – Fisch Erno élete, 1998).
 
Despertar é uma adaptação da novela autoficcional sobre a juventude de Elek e é uma peça peculiar da obra dela. Elek escreveu o livro no início de sua carreira, mas só foi levado às telas no final de seus cinquenta anos, criando assim uma estrutura do tipo “O velho – O jovem” em sua própria vida. O efeito de espelhamento brilha mais impressionantemente no filme O oitavo dia da semana (A hét nyolcadik napja, 2006), que faz um par perfeito com A dama de Constantinopla. Afinal, é sobre uma senhora idosa em luto, não por seu pai, mas por seu marido. Ela está em busca de um novo lar, sendo enganada por todos que conhece e incapaz de encontrar conforto em suas recordações. A velha história é contada de uma nova maneira, da perspectiva do tempo que realmente passou.
 
Por fim, o filme mais recente de Elek, Recordar (Visszatérés, 2011/2019), é abertamente realizado em memória de uma pessoa que ela perdeu, sua meia-irmã Vera. A história de luto, contada em partes ao longo de toda a sua carreira, se completa, de forma crua e honesta. Realidade e ficção se fundem em sua obra para sempre, criando um legado que nos faz refletir sobre nossas próprias perdas, nossas obrigações em relação a elas e a questão de saber se temos permissão para seguir em frente.
 
C. S. Lewis estava certo – o luto é de fato um manto invisível entre o mundo e nós. A única questão é: como nos desvendamos depois que ele nos impõe seu peso imensurável? O trabalho que Judit Elek realizou ao longo da sua vida comprova que conviver com a memória da perda, embora aparentemente solitária, é uma missão de nascimento que une a todos nós. Como Kati diz em Despertar: “Não se preocupe, mamãe. Eu sempre te amarei, enquanto eu viver.”
 

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