<<
“Tesouras fazem filmes”
 
O texto a seguir foi escrito por Lotte Reiniger e publicado na revista de cinema britânica Sight & Sound na primavera de 1936. Ele foi reproduzido no presskit do filme As aventuras do príncipe Achmed que foi compilado pela distribuidora norte-americana Milestone Films (docx) . Agradecemos a Dennis Doros, da Milestone Films, e Christel Strobel, da Primrose Productions, pela permissão de traduzir este texto e o texto sobre a restauração de As aventuras do príncipe Achmed para português.
 
Tentarei responder às perguntas que as pessoas que me observam fazendo as silhuetas quase sempre me colocam. Em primeiro lugar: como diabos você teve a ideia? E segundo: como elas se movem, e por que as tuas mãos não são vistas na tela? A resposta à primeira pergunta pode ser encontrada na curta e simples história da minha própria vida. Nunca tive a sensação de que meu ato de cortar figuras de silhueta fosse uma ideia. Acontece que eu sempre consegui fazer isso com bastante facilidade, como você vai ver.
 
Eu consegui cortar silhuetas quase tão rápido quanto consegui segurar uma tesoura. Eu também sabia pintar, ler e recitar, porém, essas coisas não surpreenderam muito ninguém. Mas todos ficaram surpresos com os cortes de tesoura, que pareciam um feito mais incomum. As silhuetas foram muito elogiadas e recortei silhuetas para todos os aniversários da família. Alguém me avisou sobre aonde esse caminho levaria? Nem um pouco – mas fui encorajada a continuar.
 
Eu gostava muito de teatro e atuação. Mas o ato de encenar peças num pequeno apartamento causou uma grande confusão, por isso foi um grande alívio para todos quando comecei a usar minhas silhuetas como atores e construi um pequeno teatro de sombras para encenar Shakespeare. Houve paz por um curto período, depois, veio o cinema. Recusei-me a aprender uma profissão, pois agora eu tinha um desejo: fazer filmes a todo custo. Isso foi um problema, mas as fadas devem ter tido pena de mim. Nessa época, Paul Wegener, um grande ator e artista, estava em Berlim. Ele produziu uma série de filmes lindos e inusitados, e sua ambição era utilizar todas as possibilidades da câmera para o desenvolvimento do cinema. Wegener me viu recortando silhuetas atrás do palco no teatro de Max Reinhardt e ficou interessado. Ele gostava das minhas silhuetas, e pensou que mostravam uma rara sensação de movimento. Portanto, ele me apresentou a um grupo de jovens artistas que haviam iniciado um novo estúdio de filmes de animação. Então, comecei a fotografar minhas silhuetas, assim como os desenhos são fotografados para uma animação, e consegui fazer um filme com minhas sombras [O enfeite do coração apaixonado, Das Ornament des verliebten Herzens ].
 
Isso foi em 1919, e o trabalho era tão interessante que, desde então, eu raramente fiz outra coisa. Nesse ínterim, casei-me com um dos artistas e começamos a trabalhar juntos, como temos feito até hoje. Essa é a minha história.
 
E agora a questão: como se movem as figuras? A técnica deste tipo de filme é muito simples. Tal como acontece com os desenhos animados, os filmes de silhueta são fotografados movimento por movimento. Mas, em vez de usar desenhos, são usadas marionetes de silhueta. Essas marionetes são recortadas em papelão preto e grafite fino, sendo cada membro cortado separadamente e unido com dobradiças de arame. Um estudo do movimento natural é muito importante, para que as pequenas figuras pareçam mover-se tal como os homens, as mulheres e os animais. Mas este não é um problema técnico. Os planos de fundo dos personagens também são recortados com tesoura e desenhados para dar um estilo unificado a toda a imagem. Eles são cortados em camadas de papel transparente.
 
Quando a história está pronta, a música escolhida e a trilha sonora gravada, começa o trabalho do filme propriamente dito. Figuras e fundos são dispostos sobre uma mesa de vidro. Uma luz forte vinda de baixo faz desaparecer as dobradiças de arame, etc., e faz surgir as figuras negras em relevo, enquanto o fundo aparece como uma paisagem mais ou menos fantástica, de acordo com a história. A câmera está pendurada acima desta mesa, olhando para a cena abaixo. Por meio de um dispositivo de arame, a película na câmera pode ser movida quadro por quadro. Após a primeira fotografia, as figuras são movidas para a próxima posição e o conjunto é novamente fotografado. E assim por diante. O importante nesta fase é saber quanto movimentar as figuras para que pareçam estar vivas no de correr do filme.
 
A sincronização entre visão e som é garantida ao medir cuidadosamente a trilha sonora e preparar um cenário elaborado com muita precisão, em que o número de fotografias é calculado de acordo com o valor musical. Esses cálculos são a base da imagem, que é então cuidadosamente fotografada.
 
Resta muito a dizer sobre os problemas artísticos deste tipo de filme, sobre o seu futuro e sobre o seu valor. Mas estou satisfeita em deixar estas questões para aquelas pessoas cuja profissão é preocupar-se com tais problemas. Sinto que é melhor concentrar-me em fazer os filmes – e em fazer tantos quanto a minha boa sorte permitir. Cada novo filme levanta novos problemas e questões, e só posso esperar viver o suficiente para fazer justiça a todos eles.
 
*
 
“A restauração de As aventuras do príncipe Achmed”
 
O texto a seguir foi escrito por Michael Schurig e Thomas Worschech, do Deutsches Filminstitut & Filmmuseum (DFF). Ele aparece em alemão no site da Primrose Productions e em inglês no presskit da Milestone Films do
As aventuras do príncipe Achmed.
 
Não existe uma versão original em alemão de As aventuras do príncipe Achmed e nenhum negativo (de câmera) foi preservado. O material mais antigo conhecido está armazenado no National Film and Television Archive (NFTVA), do British Film Institute: um nitrato colorido positivo em película Agfa, com legendas em inglês, em material Kodak e Pathé dos anos 1925-1927. Esta não é uma cópia de exibição, mas é o material de base para a produção de novas cópias, com instruções adicionais escritas à mão sobre a coloração dos trechos de película branca inseridos na cópia.
 
A fim de preservar este positivo supostamente de primeira geração (portanto, do negativo da câmera), o NFTVA teve três negativos duplicados feitos em 1949, 1955 e 1969. Todo o material de preservação era em preto e branco e variava parcialmente em comprimentos. Os negativos duplicados em preto e branco criados para fins de preservação foram usados como base para todas as atividades de copiagem posteriores, por exemplo, para a versão em 16 mm do filme da década de 1980.
 
Para este projeto de restauração, pela primeira vez, a cópia colorida em nitrato foi usada como base. Uma exibição no National Film and TV Archive em Berkhamsted comprovou o nitrato colorido positivo como a base ideal para uma nova restauração. Tecnicamente, o estado da cópia é bom e a perfuração está praticamente intacta. Os únicos danos aparentemente irreparáveis são manchas claras no material e, devido ao polimento habitual anterior, arranhões e partículas de pó que penetraram na emulsão da película.
 
As cores âmbar, vermelho, azul, verde, amarelo e uma cor palha utilizada no título de abertura estão em excelentes condições. Não havia plano de cores para a restauração com a avaliação da cor em uma sequência separada. Somente através das instruções manuscritas na cópia em nitrato foi possível fazer uma coloração que correspondesse à cópia original.
 
Os cartões de censura do Bundesarchiv-Filmarchiv foram usados para recriar os intertítulos. As cópias do filme disponíveis não continham títulos originais em alemão, mas uma tradução em inglês. A nova versão restaurada segue a carta de censura de 15 de janeiro de 1926 no que diz respeito aos títulos e a todos os 124 intertítulos. Os novos títulos de ligação produzidos pelo Trickstudio Wilk em Berlim dizem respeito ao tipo de letra e à decoração do fundo, que estão enxertados na cópia original em nitrato. A coloração dos títulos foi copiada desta cópia anterior. Os intertítulos que não estavam disponíveis na versão em inglês, mas que podem ser encontrados nos cartões de censura, foram preenchidos, mas não coloridos. A organização dos cinco atos do filme também segue as cartas da censura.
 
Felizmente, foi descoberto que a trilha sonora completa composta por Wolfgang Zeller foi preservada na Biblioteca do Congresso, em Washington, D.C.. Ela está entre as poucas composições originais que restaram de filmes mudos. Ilustrações de cenas coladas na partitura parecem confirmar a ordem dos atos e cenas.
 
O comprimento total da versão restaurada do filme é de 1.770 metros. O trabalho da cópia foi realizado pelo laboratório L’Immagine Ritrovata, em Bolonha. Seguindo o procedimento de Desmet , uma cópia colorida de 35 mm foi feita a partir do negativo duplicado em preto e branco, dentro do qual os novos intertítulos foram inseridos.
 

MUTUAL FILMS